Páginas

24/05/2019

Leitura espiritual


COMPÊNDIO 
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA


CAPÍTULO II

MISSÃO DA IGREJA E DOUTRINA SOCIAL

III. A DOUTRINA SOCIAL DO NOSSO TEMPO:
 ACENOS HISTÓRICOS

95 Com a Encíclica « Pacem in terris», João XXIII põe de realce o tema da paz, numa época marcada pela proliferação nuclear. A «Pacem in terris» contém, ademais, uma primeira aprofundada reflexão da Igreja sobre os direitos; é a Encíclica da paz e da dignidade humana. Ela prossegue e completa o discurso da «Mater et Magistra » e, na direcção indicada por Leão XIII, sublinha a importância da colaboração entre todos: é a primeira vez que um documento da Igreja é dirigido também a «todas as pessoas de boa vontade», que são chamados a uma «imensa tarefa de recompor as relações da convivência na verdade, na justiça, no amor, na liberdade»[169]. A «Pacem in terris» se detém sobre os poderes públicos da comunidade mundial, chamados a enfrentar «os problemas de conteúdo económico, social, político ou cultural, (...) da alçada do bem comum universal». No décimo aniversário da «Pacem in terris», o Cardeal Maurice Roy, Presidente da Pontifícia Comissão Justiça e Paz, enviou a Paulo VI uma Carta juntamente com um documento com uma série de reflexões sobre a capacidade do ensinamento da Encíclica joanina de iluminar os problemas novos relacionados com a promoção da paz.

96 A Constituição pastoral «Gaudium et spes» (1965), do Concílio Vaticano II, constitui uma significativa resposta da Igreja às expectativas do mundo contemporâneo. Na citada Constituição, «em sintonia com a renovação eclesiológica, se reflete numa nova concepção de ser comunidade dos crentes e povo de Deus. Ela suscitou, portanto, novo interesse pela doutrina contida nos documentos precedentes acerca do testemunho e da vida dos cristãos, como caminhos autênticos para tornar visível a presença de Deus no mundo»]. A «Gaudium et spes» traça o rosto de uma Igreja «verdadeiramente solidária com o género humano e com a sua história», que caminha juntamente com a humanidade inteira e experimenta com o mundo a mesma sorte terrena, mas que ao mesmo tempo «é como que o fermento e a alma da sociedade humana, destinada a ser renovada em Cristo e transformada na família de Deus».

A «Gaudium et spes» aborda organicamente os temas da cultura, da vida económico-social, do matrimónio e da família, da comunidade política, da paz e da comunidade dos povos, à luz da visão antropológica cristã e da missão da Igreja. Tudo é considerado a partir da pessoa e em vista da pessoa: «a única criatura que Deus quis por se mesma». A sociedade, as suas estruturas e o seu desenvolvimento não podem ser queridos por si mesmos mas para o «aperfeiçoamento da pessoa humana». Pela primeira vez o Magistério solene da Igreja, no seu mais alto nível, se exprime tão amplamente acerca dos diversos aspectos temporais da vida cristã: «Deve reconhecer-se que a atenção da Constituição em relação às mudanças sociais, psicológicas, políticas, económicas, morais e religiosas estimulou cada vez mais, no último vinténio, a preocupação pastoral da Igreja pelos problemas dos homens e o diálogo com o mundo».

97 Um outro documento do Concílio Vaticano II muito importante no «corpus» da doutrina social da Igreja é a declaração «Dignitatis humanae» (1965), no qual se proclama o direito à liberdade religiosa. O documento trata o tema em dois capítulos. No primeiro, de carácter geral, se afirma que o direito à liberdade religiosa tem o seu fundamento na dignidade da pessoa humana e afirmam que ele deve ser reconhecido e sancionado como direito civil no ordenamento jurídico da sociedade. O segundo capítulo aborda o tema à luz da Revelação esclarecendo as suas implicações pastorais, recordando tratar-se de um direito que concerne não somente às pessoas individualmente consideradas, ma também às diversas comunidades.

98 «O desenvolvimento é o novo nome da paz» proclama solenemente Paulo VI na Encíclica «Populorum progressio» (1967), que pode ser considerada uma amplificação do capítulo sobre a vida económico-social da «Gaudium et spes», com a introdução porém de algumas novidades significativas. Em particular ela traça as coordenadas de um desenvolvimento integral do homem e de um desenvolvimento solidário da humanidade: «duas temáticas estas que devem considerar-se como eixos à volta dos quais se estrutura o tecido da encíclica. Querendo convencer os destinatários da urgência de uma acção solidária, o Papa apresenta o desenvolvimento como “a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas” e especifica as suas características». Esta passagem não está circunscrita às dimensões meramente económicas e técnicas, mas implica para cada pessoa a aquisição da cultura, o respeito da dignidade dos outros, o reconhecimento «dos valores supremos, e de Deus que é a origem e o termo deles». O desenvolvimento favorável todos responde a uma exigência de justiça em escala mundial que garanta uma paz planetária e torne possível a realização de «um humanismo total», governado pelos valores espirituais.

99 Nesta perspectiva, Paulo VI instituiu, em 1967, a Pontifícia Comissão «Justitia et Pax», realizando um voto dos Padres Conciliares, para os quais é «muito oportuna a criação de um organismo da Igreja universal, com o fim de despertar a comunidade dos católicos para que se promovam o progresso das regiões indigentes e a justiça social entre as nações». Por iniciativa de Paulo VI, a começar de 1968, a Igreja celebra no primeiro dia do ano o Dia Mundial da Paz. O mesmo Pontífice dá início à feliz tradição das Mensagens que se ocupam do tema de cada Dia Mundial da Paz, acrescendo assim o «corpus» da doutrina social.

100 No início dos anos Setenta, num clima turbulento de contestação fortemente ideológica, Paulo VI retoma a mensagem social de Leão XIII e a actualiza, por ocasião do octogésimo aniversário da «Rerum novarum», com a Carta apostólica «Octogesima adveniens». O Papa reflecte sobre a sociedade pós-industrial com todos os seus complexos problemas salientando a insuficiência das ideologias para responder a tais desafios: a urbanização, a condição juvenil, a condição da mulher, o desemprego, as discriminações, a emigração, o incremento demográfico, o influxo dos meios de comunicação social, o ambiente natural.

101 Noventa anos depois da «Rerum novarum» João Paulo II dedica a Encíclica «Laborem exercens» ao trabalho: bem fundamental para a pessoa, factor primário da actividade económica e chave de toda a questão social. A «Laborem exercens» delineia uma espiritualidade e uma ética do trabalho, no contexto de uma profunda reflexão teológica e filosófica. O trabalho não deve ser entendido somente em sentido objectivo e material, mas há que se levar em conta a sua dimensão subjectiva, enquanto actividade que exprime sempre a pessoa. Além de ser o paradigma decisivo da vida social, o trabalho tem toda a dignidade de um âmbito no qual deve encontrar realização a vocação natural e sobrenatural da pessoa.

102. Com a Encíclica «Sollicitudo rei socialis», João Paulo II comemora o vigésimo aniversário da «Populorum progressio» e aborda novamente o tema do desenvolvimento, para sublinhar dois dados fundamentais: «por um lado, a situação dramática do mundo contemporâneo, sob o aspecto do desenvolvimento que falta no Terceiro Mundo, e por outro lado, o sentido, as condições e as exigências dum desenvolvimento digno do homem». A Encíclica introduz a, diferença entre progresso e desenvolvimento, e afirma que «o verdadeiro desenvolvimento não pode limitar-se à multiplicação dos bens e dos serviços, isto é, àquilo que se possui, mas deve contribuir para a plenitude do “ser” do homem. Deste modo pretende-se delinear com clareza a natureza moral do verdadeiro desenvolvimento». João Paulo II, evocando o moto do pontificado de Pio XII, «Opus iustitiae pax», a paz como fruto da justiça, comenta: «Hoje poder-se-ia dizer, com a mesma justeza e com a mesma força de inspiração bíblica (cf. Is 32, 17; Tg 3, 18), Opus solidarietatis pax, a paz como fruto da solidariedade».

103 No centésimo aniversário da «Rerum novarum», João Paulo II promulga a sua terceira encíclica social, a «Centesimus annus», da qual emerge a continuidade doutrinal de cem anos de Magistério social da Igreja. Retomando um dos princípios basilares da concepção cristã da organização social e política, que fora o tema central da Encíclica precedente, o Papa escreve: «o princípio, que hoje designamos de solidariedade ... várias vezes Leão XIII o enuncia, com o nome “amizade”...; desde Pio XI é designado pela expressão mais significativa “caridade social”, enquanto Paulo VI, ampliando o conceito na linha das múltiplas dimensões actuais da questão social, falava de “civilização do amor”» João Paulo II realça como o ensinamento social da Igreja corre ao longo do eixo da reciprocidade entre Deus e o homem: reconhecer a Deus em cada homem e cada homem em Deus é a condição de um autêntico desenvolvimento humano. A análise articulada e aprofundada das «res novæ», e especialmente a grande guinada de 1989, com a derrocada do sistema soviético, contém um apreço pela democracia e pela economia livre, no quadro de uma indispensável solidariedade.

c) À luz e sob o impulso do Evangelho

104 Os documentos aqui evocados constituem as pedras fundamentais do caminho da doutrina social da Igreja dos tempos de Leão XIII aos nossos dias. Esta resenha sintética alongar-se-ia de muito se se levassem em conta todos os pronunciamentos motivados, mais do que por um tema específico, pela «preocupação pastoral de propor à comunidade cristã e a todos os homens de boa vontade os princípios fundamentais, os critérios universais e as orientações idóneas para sugerir as opções de fundo e a praxe coerente para cada situação concreta».

Na elaboração e no ensinamento desta doutrina, a Igreja foi e é animada por intentos não teoréticos, mas pastorais, quando se encontra diante das repercussões das mutações sociais sobre os seres humanos individualmente tomados, sobre multidões de homens e mulheres, sobre a sua mesma dignidade humana, nos contextos em que «se procura uma organização temporal mais perfeita, sem que este progresso seja acompanhado de igual desenvolvimento espiritual». Por estas razões, se constituiu e desenvolveu a doutrina social: «um corpo doutrinal actualizado, que se articula à medida em que a Igreja, dispondo da plenitude da Palavra revelada por Cristo Jesus e com a assistência do Espírito Santo (cf. Jo 14, 16. 26; 16, 13-15), vai lendo os acontecimentos, enquanto eles se desenrolam no decurso da história».

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.