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23/01/2021

São José

 



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA

REDEMPTORIS CUSTOS

DO SUMO PONTÍFICE

JOÃO PAULO II

SOBRE A FIGURA E A MISSÃO

DE SÃO JOSÉ

NA VIDA DE CRISTO E DA IGREJA


 

O CONTEXTO EVANGÉLICO

 

O matrimónio com Maria

 

II

 

O DEPOSITÁRIO DO MISTÉRIO DE DEUS

 

4. Quando Maria, pouco tempo depois da Anunciação, se dirigiu a casa de Zacarias para visitar Isabel sua parente, ouviu, precisamente quando a saudava, as palavras pronunciadas pela mesma Isabel, «cheia do Espírito Santo» (cf. Lc 1, 41). Para além das palavras que se relacionavam com a saudação do anjo na Anunciação, Isabel disse: «Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que Ihe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1, 45). Estas palavras constituíram o pensamento-guia da Encíclica Redemptoris Mater, com a qual tive a intenção de aprofundar o ensinamento do Concílio Vaticano II, quando afirma: «A Bem-aventurada Virgem Maria avançou no caminho da fé e conservou fielmente a união com seu Filho até à Cruz», (5) «indo adiante» (6) de todos aqueles que, pela via da fé, seguem Cristo.

Ora ao iniciar-se esta peregrinação, a fé de Maria encontra-se com a fé de José. Se Isabel disse da Mãe do Redentor: «Feliz daquela que acreditou», esta bem-aventurança pode, em certo sentido, ser referida também a José, porque, de modo análogo, ele respondeu afirmativamente à Palavra de Deus, quando esta lhe foi transmitida naquele momento decisivo. A bem da verdade, José não respondeu ao «anúncio» do anjo como Maria; mas «fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu a sua esposa». Isto que ele fez é puríssima «obediência da fé» (cf. Rom 1, 5; 16, 26; 2 Cor 10, 5-6).

Pode dizer-se que aquilo que José fez o uniu, de uma maneira absolutamente especial, à fé de Maria: ele aceitou como verdade proveniente de Deus o que ela já tinha aceitado na Anunciação. O Concílio ensina: «A Deus que revela é devida a "obediência da fé" (...); pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus, prestando-lhe "o obséquio pleno da inteligência e da vontade" e dando voluntário assentimento à sua revelação». (7) A frase acabada de citar, que diz respeito à própria essência da fé, aplica-se perfeitamente a José de Nazaré.

5. Ele tornou-se, portanto, um depositário singular do mistério «escondido desde todos os séculos em Deus» (cf. Ef 3, 9), como se tornara Maria, naquele momento decisivo que é chamado pelo Apóstolo «plenitude dos tempos», quando «Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher... para resgatar os que se encontravam sob o jugo da lei e para que recebêssemos a adopção de filhos» (Gál 4, 4-5). «Aprouve a Deus — ensina o Concílio — na sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1, 9), pelo qual os homens, através de Cristo, Verbo Incarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (cf. Ef 2, 18; 2 Pdr 1, 4)». (8)

Deste mistério divino, juntamente com Maria, José é o primeiro depositário. Simultaneamente com Maria - e também em relação com Maria - ele participa nesta fase culminante da auto-revelação de Deus em Cristo; e nela participa desde o primeiro momento. Tendo diante dos olhos os textos de ambos os Evangelistas, São Mateus e São Lucas, pode também dizer-se que José foi o primeiro a participar na mesma fé da Mãe de Deus e que, procedendo deste modo, ele dá apoio à sua esposa na fé na Anunciação divina. Ele é igualmente quem primeiro foi posto por Deus no caminho daquela «peregrinação da fé», na qual Maria, sobretudo na altura do Calvário e do Pentecostes, irá adiante, de maneira perfeita. (9)

6. A caminhada própria de José, a sua peregrinação da fé terminaria antes; ou seja, antes que Maria esteja de pé junto à Cruz no Gólgota e antes que Ela - tendo Cristo voltado para o seio do Pai se encontre no Cenáculo do Pentecostes, no dia da manifestação ao mundo da Igreja, nascida pelo poder do Espírito da verdade. E contudo, a caminhada da fé de José seguiu a mesma direcção, permaneceu totalmente determinada pelo mesmo mistério, de que ele, juntamente com Maria, se tinha tornado o primeiro depositário. A Incarnação e a Redenção constituem uma unidade orgânica e indissolúvel, na qual a «economia da Revelação se realiza por meio de acções e palavras, intimamente relacionadas entre si». (10) Precisamente por causa desta unidade, o Papa João XXIII, que tinha uma grande devoção para com São José, estabeleceu que no Cânone romano da Missa, memorial perpétuo da Redenção, fosse inserido o nome dele, ao lado do nome de Maria e antes do dos Apóstolos, dos Sumos Pontífices e dos Mártires. (11)

O serviço da paternidade

7. Como se deduz dos textos evangélicos, o matrimónio com Maria é o fundamento jurídico da paternidade de José. Foi para garantir a protecção paterna a Jesus que Deus escolheu José como esposo de Maria. Por conseguinte, a paternidade de José — uma relação que o coloca o mais perto possível de Cristo, termo de toda e qualquer eleição e predestinação (cf. Rom 8, 28-29) — passa através do matrimónio com Maria, ou seja, através da família.

Os Evangelistas, embora afirmem claramente que Jesus foi concebido por obra do Espírito Santo e que naquele matrimónio a virgindade foi preservada (cf. Mt 1, 18-25; Lc 1, 26-38), chamam a José esposo de Maria e a Maria esposa de José (cf. Mt 1, 16. 18-20; Lc 1, 27; 2, 5).

E também para a Igreja, se por um lado é importante professar a concepção virginal de Jesus, por outro, não é menos importante defender o matrimónio de Maria com José, porque é deste matrimónio que depende, juridicamente, a paternidade de José. Daqui se compreende a razão por que as gerações são enumeradas segundo a genealogia de José: «E porque não o deviam ser - pergunta-se Santo Agostinho - através de José? Não era porventura José o marido de Maria? (...). A Escritura afirma, por meio da autoridade angélica, que ele era o marido. Não temas, diz, receber contigo Maria, tua esposa, pois o que nela se gerou é obra do Espírito Santo. E é-lhe mandado que imponha o nome ao menino, se bem que não seja nascido do seu sémen. Aí se diz, ainda: Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. A Escritura sabe que Jesus não nasceu do sémen de José; e porque ele mostra preocupação quanto à origem da gravidez dela (Maria), é dito: provém do Espírito Santo. E todavia não lhe é tirada a autoridade paterna, uma vez que lhe é ordenado que seja ele a dar o nome ao menino. Por fim, também a própria Virgem Maria, bem consciente de não ter concebido Cristo da união conjugal com ele, chama-o apesar disso pai de Cristo». (12)

O filho de Maria é também filho de José, em virtude do vínculo matrimonial que os une: «Por motivo daquele matrimónio fiel, ambos mereceram ser chamados pais de Cristo, não apenas a Mãe, mas também aquele que era seu pai, do mesmo modo que era cônjuge da Mãe, uma e outra coisa por meio da mente e não da carne». (13) Neste matrimónio não faltou nenhum dos requisitos que o constituem: «Naqueles pais de Cristo realizaram-se todos os bens das núpcias: a prole, a fidelidade e o sacramento. Conhecemos a prole, que é o próprio Senhor Jesus; a fidelidade, porque não houve nenhum adultério; e o sacramento, porque não se deu nenhum divórcio». (14)

Analisando a natureza do matrimónio, quer Santo Agostinho, quer Santo Tomás de Aquino situam-na constantemente na «união indivisível dos ânimos», na «união dos corações» e no «consenso»; (15) elementos estes, que, naquele matrimónio, se verificaram de maneira exemplar. No momento culminante da história da salvação, quando Deus manifestou o seu amor pela humanidade, mediante o dom do Verbo, deu-se exactamente o matrimónio de Maria e José, em que se realizou com plena «liberdade» o «dom esponsal de si» acolhendo e exprimindo um tal amor. (16) «Nesta grandiosa empresa da renovação de todas as coisas em Cristo , o matrimónio, também ele renovado e purificado, torna-se uma realidade nova, um sacramento da Nova Aliança. E eis que no limiar do Novo Testamento, como já sucedera no princípio do Antigo, há um casal. Mas, enquanto o casal formado por Adão e Eva tinha sido a fonte do mal que inundou o mundo, o casal formado por José e Maria constitui o vértice, do qual se expande por toda a terra a santidade. O Salvador deu início à obra da salvação com esta união virginal e santa, na qual se manifesta a sua vontade omnipotente de purificar e santificar a família, que é santuário do amor humano e berço da vida». (17)

Quantos ensinamentos promanam disto, ainda hoje, para a família! Uma vez que «a essência e as funções da família se definem, em última análise, pelo amor» e que à família «é confiada a missão de guardar, revelar e comunicar o amor, qual reflexo vivo e participação do amor de Deus pela humanidade e do amor de Cristo pela Igreja sua Esposa», (18) é na Sagrada Família, nesta originária «Igreja doméstica», (19) que todas as famílias devem espelhar-se. Nela, efectivamente, «por um misterioso desígnio divino, viveu escondido durante longos anos o Filho de Deus: ela constitui, portanto, o protótipo e o exemplo de todas as famílias cristãs». (20)

 

Notas:

(5) Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, n. 58.

(6) Cf. ibid., n. 63.

(7) Const. dogm. sobre a Divina Revelação Dei Verbum, n. 5.

(8) Ibid., n. 2.

(9) Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, n. 63.

(10) Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Divina Revelação Dei Verbum, n. 2.

(11) S. Congr. dos Ritos, Decr. Novis hisce temporibus (13 de Novembro de 1962): AAS 54 (1962), p. 873.

(12) S. Agostinho, Sermo 51, 10, 16: PL 38, 342.

(13) S. Agostinho, De nuptiis et concupiscentia, I, 11, 12: PL 44, 421; cf. De consensu evangelistarum, II, 1, 2: PL 34, 1071; Contra Faustum, III, 2: PL 42, 214.

(14) S. Agostinho, De nuptiis et concupiscentia, I, 11, 13: PL 44, 421; cf. Contra Julianum, V, 12, 46: PL 44, 810.

(15) Cf. S. Agostinho, Contra Faustum, XXIII, 8: PL 42, 470-471; De consensu evangelistarum, II, 1, 3: PL 34, 1072; Sermo 51, 13, 21: PL 38, 344-345; S. Tomás de Aquino, Summa Theol., III, q. 29, a. 2 in conclus.

(16) Cf. as Alocuções de 9 e 16 de Janeiro e de 20 de Fevereiro de 1980: Insegnamenti, III/1 (1980), pp. 88-92; 148-152; e 428-431.

(17) Paulo VI, Alocução ao Movimento « Equipes Notre-Dame » (4 de Maio de 1970), n. 7: AAS 62 (1970), p. 431; uma exaltação análoga da Família de Nazaré, como exemplar absoluto da comunidade doméstica, encontra-se, por exemplo, em Leão XIII, Carta Apost. Neminem fugit (14 de Junho de 1892): Leonis XIII Acta, XII (1892), pp. 149-150; Bento XV, Motu Proprio Bonum sane (25 de Julho de 1920): AAS 12 (1920), pp. 313-317.

(18) Exort. Apost. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), n. 17: AAS 74 (1982), p. 100.

(19) Ibid., n. 49: l.c., p. 140; cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, n. 11; Decr. sobre o Apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, n. 11.

(20) Exort. Apost. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), n. 85: AAS 74 (1982), pp. 189-190.

 

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