Páginas

04/05/2019

Leitura espiritual


COMPÊNDIO 
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA


PRIMEIRA PARTE



CAPÍTULO I

O DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS
A TODA A HUMANIDADE


II. JESUS CRISTO CUMPRIMENTO DO DESÍGNIO DE AMOR DO PAI


a) Em Jesus Cristo cumpre-se o evento decisivo da história de Deus com os homens


28 A benevolência e a misericórdia, que inspiram o agir de Deus e oferecem a sua chave de interpretação, tornam-se tão próximas do homem a ponto de assumir os traços do homem Jesus, o Verbo feito carne.
Na narração de Lucas, Jesus descreve o Seu ministério messiânico com as palavras de Isaías que evocam o significado profético do jubileu:

«O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, para sarar os contritos de coração, para anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos, para publicar o ano da graça do Senhor» [i].

Jesus coloca-se na linha do cumprimento, não só porque cumpre o que tinha sido prometido e que, portanto, era esperado por Israel, mas também no sentido mais profundo de que n’Ele se cumpre o evento definitivo da história de Deus com os homens.
Com efeito, Ele proclama:

«Aquele que me viu, viu também o Pai » [ii].

Jesus, por outras palavras, manifesta de modo tangível e definitivo quem é Deus e como Ele se comporta com os homens.

29 O amor que anima o ministério de Jesus entre os homens é aquele mesmo experimentado pelo Filho na união íntima com o Pai.
O Novo Testamento consente-nos penetrar a experiência que o próprio Jesus vive e comunica do amor de Deus Seu Pai — Abbá — e, portanto, no próprio coração da vida divina.
Jesus anuncia a misericórdia libertadora de Deus para com aqueles que encontra no Seu caminho, a começar pelos pobres, pelos marginalizados, pelos pecadores, e convida a segui-lo, pois Ele por primeiro, e de modo de todo singular, obedece ao desígnio do amor de Deus como Seu enviado no mundo.

A consciência que Jesus tem de ser o Filho expressa precisamente esta experiência originária.
O Filho recebeu tudo, e gratuitamente, do Pai:

«Tudo o que o Pai possui é meu» [iii].

Ele, por Sua vez, tem a missão de tornar todos os homens partícipes desse dom e dessa relação filial:

«Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que o que faz o seu senhor. Mas chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai» [iv].

Reconhecer o amor do Pai significa para Jesus inspirar a Sua acção na mesma gratuidade e misericórdia de Deus, geradoras de vida nova, e tornar-se assim, com a Sua própria existência, exemplo e modelo para os Seus discípulos.
Estes são chamados a viver como Ele e, depois da Sua Páscoa de morte e ressurreição, também n’Ele e d’Ele, graças ao dom sobreabundante do Espírito Santo, o Consolador que interioriza nos corações o estilo de vida do próprio Cristo.


b) A revelação do Amor Trinitário


30 O testemunho do Novo Testamento, com o deslumbramento sempre novo de quem foi fulgurado pelo amor de Deus [v], colhe na luz da plena revelação do Amor trinitário proporcionada pela Páscoa de Jesus Cristo, o significado último da Encarnação do Filho de Deus e da Sua missão entre os homens.
Escreve São Paulo:

«Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, mas que por todos nós o entregou, como não nos dará também, com ele todas as coisas?» [vi].

Semelhante linguagem usa-a também São João:

«Nisto consiste o amor: não em termos nós amado a Deus, mas em ter-nos Ele amado e enviado o seu Filho para expiar os nossos pecados» [vii].

31 O Rosto de Deus, progressivamente revelado na história da salvação, resplandece plenamente no Rosto de Jesus Cristo Crucifixo e Ressuscitado.
Deus é Trindade: Pai, Filho, Espírito Santo, realmente distintos e realmente um, porque comunhão infinita de amor.
O amor gratuito de Deus pela humanidade revela-se antes de tudo, como o amor fontal do Pai, de quem tudo provém; como comunicação gratuita que o Filho faz d’Ele, entregando-se ao Pai e doando-se aos homens; como fecundidade sempre nova do amor divino que o Espírito Santo derrama no coração dos homens [viii].

Com palavras e obras, e de modo pleno e definitivo com a Sua morte e ressurreição [ix], Jesus revela à humanidade que Deus é Pai e que todos somos chamados por graça a ser filhos d’Ele no Espírito [x], e por isso irmãos e irmãs entre nós.
É por esta razão que a Igreja crê firmemente que «a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e Mestre» [xi].

32 Contemplando a inefável gratuitidade e sobreabundância do dom divino do Filho por parte do Pai, que Jesus ensinou e testemunhou doando a Sua vida por nós, o Apóstolo predilecto do Senhor daí aufere o profundo sentido e a mais lógica consequência:

«Caríssimos, se Deus assim nos amou, também nós devemos amar-nos uns aos outros. Ninguém jamais viu a Deus. Se nos amarmos mutuamente, Deus permanece em nós e o seu amor em nós é perfeito» [xii].

A reciprocidade do amor é exigida pelo mandamento que o próprio Jesus define novo e Seu:

«Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros» [xiii].

O mandamento do amor recíproco traça a via para viver em Cristo a vida trinitária na Igreja, Corpo de Cristo, e transformar com Ele a história até ao seu pleno cumprimento na Jerusalém Celeste.

33 O mandamento do amor recíproco, que constitui a lei de vida do povo de Deus [xiv], deve inspirar, purificar e elevar todas as relações humanas na vida social e política:

«Humanidade significa chamada à comunhão interpessoal»[xv], porque a imagem e semelhança do Deus trinitário são a raiz de «todo o “ethos” humano cujo vértice é o mandamento do amor» [xvi].

O fenómeno cultural, social, económico e político hodierno da interdependência, que intensifica e torna particularmente evidentes os vínculos que unem a família humana, ressalta uma vez mais, à luz da Revelação, «um novo modelo de unidade do género humano, no qual, em última instância, a solidariedade se deve inspirar.
Este supremo modelo de unidade, reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas, é o que nós cristãos designamos com a palavra “comunhão”» [xvii].

III. A PESSOA HUMANA NO DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS

a) O Amor trinitário, origem e meta da pessoa humana

34 A revelação em Cristo do mistério de Deus como Amor trinitário é também a revelação da vocação da pessoa humana ao amor.
Tal revelação ilumina a dignidade e a liberdade pessoal do homem e da mulher, bem como a intrínseca sociabilidade humana em toda a profundidade:

«Ser pessoa à imagem e semelhança de Deus comporta um existir em relação, em referência ao outro “eu”» [xviii], porque o próprio Deus, uno e trino, é comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Na comunhão de amor que é Deus, em que as três Pessoas divinas se amam reciprocamente e são o Único Deus, a pessoa humana é chamada a descobrir a origem e a meta da sua existência e da história. Os Padres Conciliares, na Constituição Pastoral «Gaudium et spes», ensinam que «quando o Senhor Jesus pede ao Pai que “todos sejam um..., como nós também somos um” [xix], abrindo perspectivas inacessíveis à razão humana, acena a uma certa semelhança entre a união das Pessoas divinas e a união dos filhos de Deus, na verdade e na caridade.
Esta semelhança mostra que o homem, única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode realizar-se plenamente senão pelo dom sincero de si mesmo [xx]» [xxi].

35 A revelação cristã projecta uma nova luz sobre a identidade, sobre a vocação e sobre o destino último da pessoa e do género humano. Toda a pessoa é por Deus criada, amada e salva em Jesus Cristo, e realiza-se tecendo multíplices relações de amor, de justiça e de solidariedade com as outras pessoas, na medida em que desenvolve a sua actividade multiforme no mundo.
O agir humano, quando tende a promover a dignidade e a vocação integral da pessoa, a qualidade das suas condições de existência, o encontro e a solidariedade dos povos e das nações, é conforme ao desígnio de Deus, que nunca deixa de mostrar o Seu amor e a Sua Providência para com Seus filhos.

36 As páginas do primeiro livro da Sagrada Escritura, que descrevem a criação do homem e da mulher à imagem e semelhança de Deus [xxii], encerram um ensinamento fundamental sobre a identidade e a vocação da pessoa humana.
Dizem-nos que a criação do homem e da mulher é um acto livre e gratuito de Deus; que o homem e a mulher constituem, porque livres e inteligentes, o tu criado de Deus e que somente na relação com Ele podem descobrir e realizar o significado autêntico e pleno de sua vida pessoal e social; que estes, precisamente na sua complementaridade e reciprocidade, são a imagem do Amor Trinitário no universo criado; que a eles, que são o ápice da criação, o Criador confia a tarefa de ordenar segundo o desígnio do seu Criador a natureza criada [xxiii].

37 O livro da Génesis propõe-nos algumas linhas mestras da antropologia cristã: a inalienável dignidade da pessoa humana, que tem a sua raiz e a sua garantia no desígnio criador de Deus; a sociabilidade constitutiva do ser humano, que tem o seu protótipo na relação originária entre o homem e a mulher, «união esta que foi a primeira expressão da comunhão de pessoas» [xxiv]; o significado do agir humano no mundo, que é ligado à descoberta e ao respeito da lei natural que Deus imprimiu no universo criado, para que a humanidade o habite e guarde segundo o Seu projecto [xxv].

Esta visão da pessoa humana, da sociedade e da história é radicada em Deus e é iluminada pela realização do Seu desígnio de salvação.


[i] 4, 18-19; cf. Is 61, 1-2
[ii] Jo 14, 9
[iii] Jo 16, 15
[iv] Jo 15, 15
[v] cf. Rm 8, 26
[vi] Rm 8, 31-32
[vii] 1 Jo 4, 10
[viii] cf. Rm 5, 5
[ix] Cf. Concílio Vaticano II, Const. dogm. Dei Verbum, 4: AAS 58 (1966) 819.
[x] cf. Rm 8, 15; Gal 4, 6
[xi] Cf. Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 10: AAS 58 (1966) 1033.
[xii] 1 Jo 4, 11-12
[xiii] Jo 13, 34
[xiv] Cf. Concílio Vaticano, Const. Dogm. Lumen gentium, 9: AAS 57 (1965) 12-14.
[xv] João Paulo II, Carta apost. Mulieris dignitatem, 7: AAS 80 (1988) 1666.
[xvi] João Paulo II, Carta apost. Mulieris dignitatem, 7: AAS 80 (1988) 1665-1666.
[xvii] João Paulo II, Carta encicl. Sollicitudo rei socialis, 40: AAS 80 (1988) 569.
[xviii] João Paulo II, Carta apost. Mulieris dignitatem, 7: AAS 80 (1988) 1664.
[xix] Jo 17, 21-22
[xx] cf. Lc 17, 33
[xxi] Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 24: AAS 58 (1966) 1045.
[xxii] cf. Gn 1, 26-27
[xxiii] cf. Gn 1, 28
[xxiv] Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 12: AAS 58 (1966) 1034.
[xxv] cf. 2Pd 3, 13

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.