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25/05/2019

Leitura espiritual


COMPÊNDIO 
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA



CAPÍTULO III

A PESSOA E OS SEUS DIREITOS

I. DOUTRINA SOCIAL E PRINCÍPIO PERSONALISTA

105 A Igreja vê no homem, em cada homem, a imagem do próprio Deus vivo; imagem que encontra e é chamada a encontrar sempre mais profundamente plena explicação de si no mistério de Cristo, Imagem perfeita de Deus, revelador de Deus ao homem e do homem a si mesmo. A este homem, que recebeu do próprio Deus uma incomparável e inalienável dignidade, a Igreja se volta e lhe rende o serviço mais alto e singular, chamando-o constantemente à sua altíssima vocação, para que dela seja cada vez mais consciente e digno. Cristo, o Filho de Deus, «com a Sua encarnação, num certo sentido, se uniu a cada homem»; por isso a Igreja reconhece como sua tarefa fundamental fazer com que tal união se possa continuamente actuar e renovar. Em Cristo Senhor, a Igreja indica e entende, ela mesma por primeiro, percorrer a via do homem, que convida a reconhecer em toda e qualquer pessoa, próxima ou distante, conhecido ou desconhecido, e sobretudo no pobre e em quem sofre, um irmão «pelo qual Cristo morreu» (1 Cor 8,11; Rm 14, 15).

106 Toda a vida social é expressão do seu inconfundível protagonista: a pessoa humana. De tal facto a Igreja sempre soube, amiúde e de muitos modos, fazer-se intérprete autorizada, reconhecendo e afirmando a centralidade da pessoa humana em todo âmbito e manifestação da sociabilidade: «A sociedade humana é objecto da doutrina social da Igreja, visto que ela não se encontra nem fora nem acima dos homens socialmente unidos, mas existe exclusivamente neles e, portanto, para eles». Este importante reconhecimento encontra expressão na afirmação de que «longe de ser o objecto e o elemento passivo da vida social», o homem, pelo contrário, «é, e dela deve ser e permanecer, o sujeito, o fundamento e o fim». Nele, portanto, tem origem a vida social, a qual não pode renunciar a reconhecê-lo seu sujeito activo e responsável e a ele deve ser finalizada toda e qualquer modalidade expressiva da sociedade.

107 O homem, tomado na sua concretude histórica, representa o coração e a alma do ensinamento social católico. Toda a doutrina social se desenvolve, efectivamente, a partir do princípio que afirma a intangível dignidade da pessoa humana. Mediante as multíplices expressões dessa consciência, a Igreja entendeu, antes de tudo, tutelar a dignidade humana perante toda tentativa de repropor imagens redutivas e distorcidas; ademais, ela tem repetidas vezes denunciado as muitas violações de tal dignidade. A história atesta que da trama das relações sociais emergem algumas dentre as mais amplas possibilidades de elevação do homem, mas aí se aninham também as mais execráveis desconsiderações da sua dignidade.

II. A PESSOA HUMANA «IMAGO DEI»

a) Criatura à imagem de Deus

108. A mensagem fundamental da Sagrada Escritura anuncia que a pessoa humana é criatura de Deus (cf. Sal 139, 14-18) e identifica o elemento que a caracteriza e distingue no seu ser à imagem de Deus: «Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher» (Gn 1, 27). Deus põe a criatura humana no centro e no vértice da criação: no homem (em hebraico «Adam»), plasmado com a terra («adamah»), Deus insufla-lhe pelas narinas o hálito da vida (cf. Gn 2, 7). Portanto, «por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas uma coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de doar-se livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado, por graça, a uma aliança com o seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que ninguém mais pode dar em seu lugar».

109 A semelhança com Deus põe em luz o facto de que a essência e a existência do homem são constitucionalmente relacionadas com Deus do modo mais profundo. É uma relação que existe por si mesma, não começa, por assim dizer, num segundo momento e não se acrescenta a partir de fora. Toda a vida do homem é uma pergunta e uma procura de Deus. Esta relação com Deus pode ser tanto ignorada como esquecida ou removida, mas nunca pode ser eliminada. Dentre todas as criaturas, com efeito, somente o homem é «“capaz”de Deus» («homo est Dei capax»). O ser humano é um ser pessoal criado por Deus para a relação com Ele, que somente na relação pode viver e exprimir-se e que tende naturalmente a Ele.

110 A relação entre Deus e o homem reflecte-se na dimensão relacional e social da natureza humana. O homem, com efeito, não é um ser solitário, mas «por sua natureza íntima um ser social» e «sem relações com os outros não pode nem viver nem desenvolver seus dotes». Em relação a isso é muito significativo o facto de que Deus criou o ser humano como homem e mulher (cf. Gn 1, 27). Muito eloquente é, efectivamente, «aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden, quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn 2, 20). Somente a aparição da mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf. Gn 2, 23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo interpessoal, tão vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher, reflecte-Se o próprio Deus, abrigo definitivo e plenamente feliz de toda a pessoa».

111 O homem e a mulher têm a mesma dignidade e são de igual nível e valor, não só porque ambos, na sua diversidade, são imagem de Deus, mas ainda mais profundamente porque é imagem de Deus o dinamismo de reciprocidade que anima o nós do casal humano. Na relação de comunhão recíproca, homem e mulher realizam-se a si próprios profundamente, redescobrindo-se como pessoas através do dom sincero de si. Seu pacto de união é apresentado nas Sagradas Escrituras como uma imagem do Pacto de Deus com os homens (cf. Os 1-3; Is 54; Ef 5, 21-33) e, ao mesmo tempo, como um serviço à vida. O casal humano pode participar, assim, da criatividade de Deus: «Deus os abençoou: “Frutificai, disse Ele, e multiplicai-vos, enchei a terra”» (Gén 1, 28).

112 O homem e a mulher estão em relação com os outros antes de tudo como guardiões de sua vida. «E ao homem pedirei conta da alma do homem, seu irmão» (Gn 9, 5), reafirma Deus a Noé após o dilúvio. Nesta perspectiva, a relação com Deus exige que se considere a vida do homem sagrada e inviolável. O quinto mandamento «Não matarás» (Ex 20, 13; Dt 5, 17) tem valor porque só Deus é Senhor da vida e da morte. O respeito que se deve à inviolabilidade e à integridade da vida física tem o seu cume no mandamento positivo: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19, 18), com que Jesus Cristo obriga a responsabilizar-se pelo próximo (cf. Mt 22, 37-40; Mc 12, 29-31; Lc 10, 27-28).

113 Com esta particular vocação para a vida, o homem e a mulher se encontram também diante de todas as outras criaturas. Eles podem e devem submetê-los ao próprio serviço e usufruir delas, mas o seu senhorio sobre o mundo exige o exercício da responsabilidade, não é uma liberdade de desfrute arbitrário e egoístico. Toda a criação, na verdade, tem o valor de «coisa boa » (cf. Gén 1, 10.12.18.21.25) aos olhos de Deus, que é o seu Autor. O homem deve descobrir e respeitar este valor: é este um desafio maravilhoso à sua inteligência, que o deve elevar como uma asa rumo à contemplação da verdade de todas as suas criaturas, ou seja, daquilo que Deus viu de bom nelas. O Livro da Génese ensina, efectivamente, que o domínio do homem sobre o mundo consiste em dar nome às coisas (cf. Gn 2, 19-20): com a denominação o homem deve reconhecer as coisas por aquilo que são e estabelecer com cada uma delas uma relação de responsabilidade.

114 O homem está em relação também consigo mesmo e pode reflectir sobre si próprio. As Sagradas Escrituras falam, nesse sentido, do coração do homem. O coração designa precisamente a interioridade espiritual do homem, ou seja, aquilo que o distingue de todas as outras criaturas: com efeito, «todas as coisas que Deus fez são boas, a seu tempo. Ele pós, além disso, no seu coração [dos homens], a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro» (Ecl 3, 11). O coração indica, ao fim e ao cabo, as faculdades espirituais mais próprias do homem, que são suas prerrogativas, enquanto criado à imagem do seu Criador: a razão, o discernimento do bem e do mal, a vontade livre. Quando escuta a aspiração profunda do seu coração, o homem não pode deixar de fazer próprias as palavras de Santo Agostinho: «Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós».

b) O drama do pecado

115 A admirável visão da criação do homem por parte de Deus é incindível do quadro dramático do pecado das origens. Com uma afirmação lapidar o apóstolo Paulo sintetiza a narração da queda do homem contida nas primeiras páginas da Bíblia: «por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte» (Rom 5, 12). O homem, contra a proibição de Deus, se deixa seduzir pela serpente e deita a mão à árvore da vida caindo em poder da morte. Com esse gesto o homem tenta forçar o seu limite de criatura, desafiando Deus, único Senhor do homem e fonte da vida. Um pecado de desobediência (cf. Rm 5, 19) que separa o homem de Deus.

Da Revelação sabemos que Adão, o primeiro homem, com a transgressão do mandamento de Deus, perde a santidade e a justiça em que estava constituído, recebidas não somente para si, mas para toda a humanidade: « ao ceder ao Tentador, Adão e Eva cometem um pecado pessoal, mas este pecado afecta a natureza humana, que vão transmitir em um estado decaído. É um pecado que será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais».

116 Na raiz das lacerações pessoais e sociais, que ofendem em vária medida o valor e a dignidade da pessoa humana, encontra-se uma ferida no íntimo do homem: «À luz da fé chamamos-lhe pecado, começando pelo pecado original, que cada um traz consigo desde o nascimento, como uma herança recebida dos primeiros pais, até aos pecados que cada um comete, abusando da própria liberdade». A consequência do pecado, enquanto ato de separação de Deus, é precisamente a alienação, isto é, a ruptura do homem não só com Deus, como também consigo mesmo, com os demais homens e com o mundo circunstante: «a ruptura com Deus desemboca dramaticamente na divisão entre os irmãos. Na descrição do “primeiro pecado”, a ruptura com Javé despedaçou, ao mesmo tempo, o fio da amizade que unia a família humana; tanto assim que as páginas do Génesis que se seguem nos mostram o homem e a mulher, como que a apontarem com o dedo acusador um contra o outro; depois o irmão que, hostil ao irmão, acaba por tirar-lhe a vida. Segundo a narração dos fatos de Babel, a consequência do pecado é a desagregação da família humana, que já começara com o primeiro pecado e agora chega ao extremo na sua forma social». Reflectindo sobre o mistério do pecado não se pode deixar de considerar esta trágica concatenação de causa e de efeito.

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