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23/05/2019

Leitura espiritual


COMPÊNDIO 
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA


CAPÍTULO II

MISSÃO DA IGREJA E DOUTRINA SOCIAL

III. A DOUTRINA SOCIAL DO NOSSO TEMPO:
 ACENOS HISTÓRICOS

a) O início de um novo caminho

87 A locução doutrina social remonta a Pio XI e designa o corpus doutrinal referente à sociedade que, a partir da Encíclica Rerum novarum (1891) de Leão XIII, se desenvolveu na Igreja através do Magistério dos Romanos Pontífices e dos Bispos em comunhão com eles. A solicitude social certamente não teve início com tal documento, porque a Igreja jamais deixou de se interessar pela sociedade; não obstante a Encíclica «Rerum novarum» dá início a um novo caminho: inserindo-se numa tradição plurissecular, ela assinala um novo início e um substancial desenvolvimento do ensinamento em campo social.

Na sua contínua atenção ao homem na sociedade, a Igreja acumulou assim um rico património doutrinal. Ele tem as suas raízes na Sagrada Escritura, especialmente no Evangelho e nos escritos apostólicos, e tomou forma e corpo na doutrina dos Padres da Igreja, dos grandes Doutores da Idade Média, constituindo uma doutrina na qual, mesmo sem pronunciamentos magisteriais explícitos e directos, a Igreja se foi pouco a pouco reconhecendo.

88 Os eventos de natureza económica que se deram no século XIX tiveram consequências sociais, políticas e culturais lacerantes. Os acontecimentos ligados à revolução industrial subverteram a secular organização da sociedade, levantando graves problemas de justiça e pondo a primeira grande questão social, a questão operária, suscitada pelo conflito entre capital e trabalho. Nesse quadro, a Igreja advertiu a necessidade de intervir de modo novo: as «res novae», constituídas por tais eventos, representavam um desafio ao seu ensinamento e motivavam uma especial solicitude pastoral para com as ingentes massas de homens e mulheres. Era necessário um renovado discernimento da situação, apto a delinear soluções apropriadas para problemas insólitos e inexplorados.

b) Da «Rerum novarum» aos nossos dias

89 Em resposta à primeira grande questão social, Leão XIII promulga a primeira encíclica social, a «Rerum novarum». Ela examina a condição dos trabalhadores assalariados, particularmente penosa para os operários das indústrias, afligidos por uma indigna miséria. A questão operária é tratada segundo a sua real amplitude: é explorada em todas as suas articulações sociais e políticas, para ser adequadamente e avaliada à luz dos princípios doutrinais baseados na Revelação, na lei e na moral natural.

A «Rerum novarum» enumera os erros que provocam o mal social, exclui o socialismo como remédio e expõe, precisando-a e actualizando-a, «a doutrina católica acerca do trabalho, do direito de propriedade, do princípio de colaboração contraposto à luta de classe como meio fundamental para a mudança social, sobre o direito dos fracos, sobre a dignidade dos pobres e sobre as obrigações dos ricos, sobre o aperfeiçoamento da justiça mediante a caridade, sobre o direito a ter associações profissionais».

A «Rerum novarum» tornou-se a «carta magna» da actividade cristã em campo social. O tema central da doutrina social da Encíclica é o da instauração de uma ordem social justa, em vista do qual é mister individuar critérios de juízo que ajudem a avaliar os ordenamentos sócio-políticos existentes e formular linhas de acção para uma sua oportuna transformação.

90 A «Rerum novarum» enfrentou a questão operária com um método que se tornará «um paradigma permanente» para o desenvolvimento da doutrina social. Os princípios afirmados por Leão XIII serão retomados e aprofundados pelas encíclicas sociais sucessivas. Toda a doutrina social poderia ser entendida como uma actualização, um aprofundamento e uma expansão do núcleo originário de princípios expostos na «Rerum novarum». Com este texto, corajoso e de longo alcance, o Papa Leão XIII «conferiu à Igreja quase um “estatuto de cidadania” no meio das variáveis realidades da vida pública» e «escreveu esta palavra decisiva», que se tornou «um elemento permanente da doutrina social da Igreja», afirmando que os graves problemas sociais «só podiam ser resolvidos pela colaboração entre todas as forças intervenientes» e acrescentando também: «Quanto à Igreja, não deixará de modo nenhum faltar a sua quota-parte».

91 No início dos anos Trinta, em seguida à grave crise económica de 1929, o Papa Pio XI publica a Encíclica «Quadragesimo anno» (1931) comemorativa dos quarenta anos da «Rerum novarum». O Papa relê o passado à luz de uma situação económico-social em que, à industrialização se ajuntara a expansão do poder dos grupos financeiros, em âmbito nacional e internacional. Era o período pós-bélico, em que se iam afirmando na Europa os regimes totalitários, enquanto se exacerbava a luta de classe. A encíclica adverte acerca da falta de respeito à liberdade de associação e reafirma os princípios de solidariedade e de colaboração para superar as antinomias sociais. As relações entre capital e trabalho devem dar-se sob o signo da colaboração.

A «Quadragesimo anno» reafirma o princípio segundo o qual o salário deve ser proporcionado não só às necessidades do trabalhador, mas também às de sua família. O Estado, nas relações com o sector privado, deve aplicar o princípio de subsidiaridade, princípio que se tornará um elemento permanente da doutrina social. A encíclica refuta o liberalismo entendido como concorrência ilimitada das forças económicas, mas reconfirma o direito à propriedade privada, evocando-lhe a sua função social. Em uma sociedade por reconstruir desde as bases económicas, que se torna ela mesma e toda inteira «a questão» a enfrentar, «Pio XI sentiu o dever e a responsabilidade de promover um maior conhecimento, uma mais exacta interpretação e uma urgente aplicação da lei moral reguladora das relações humanas... para superar o conflito de classes e estabelecer uma nova ordem social baseada na justiça e na caridade».

92 Pio XI não deixou de elevar a voz contra os regimes totalitários que durante o seu pontificado se afirmaram na Europa. Já no dia 29 de Junho de 1931 Pio XI havia protestado contra os abusos do regime totalitário fascista na Itália com a Encíclica «Non abbiamo bisogno». Em 1937 publicou a Encíclica «Mit brennender Sorge», sobre a situação da Igreja Católica no Reich Germânico (14 de Março de 1937). O texto da «Mit brennender Sorge» foi lido do púlpito em todas as Igrejas, depois de ter sido distribuído no máximo segredo. A encíclica aparecia após anos de abusos e de violências e fora expressamente pedida a Pio XI pelos bispos alemães, após as medidas cada vez mais coativas e repressivas tomadas pelo Reich em 1936, particularmente em relação aos jovens, obrigados a inscrever-se na «Juventude hitleriana». O Papa dirige-se diretamente aos sacerdotes e aos religiosos, aos fiéis leigos, para os incentivar e chamar à resistência, enquanto uma verdadeira paz entre a Igreja e o Estado não se restabelecesse. Em 1938, perante a difusão do anti-semitismo, Pio XI afirmou: «Somos espiritualmente semitas».

Com a Carta encíclica «Divini Redemptoris», sobre o comunismo ateu e sobre a doutrina social cristã (19 de Março de 1937), Pio XI criticou de modo sistemático o comunismo, definido como «intrinsecamente perverso», e indicou como meios principais para dar remédio aos males por ele produzidos, a renovação da vida cristã, o exercício da caridade evangélica, o cumprimento dos deveres de justiça no plano interpessoal e social, em vista do bem comum, a institucionalização de corpos profissionais e interprofissionais.

93 As Radiomensagens natalicias de Pio XII, juntamente com outros importantes pronunciamentos em matéria social, aprofundam a reflexão magisterial sobre uma nova ordem social, governado pela moral e pelo direito e fundado na justiça e na paz. Durante o seu pontificado, Pio XII atravessou os anos terríveis da Segunda Guerra Mundial e os tempos difíceis da reconstrução. Ele não publicou encíclicas sociais, mas manifestou constantemente, em numerosos contextos, a sua preocupação com a ordem internacional subvertida: «Nos anos da guerra e do após-guerra, o Magistério social de Pio XII representou para muitos povos de todos os continentes e para milhões de crentes e não crentes a voz da consciência universal (...). Com a sua autoridade moral e o seu prestígio, Pio XII levou a luz da sabedoria cristã a inumeráveis homens de todas as categorias e nível social».

Uma das características fundamentais dos pronunciamentos de Pio XII está na importância dada à conexão entre moral e direito. O Papa insiste sobre a noção de direito natural, como alma de um ordenamento social concretamente operante quer no plano nacional quer no plano internacional. Um outro aspecto importante do ensinamento de Pio XII está na atenção dada às categorias profissionais e empresariais, chamadas a concorrer em plena consciência para a consecução do bem comum: «Pela sua sensibilidade e inteligência em detectar os “sinais dos tempos”, Pio XII pode considerar-se o precursor imediato do Concílio Vaticano II e do ensinamento social dos Papas que lhe sucederam».

94 Os anos Sessenta abrem horizontes promissores: o reinício após as devastações da guerra, a descolonização da África, os primeiros tímidos sinais de um degelo nas relações entre os dois blocos, americano e soviético. Neste clima, o beato João XXIII lê em profundidade os «sinais dos tempos». A questão social se está universalizando e abarca todos os países: ao lado da questão operária e da revolução industrial, se delineiam os problemas da agricultura, das áreas em via de desenvolvimento, do incremento demográfico e os referentes à necessidade de cooperação económica mundial. As desigualdades, antes advertidas no interior das nações, aparecem no âmbito internacional e fazem emergir cada vez mais a situação dramática em que se encontra o Terceiro Mundo.

João XXIII, na Encíclica «Mater et Magistra» (1961), «pretende actualizar os documentos já conhecidos e avançar no sentido de comprometer toda a comunidade cristã». As palavras-chave da encíclica são comunidade e socialização: a Igreja é chamada, na verdade, na justiça e no amor, a colaborar com todos os homens para construir uma autêntica comunhão. Por tal via o crescimento económico não se limitará a satisfazer as necessidades dos homens, mas poderá promover também a sua dignidade.

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