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20/04/2011

Caiu sozinho (Afonso Cabral)

Navegando pela minha cidade
“Um dos grandes dramas da vida é não poder o Homem passar sem os outros e estar sempre só. “ Quem suportar a solidão é um deus ou uma besta”, diz Aristóteles. Precisemos: um santo ou um doente”.[1] Talvez esta verdade esteja na origem da imensa impressão que me faz ver uma casa arruinada, totalmente arruinada.

 Porque uma casa é (ou foi) o local onde durante anos viveram pessoas carregando as suas pequenas e grandes tragédias; pequenas e grandes alegrias; pequenos e grandes segredos; onde se chorou sem ninguém ver nem ouvir; onde se amou esperançadamente; onde se nasceu e onde se morreu.

 Porque uma casa de família acaba por ser como que a concha – ou o manto - que protege essa família: da indiscrição dos outros; da inveja; da má vontade e dos elementos da natureza. Como também pode ser a gruta onde se perpetram as maiores ignomínias e atentados à liberdade e dignidade humanas. Pode ser um refúgio, bem como um teatro de guerra onde a paz não dorme. Enfim, uma casa é sempre o reflexo da vida de pessoas sempre irrepetíveis e insubstituíveis.

Por isto, fiquei muito tempo parado a olhar para a ruína de um prédio na Rua Miguel Bombarda onde fui à procura de alguma criatividade. Porque é nesta rua e nas que a rodeiam que se pode ver alguma criatividade nesta cidade. O resto é mass art.

Todo o prédio tinha caído excepto uma pequena parte da parede que dava para as traseiras da casa. Nesta, destacava-se – inusitadamente - um autoclismo branco ainda agarrado à parede. Ao lado, como se fosse uma colcha pendurada numa janela, pendia uma velha alcatifa verde por o chão lhe ter fugido. A marca dos pequenos quartos via-se pelas diferentes cores rectangulares que ficaram na parede do prédio vizinho.

Mas o que mais me impressionou foi a frase que numa das paredes foi pintada em grandes letras por alguém possuído dessa criatividade de que eu tinha ido à procura: CAIU SOZINHO.

É assim mesmo: as casas como os homens morrem sozinhos. Sempre.

Numa parede de uma casa ao lado desta ruína outro street artist escreveu aquilo que me pareceu um autêntico epitáfio para o prédio: A CINZA TORNOU-SE A NORMA DO FOGO.

Por coincidência aquele dia era quarta-feira de cinzas. Este dia, que deve ser sempre o início de um recomeço e de uma renovação a par e passo com a primavera que se anuncia na curva alada e negra do voo da andorinha ou na brancura da amendoeira, contrastou singularmente com a ruína daquele prédio e fez-me lembrar um outro epitáfio que pode servir a qualquer homem: EU FUI O QUE TU ÉS, EU SOU O QUE TU SERÁS.

Afonso Cabral




[1] Jacques Leclercq  - DIÁLOGO DO HOMEM E DE DEUS – Colecção Éfeso – Editorial Aster – 1965 – pág.75

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