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19/09/2019

Leitura espiritual


São Josemaria Escrivá


Amigos de Deus

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Começamos com orações vocais, que muitos de nós repetimos desde crianças: são frases ardentes e simples, dirigidas a Deus e à Sua Mãe, que é nossa Mãe.
De manhã e à tarde, não um dia, mas habitualmente, ainda renovo aquele oferecimento que os meus pais me ensinaram: Ó Senhora mi­nha, ó minha mãe, eu me ofereço todo a Vós. E, em prova da minha devoção para convosco, Vos consagro neste dia os meus olhos, os meus ouvidos, a minha boca, o meu coração...
Não será isto, de algum modo, um princípio de contemplação, uma demonstração evidente de confiante abandono?
Que dizem aqueles que se querem, quando se encontram?
Como se comportam?
Sacrificam tudo quanto são e tudo o que possuem pela pessoa que amam.

Primeiro uma jaculatória, e depois outra e outra... Até que parece insuficiente esse fervor, porque as palavras se tornam pobres...: e abrem-se as portas à intimidade divina, com os olhos postos em Deus sem descanso e sem cansaço.
Vivemos então como cativos, como prisioneiros.
Enquanto realizamos com a maior perfeição possível, dentro dos nossos erros e limitações, as tarefas próprias da nossa condição e do nosso ofício, a alma anseia escapar-se.
Vai até Deus como o ferro atraído pela força do íman.
Começa-se a amar Jesus de forma mais eficaz, com um doce sobressalto.

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Libertar-vos-ei do cativeiro, onde quer que estiverdes.
Livramo-nos da escravidão com a oração: sabemo-nos livres, voando num epitalâmio de alma enamorada, num cântico de amor, que nos leva a desejar não nos afastarmos de Deus...
Um novo modo de andar na terra, um modo divino, sobrenatural, maravilhoso!
Recordando tantos escritores quinhentistas castelhanos, talvez nos agrade saborear frases como esta: Eu vivo, porque não vivo; é Cristo que vive em mim.

Aceita-se com todo o gosto a necessidade de trabalhar neste mundo, durante muitos anos, porque Jesus tem poucos amigos cá em baixo. Não recusemos a obrigação de viver, de nos gastarmos - bem espre­midos- ao serviço de Deus e da Igreja.
Desta maneira, em liberdade: in libertatem gloriae filiorum Dei, qua libertate Christus nos liberavit; com a liberdade dos filhos de Deus, que Jesus Cristo nos alcançou morrendo no madeiro da Cruz.

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É possível que logo desde o princípio se levantem nuvens de poeira e que, ao mesmo tempo, os inimigos da nossa santificação empreguem uma técnica de terrorismo psicológico - de abuso de poder - tão veemente e bem orquestrada, que arrastem na sua absurda direcção inclusivamente aqueles que durante muito tempo mantinham uma conduta mais lógica e mais recta.
E apesar de a sua voz soar a sino rachado, não fundido em bom metal e bem diferente do assobio do pastor, rebaixam a palavra, que é um dos dons mais preciosos que o homem recebeu de Deus, presente belíssimo destinado a manifestar altos pensamentos de amor e de amizade ao Senhor e às suas criaturas, até fazer com que se entenda por que motivo disse S. Tiago que a língua é um mundo de iniquidade.
Tantos danos pode, realmente produzir!
Mentiras, difamações, desonras, intrigas, insultos, murmurações tortuosas...

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A Humanidade Santíssima de Cristo

Como poderemos superar estes inconvenientes?
Como conseguiremos fortalecer-nos nessa decisão que começa a parecer-nos muito pesada?
Inspirando-nos no modelo que nos apresenta a Virgem Santíssima, nossa Mãe: uma rota muito ampla, que passa necessariamente através de Jesus.

Para nos aproximarmos de Deus temos de empreender o caminho certo, que é a Humanidade Santíssima de Cristo.
Por isso, aconselho sempre a leitura de livros que narram a Paixão do Senhor.
Esses escritos, cheios de sincera piedade, trazem-nos à mente o Filho de Deus, Homem como nós e Deus verdadeiro, que ama e que sofre na sua carne pela Redenção do mundo.

Consideremos uma das devoções mais arreigadas entre os cristãos, o Santo Rosário.
A Igreja anima-nos à contemplação dos mistérios: para que se gravem na nossa mente e na nossa imaginação a alegria, a dor e a glória de Santa Maria, o exemplo admirável de Nosso Senhor, nos seus trinta anos de obscuridade, nos seus três anos de pregação, na sua Paixão afrontosa e na sua gloriosa Ressurreição.

Seguir Cristo: é este o segredo.
Acompanhá-lo tão de perto, que vivamos com Ele, como os primeiros doze; tão de perto, que com Ele nos identifiquemos.
Se não levantarmos obstáculos à graça, não tardaremos a afirmar que nos revestimos de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Nosso Senhor reflecte-se na nossa conduta como num espelho.
Se o espelho for como deve ser, captará o rosto amabilíssimo do nosso Salvador sem o desfigurar, sem caricaturas: e os outros terão a possi­bilidade de O admirar, de O seguir.

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Neste esforço por nos identificarmos com Cristo, costumo falar de quatro degraus: procurá-lo, encontrá-lo, conhecê-lo, amá-lo.
Talvez pareça que estamos na primeira etapa...
Procuremo-lo com fome, procuremo-lo dentro de nós com todas as forças!
Se o fizermos com este empenho, atrevo-me a garantir que já O encontrámos e que já começámos a conhecê-lo e a amá-lo e a ter a nossa conversa nos céus. Rogo a Nosso Senhor que nos decidamos a alimentar nas nossas almas a única ambição nobre, a única que merece a pena: ir ter com Jesus Cristo, como fizeram a sua Bendita Mãe e o Santo Patriarca, com ânsia, com abnegação, sem descuidos. Participaremos na dita da amizade divina - num recolhimento interior, compatível com os nossos deveres profissionais e sociais - e agradecer-Lhe-emos a delicadeza e a caridade com que Ele nos ensina a cumprir a Vontade do Nosso Pai que está nos céus.

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Mas não esqueçamos que estar com Jesus é seguramente encontrar-se com a sua Cruz.
Quando nos abandonamos nas mãos de Deus, é frequente que Ele per­mita que saboreemos a dor, a solidão, as contradições, as calúnias, as difamações, os escárnios, por dentro e por fora: porque quer conformar-nos à Sua imagem e semelhança e permite também que nos chamem loucos e que nos tomem por néscios.

É a altura de amar a mortificação passiva que vem - oculta, ou descarada e insolente - quando não a esperamos.
Chegam a ferir as ovelhas com as pedras que deviam atirar-se aos lobos: quem segue Cristo experimenta na própria carne que aqueles que o deviam amar se comportam com ele de uma maneira que vai da desconfiança à hostilidade, da suspeita ao ódio.
Olham-no com receio, como um mentiroso, porque não acreditam que possa haver relação pessoal com Deus, vida interior; em contrapartida, com o ateu e com o indiferente, geralmente rebeldes e desavergonhados, desfazem-se em amabilidades e compreensão.

E talvez Nosso Senhor permita que o Seu discípulo se veja atacado com a arma, que nunca é honrosa para aquele que a empunha, das injúrias pessoais; com lugares comuns, fruto tendencioso e delituoso de uma propaganda massificada e mentirosa...
Porque o bom gosto e a cortesia não são coisas muito comuns.

Quem cultiva uma teologia incerta e uma moral relaxada, sem freios; quem pratica, a seu capricho, uma liturgia duvidosa, com uma disciplina de hippies e um governo irresponsável, não é de admirar que propague contra os que só falam de Jesus Cristo invejas, suspeitas, acusações falsas, ofensas, maus tratos, humilhações, intrigas e vexames de todo o género.

Assim vai Jesus esculpindo as almas dos Seus, sem deixar de lhes dar interiormente serenidade e alegria, porque eles entendem muito bem que - com cem mentiras juntas - os demónios não são capazes de fazer uma verdade: e grava nas suas vidas a convicção de que só se sentirão bem quando renunciarem à comodidade.

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Quando admiramos e amamos deveras a Santíssima Humanidade de Jesus, descobrimos, uma a uma, as suas Chagas.
E nesses tempos de expiação passiva, penosos, fortes, de lágrimas do­ces e amargas que procuramos esconder, sentiremos necessidade de nos meter dentro de cada uma daquelas Feridas Santíssimas: para nos purificarmos, para nos enchermos de alegria com esse Sangue redentor, para nos fortalecermos.
Recorreremos a elas como as pombas que, no dizer da Escritura, se escondem nos buracos das rochas na hora da tempestade.
Escondemo-nos nesse refúgio, para encontrar a intimidade de Cristo: e veremos que o seu modo de conversar é aprazível e o seu rosto formoso, porque os que sabem que a sua voz é suave e grata, são os que receberam a graça do Evangelho, que os faz dizer: Tu tens palavras de vida eterna.

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Não pensemos que, nesta senda da contemplação, as paixões se calam definitivamente.
Enganar-nos-íamos se supuséssemos que a ânsia de procurar Cristo, a realidade do seu encontro e do seu convívio e a doçura do seu amor nos tornavam pessoas impecáveis.
Embora não lhes falte experiência disso, deixem-me, no entanto, recordá-lo.
O inimigo de Deus e do homem, Satanás, não se dá por vencido, não descansa.
E assedia-nos, mesmo quando a alma arde inflamada no amor de Deus. Sabe que nessa altura a queda é mais difícil, mas que - se conseguir que a criatura ofenda o seu Senhor, ainda que seja em pouco - poderá lançar naquela consciência a grave tentação do desespero.

Aconselharei a quem quiser aprender com a experiência de um pobre sacerdote que não pretende falar senão de Deus, que, quando a carne tentar recobrar os seus foros perdidos, ou a soberba - que é pior - se revoltar e se encabritar, correr a abrigar-se nessas divinas fendas abertas no Corpo de Cristo pelos cravos que O seguraram à Cruz e pela lança que atravessou o Seu peito.
Vamos como nos comover mais; derramemos nas Chagas de Nosso Senhor todo esse amor humano... e esse amor divino.
Que isto é desejar a união, sentir-se irmão de Cristo, ser seu consan­guíneo, filho da mesma Mãe, porque foi Ela que nos levou até Jesus.

(cont)


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