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28/07/2019

Leitura espiritual


"Christus vivit": Exortação Apostólica aos Jovens


Capítulo IX

A chamada do Amigo

287. Para discernir a própria vocação, é preciso reconhecer que a mesma é a chamada dum amigo: Jesus. Aos amigos, quando se dá um presente, oferece-se o melhor; isto não significa que seja necessariamente o presente mais caro ou difícil de conseguir, mas o que - sabemos - dará alegria ao outro. Um amigo tem uma percepção tão clara disto mesmo que consegue visualizar, na sua imaginação, o sorriso do amigo ao abrir o seu presente. Este discernimento de amizade é o que proponho aos jovens como modelo se quiserem compreender qual é a vontade de Deus para a sua vida.

288. Quero que saibais que o Senhor, quando pensa em alguém, no que gostaria de lhe dar de presente, vê-o como seu amigo pessoal. E se decidiu presentear-te com uma graça, um carisma que te fará viver plenamente a tua vida transformando-te numa pessoa útil aos outros, em alguém que deixa uma marca na história, será certamente algo que te deixará feliz no mais íntimo de ti mesmo e te entusiasmará mais do que qualquer outra coisa neste mundo. Não, porque o dom concedido seja um carisma extraordinário ou raro, mas porque é precisamente à tua medida, à medida de toda a tua vida.

289. O dom da vocação será, sem dúvida, um dom exigente. Os dons de Deus são interactivos e, para desfrutá-los, é preciso pôr-me em caminho, arriscar. Não será a exigência dum dever imposto por outro de fora, mas algo que te estimulará a crescer e a optar por que esse presente amadureça e se transforme em dom para os outros. Quando o Senhor suscita uma vocação, não pensa apenas no que és, mas em tudo o que poderás, juntamente com Ele e os outros, chegar a ser.

290. A energia da vida e a força da própria personalidade alimentam-se mutuamente, no interior de cada jovem, e impelem-no a ultrapassar todos os limites. A inexperiência permite que isto aconteça, embora bem depressa se transforme em experiência muitas vezes dolorosa. É importante pôr em contacto este desejo do «infinito de quando ainda não se tentou começar»


[1] com a amizade incondicional que Jesus nos oferece.
Antes de toda a lei e dever, aquilo que Jesus nos propõe escolher é um seguimento como o de amigos que se frequentam, procuram e encontram por pura amizade. Tudo o mais vem depois; e até os fracassos da vida poderão ser uma experiência inestimável de tal amizade que não se rompe jamais.

Escuta e acompanhamento

291. Há sacerdotes, religiosos, religiosas, leigos, profissionais e até jovens qualificados, que podem acompanhar os jovens no seu discernimento vocacional.
Quando nos toca ajudar o outro a discernir o caminho da sua vida, a primeira coisa a fazer é ouvir.
Esta escuta pressupõe três sensibilidades ou atenções diferentes e complementares:

292. A primeira sensibilidade ou atenção é à pessoa.
Trata-se de escutar o outro, que se nos dá com as suas palavras.
O sinal desta escuta é o tempo que dedico ao outro.
Não é questão de quantidade, mas de que o outro sinta que o meu tempo é dele: todo o tempo que precisar para me manifestar o que quer.
Deve sentir que o escuto incondicionalmente, sem me ofender, escandalizar, aborrecer nem cansar.
Tal é a escuta que o Senhor realiza quando Se põe a caminho com os discípulos de Emaús e os acompanha durante longo tempo por uma estrada cuja direcção seguida era oposta à correcta (cf. Lc 24, 13-35).
Quando Jesus faz menção de continuar em frente, porque os dois discípulos tinham chegado a casa, estes compreendem que Ele lhes oferecera o seu tempo e, então, dão-Lhe o deles, oferecendo-Lhe hospedagem.
Esta escuta atenta e desinteressada mostra o valor que tem para nós a outra pessoa, independentemente das suas ideias e opções de vida.

293. A segunda sensibilidade ou atenção é no discernir.
Trata-se de individuar o ponto certo onde se discerne o que é a graça e o que é tentação. Com efeito, às vezes as coisas que cruzam a nossa imaginação não passam de tentações que nos afastam do nosso verdadeiro caminho.
Aqui preciso de me interrogar:
O que é que, exactamente, esta pessoa me está dizendo?
O que me quer dizer?
O que deseja que eu compreenda do que lhe acontece?
São perguntas que ajudam a entender onde se ligam os argumentos que movem o outro, e a sentir o peso e o ritmo dos seus afectos influenciados por esta lógica.
Esta escuta tem em vista discernir as palavras salvíficas do Espírito bom, que nos propõe a verdade do Senhor, mas também as armadilhas do espírito mau, os seus enganos e as suas seduções.
É preciso ter a coragem, o afecto e a delicadeza necessários para ajudar o outro a reconhecer a verdade e os enganos ou as desculpas.

294. A terceira sensibilidade ou atenção consiste em escutar os impulsos «para diante» que o outro experimenta.
É a escuta profunda do ponto «para onde o outro quer verdadeiramente ir». Além do que sente e pensa no presente e do que fez no passado, a atenção orienta-se para o que quereria ser.
Às vezes, isto requer que a pessoa não olhe tanto para o que gosta, os seus desejos superficiais, mas para o que mais agrada ao Senhor, o seu projecto para a própria vida que se expressa numa inclinação do coração, além da casca dos gostos e sentimentos.
Esta escuta é atenção à intenção última, que é aquela que, em última análise, decide a vida, porque há Alguém como Jesus que entende e valoriza esta intenção última do coração.
Por isso, Ele está sempre disposto a ajudar cada um a reconhecê-la e, para isso, basta que alguém Lhe diga:
«Senhor, salvai-me! Tende misericórdia de mim!»

295. Então, o discernimento torna-se um instrumento de compromisso forte para seguir melhor o Senhor[2].

Assim, o desejo de reconhecer a própria vocação adquire uma intensidade suprema, uma qualidade diferente e um nível superior, que responde muito melhor à dignidade da vida.
Porque, em última análise, um bom discernimento é um caminho de liberdade que faz aflorar a realidade única de cada pessoa, aquela realidade que é tão sua, tão pessoal que só Deus a conhece.
Os outros não podem entender plenamente nem prever de fora como se desenvolverá.

296. Por conseguinte, quando alguém escuta o outro desta maneira, a dado momento deve desaparecer para o deixar seguir o caminho que ele descobriu.
Desaparecer como desaparece o Senhor da vista dos seus discípulos, deixando-os sozinhos com o ardor do coração que se transforma num impulso irresistível de se porem a caminho (cf. Lc 24, 31-33).
De regresso à comunidade, os discípulos de Emaús receberão a confirmação de que o Senhor verdadeiramente ressuscitou (cf. Lc 24, 34).

297. Uma vez que «o tempo é superior ao espaço»[3], devemos suscitar e acompanhar processos, não impor percursos.
Trata-se de processos de pessoas, que sempre são únicas e livres.
Por isso é difícil elaborar receituários, mesmo quando todos os sinais forem positivos, porque «tem-se de submeter os próprios factores positivos a um atento discernimento, para que não se isolem uns dos outros, nem entrem em oposição entre si, absolutizando-se e combatendo-se mutuamente.
O mesmo se diga dos factores negativos: não são de rejeitar em bloco e sem distinções, porque em cada um deles pode ocultar-se algum valor que espera ser libertado e reconduzido à sua verdade plena»[4].

298. Mas, para acompanhar os outros neste caminho, primeiro precisas de ter o hábito de o percorreres tu próprio.
Maria fê-lo, enfrentando as suas questões e as suas próprias dificuldades, quando era ainda muito jovem.
Que Ela renove a tua juventude com a força da sua oração e te acompanhe sempre com a sua presença de Mãe.

* * *

E para concluir... um desejo

299. Queridos jovens, ficarei feliz vendo-vos correr mais rápido do que os lentos e medrosos.
Correi «atraídos por aquele Rosto tão amado, que adoramos na sagrada Eucaristia e reconhecemos na carne do irmão que sofre.
O Espírito Santo vos impulsione nesta corrida para a frente.
A Igreja precisa do vosso ímpeto, das vossas intuições, da vossa fé. Nós temos necessidade disto!
E quando chegardes aonde nós ainda não chegámos, tende a paciência de esperar por nós»[5].


Loreto, no Santuário da Santa Casa, a 25 de Março – Solenidade da Anunciação do Senhor – do ano 2019, sétimo do pontificado.

Franciscus

Revisão da versão portuguesa por AMA




Notas



[1] Romano Guardini, As idades da vidaOpera omnia, IV (Brescia 2015), 209.
[2] Cf. Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate (19 de Março de 2018), 169.
[3] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 222: AAS 105 (2013), 1111.
[4] São João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 10: AAS 84 (1992), 672.
[5] Francisco, Encontro e oração com jovens italianos, no Circo Máximo de Roma (11 de Agosto de 2018): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 23/VIII/2018), 2.


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