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19/03/2020

Leitura espiritual


JESUS CRISTO NOSSO SALVADOR 19

Iniciação à Cristologia

3. Cristo ofereceu-se a si mesmo pelos nossos pecados

a) Cristo voluntariamente aceitou e sofreu a Paixão

    Assim o afirma explicitamente a Escritura:

«entregou-se a si mesmo» por nós (Ef 5,2; cf. Gal 2,20; Heb 9,14). E Jesus explica essa liberdade e poder: «O Pai ama-me, porque eu dou a minha vida e a tomo de novo. Ninguém ma tira mas sou eu que a dou por mim mesmo. Tenho o poder de dá-la e o poder de voltar a tomá-la» (Jo 10,17-18).

    Jesus, ao aceitar no seu coração humano o amor do Pai para com os homens, «amou-os até ao extremo» (Jo 13,1), até dar a vida por eles.
Aceitou livremente a sua Paixão e a sua Morte por amor a seu Pai e aos homens que o Pai quer salvar.
Daí a liberdade soberana que demonstra quando se encaminha resolutamente para Jerusalém, sabendo que ali ia morrer, ou quando sai ao encontro dos que o vão prender (cf. Jo 18,4-6).

    Cristo, não só como Deus mas também como homem podia impedir a sua morte de muitas formas: fazendo com que os seus inimigos não pudessem levá-la a cabo (cf. Mt 26,53); e também fazendo que não o ferissem as acções dos perseguidores.
Mas não quis impedir essas acções nem os seus efeitos naturais:

«Como ovelha que está muda ante os que a tosquiam, tampouco ele abriu a boca, como ovelha que levam ao matadouro» (Is 53,7)

    Por isso dizemos com verdade que se entregou livre e voluntariamente à Paixão, por nosso amor.
Mas essa entrega não significa de modo algum que se matasse a si mesmo, mas que não impediu, podendo, a acção dos que o justiçaram.

b) Cristo padeceu e morreu por obediência

    O Filho de Deus «baixou do céu não para fazer a sua vontade mas a do Pai que o enviou» (Jo 6,38). «Desde o primeiro instante da sua encarnação o Filho aceita o desígnio divino da salvação na sua missão redentora: ‘Meu alimento é fazer a vontade do que me enviou e levar a cabo a sua obra’ (Jo 4,34). O sacrifício de Jesus ‘pelos pecados do mundo inteiro’ (1 Jo 2,2) é a expressão da sua comunicação de amor com o Pai (…) O mundo há-de saber que amo o Pai e que obro segundo o que o Pai me ordenou’ (Jo 14.,31)»[1].

    «Cristo, pois, em cumprimento da vontade do Pai (…) efectuou a redenção com a sua obediência»[2].
E como a Escritura resume:

«Humilhou-se a si mesmo fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz» (Flp 2,8).

    Trata-se de uma obediência vivida por amor:
Cristo oferece-se à Paixão e Morte com plena liberdade e ao mesmo tempo identificando-se totalmente com a vontade divina acerca da nossa redenção.
Não há oposição alguma entre liberdade e obediência, mas sim uma correspondência perfeita:

o verdadeiro amor a Deus demonstra-se cumprindo livremente a sua vontade.

4. Os padecimentos de Cristo na sua Paixão

    Os quatro Evangelhos narram-nos passo a passo a dolorosa história da Paixão do Senhor: desde a agonia no horto de Getsemani, seguindo pelo iníquo processo religioso ante as autoridades judias, passando pelo injusto processo civil ante Pilatos com todas as suas vicissitudes – com a flagelação, a coroação de espinhos e a condenação à morte -, e chegando á «via crucis» com a terrível crucifixão, agonia e morte do Senhor na cruz.

    Jesus padeceu por parte dos judeus e dos gentios; por parte das autoridades, da multidão e, do que é mais penoso, por parte dos seus íntimos: de Judas que o entregou, Pedro que o negou, e os seus que o abandonaram.

    Padeceu interiormente na sua alma até entrar em agonia pela tristeza e o temor ante a morte certa.
Teve uma imensa pena pelos pecados de todo o género humano, assim como pela ruína do seu povo, pela queda Judas e pelo escândalo dos seus discípulos.
Sofreu também moralmente pelas humilhações, injustiças, troças e insultos... de todos os que o perseguiam.

    E padeceu tremendamente no seu corpo pelas terríveis feridas da flagelação, a coroação de espinhos, a dolorosíssima crucifixão com todos os sofrimentos físicos que comportava e a horrível agonia na cruz até à morte.

    Isaías já tinha profetizado os padecimentos do Servo de Yahwé, que parecia «desprezível e desprezado de homens, varão de dores e sabedor de dolências (...) Tivemo-lo por açoitado, ferido de Deus e humilhado. Ele foi ferido pelas nossas rebeldias, moído pelas nossas culpas» (Is 53,3-5).

5. O valor salvífico que a Paixão de Cristo tem para nos comunicar os seus frutos.

    A fé diz-nos que toda a obra de Cristo, especialmente a sua Paixão e Morte, alcança-nos o perdão dos pecados.
E agora perguntamo-nos que valor tem a Paixão de Cristo para nos libertar do pecado?
De que modo o consegue?

    Recordemos que a obra redentora é um mistério divino que supera todas as categorias humanas e não se pode encerrar em nenhuma delas.
Por isso, a Tradição da Igreja a apresentou sob diversos aspectos, como modos diferentes – complementares – de nos alcançar a salvação.
Vejamos os principais.

a) Carácter meritório da Paixão de Cristo

    Noção de mérito.

«Mérito» é uma noção do âmbito da justiça humana, e é o direito a um prémio ou retribuição por uma obra realizada.
Mas com relação a Deus devemos atender à analogia da linguagem, pois o homem propriamente não tem nenhum direito ante Deus.
Se o homem pode «merecer» algo ante Deus é porque Ele prévia e livremente estabeleceu retribuir algumas acções nossas nascidas do amor, e só em relação a esse ordenamento as nossas obras podem ser dignas do prémio prometido.
Além do mais, Deus concede graciosamente ao homem, aquilo com que o pode merecer.
Ele premeia ou coroa em nós os seus próprios dons, como diz Santo Agostinho.

    A Paixão de Cristo merece-nos a salvação.

«Por sua sacratíssima Paixão no madeiro da cruz mereceu-nos a justificação», ensina o concílio de Trento[3].
Ainda que a palavra «mérito» não se encontre na Escritura, o seu conteúdo sim está expresso de outras formas: p. ex. Jesus adquiriu-nos a salvação como fruto do seu sacrifício (cf. Ef 5,2).

Com efeito, Cristo merece porque as suas obras, nascidas do seu amor e liberdade, são dignas ante Deus para alcançar o fim a que estavam destinadas: a nossa salvação.
Portanto, todas as suas acções são meritórias e obtêm de Deus Pai a nossa salvação.
Mas Cristo na sua Paixão – voluntariamente aceite – mereceu além do mais de modo particular: como prémio da tremenda e injusta humilhação que aceitou para nos redimir (cf. Flp 2,8-9; Lc 14,11).

    Na sua Paixão mereceu a vida sobrenatural para todos os homens; mereceu para todos a graça que tira o pecado, pois ofereceu-se por nós como nossa Cabeça.

b) Carácter satisfatório da Paixão e Morte de Cristo

    Noção de satisfação.

A satisfação é outra noção que procede do âmbito jurídico e que consiste na reparação de uma falta ou ofensa mediante a entrega de alguma compensação proporcionada.

Mas também aqui, com relação a Deus, temos de atender à analogia da linguagem, e empregamo-la para significar a acção que Deus requer do homem para cancelar o seu pecado.

E, em concreto, que tem de fazer o homem para ser perdoado?

Para falar apropriadamente, e não de modo figurado, digamos que a satisfação que Deus solicita do pecador não consiste em que ele não sofra um castigo (como sustentava Lutero), nem que lhe ofereça uma compensação adequada por um mal que tivesse acusado (como dizia Santo Anselmo)[4], senão que se arrependa de ter-se afastado de Deus e o mostre com obras de penitência, assumindo voluntariamente as penalidades que são consequência do pecado.

    Com efeito, as obras de penitência servem para reparar a desordem que existe no coração do homem, pois supõem a renúncia a si mesmo e submissão a Deus, disposições que rectificam a desordem do pecado.
Assim pois, para satisfazer requer-se «a modo de matéria» levar as penas temporais que derivam do pecado, e «por princípio e fonte da eficácia satisfatória», a caridade penitente[5]

A Paixão de Cristo satisfaz pelos pecados do mundo.

Pela sua sacratíssima Paixão no madeiro da cruz (…) satisfez a Deus Pai por nós», ensina a propósito o concílio de Trento[6].

Cristo satisfaz porque, sendo Santo e sem pecado, como cabeça do género humano, por a mor e por obediência a seu Pai aceita a morte, pena do pecado comum, com i fim de reparar os pecados de todos os homens.

A Paixão de Cristo é uma satisfação vicária:

de um para todos (cf. 2 Cor 5,14), «do justo para os injustos» 1 Pd 3,18).

O Filho de Deus, santo e Justo, mas feito solidário connosco, pecadores, por amor, representando-nos a todos e levando as penalidades do nosso pecado, como vítima do pecado, intercede por nós para cancelar a nossa falta[7].

c) Carácter sacrificial da Paixão e Morte de Cristo

Noção de sacrifício.

Sacrifício é o oferecimento feito a Deus de algo próprio, sinal da entrega interior a Deus e da renúncia a si mesmo, para reconciliar-nos com Ele.

No sacrifício há um elemento interior e outro exterior:

«Todo o sacrifício visível é sacramento do sacrifício invisível, quer dizer, sinal sagrado»[8]

O valor do sacrifício exterior, da oblação e imolação da vítima, está em ser sinal do sacrifício interior ou espiritual, da entrega da alma a Deus por amor, que constitui o elemento principal do sacrifício:

«O sacrifício a Deus é um espírito contrito» (Sal 51/50,18-19)[9].

O valor redentor de um sacrifício radica em que compreende a razão de mérito, enquanto é um acto voluntário que procede da caridade, e da satisfação, e enquanto é a entrega a Deus de algo nosso a que renunciamos em sinal de arrependimento[10].

A Paixão de Cristo é um sacrifício.

Os racionalistas negam que a Paixão e Morte de Cristo fosse um sacrifício; para eles constituiu um simples justiçamento.
Segundo eles, Cristo nunca teria tido a intenção de se oferecer para reparar os pecados do mundo.
O valor da Morte de Cristo estaria somente na exemplaridade da sua «não-violência» com que enfrenta a perseguição, ou o seu abandono na divina Providência.

Todavia, a Escritura ensina-nos abertamente que a Paixão e Morte de Cristo constituíram um verdadeiro sacrifício:

«Entregou-se por nós em oblação e hóstia de suave olor» (Ef 5,2); como «vítima propiciatória» ou como «sacrifício de propiciação» (Rom 3,25; Jo 2,2).

E Jesus na última ceia apresenta a sua Morte como o sacrifício da Nova Aliança selada com o seu sangue.
A propósito o Magistério da Igreja ensina universalmente que nosso Senhor Jesus Cristo nos redimiu pelo sacrifício da cruz.

A Paixão é um sacrifício porque, nela, Cristo oferece-se voluntariamente a seu Pai para reconciliar os homens com Deus.[11].

Certamente o sacrifício interior de Jesus foi real e perfeito desde a Encarnação (cf. Heb 10,5-10), mas o sacrifício exterior da sua vida só se consumou na sua Paixão e Morte.


Vicente Ferrer Barriendos

(Tradução do castelhano por ama)



[1] CCE, 606.
[2] LG, 3.
[3] CONC. TRENTO, DS, 1529; cf. CC, 617.
[4] Veja-se o dito no capítulo VII sobre o sentido teológico das expressões analógicas.
[5] Cf. S. Th. III,14,1 ad 1; cf. S. Th. I-II, 87,6-8; CCE, 616; CONC. DE TRENTO, DS, 1690.
[6] CONC. TREBTO, DS, 1529.
[7] Este é o sentido das expressões metafóricas de São Paulo que, por vezes, são mal interpretadas (como é o caso de Lutero e de outros): «a quem não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós» (2 Cor 5,21); «redimiu-nos da  maldição da Lei fazendo-se por nós maldição» (Gal 3,13). Cf. CCE, 602-603.
[8] SANTO AGOSTINHO, De civitate dei, 10.
[9] Cf. CCE, 2009-2100.
[10] Cf. S. Th. III,22,4, obie. 2 e Ad 2. O Catecismo da Igreja Católica expõe a Paixão de Cristo centrando-se na noção bíblica de sacrifício, mas assinala que o seu valor salvífico está em relação com o mérito e a satisfação que encerra (cf. CCE, 615-617).
[11] Por parte dos que crucificaram Cristo a Paixão não foi nenhum sacrifício, mas sim iniquidade; mas por parte de Cristo, que padecia livremente e por amor, foi um acto supremo de entrega, um verdadeiro sacrifício.

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