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21/05/2019

Leitura espiritual


 
COMPÊNDIO
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA


CAPÍTULO II

MISSÃO DA IGREJA E DOUTRINA SOCIAL

II. A NATUREZA DA DOUTRINA SOCIAL

a) Um saber iluminado pela fé

72 A doutrina social da Igreja não foi pensada desde o princípio como um sistema orgânico; mas foi se formando pouco a pouco, com progressivos pronunciamentos do Magistério sobre os temas sociais. Tal génese torna compreensível o facto que tenham podido intervir algumas oscilações acerca da natureza, do método e da estrutura epistemológica da doutrina social da Igreja. Precedido por um significativo aceno na «Laborem exercens»[i], um esclarecimento decisivo nesse sentido está contido na Encíclica «Sollicitudo rei socialis»: a doutrina social da Igreja pertence, não ao campo da ideologia, mas ao «da teologia e precisamente da teologia moral»[ii]. Ela não é definível segundo parâmetros sócio-económicos. Não é um sistema ideológico ou pragmático, que visa definir e compor as relações económicas, políticas e sociais, mas uma categoria a se. É «a formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial. A sua finalidade principal é interpretar estas realidades, examinando a sua conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e ao mesmo tempo transcendente; visa, pois, orientar o comportamento cristão»[iii].

73 A doutrina social, portanto, é de natureza teológica e especificamente teológico-moral, «tratando-se de uma doutrina destinada a orientar o comportamento das pessoas»[iv]: «Ela situa-se no cruzamento da vida e da consciência cristã com as situações do mundo e exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias, agentes culturais e sociais, políticos e homens de Estado realizam para lhe dar forma e aplicação na história»[v].
Efectivamente, a doutrina social reflete os três níveis do ensinamento teológico-moral: o nível fundante das motivações; o diretivo das normas do viver social; o deliberativo das consciências, chamadas a mediar as normas objectivas e gerais nas situações sociais concretas e particulares. Estes três níveis definem implicitamente também o método próprio e a específica estrutura epistemológica da doutrina social da Igreja.

74 A doutrina social tem o seu fundamento essencial na Revelação bíblica e na Tradição da Igreja. Neste manancial, que vem do alto, ela haure a inspiração e a luz para compreender, julgar e orientar a experiência humana e a história. Antes e acima de tudo está o projeto de Deus sobre a criação e, em particular, sobre a vida e o destino do homem, chamado à comunhão trinitária.

A fé, que acolhe a palavra divina e a põe em prática, interage eficazmente com a razão. A inteligência da fé, em particular da fé orientada à práxis, é estruturada pela razão e vale-se de todos os contributos que esta lhe oferece. Também a doutrina social, enquanto saber aplicado à contingência e à historicidade da praxe, conjuga juntas «fides et ratio»[vi] e é expressão eloquente da sua fecunda relação.

75 A fé e a razão constituem as duas vias cognoscitivas da doutrina social, em sendo duas as fontes nas quais esta haure: a Revelação e a natureza humana. O conhecer da fé compreende e dirige a vida do homem à luz do mistério histórico-salvífico, do revelar-se e doar-se de Deus em Cristo por nós homens. Esta inteligência da fé inclui a razão, mediante a qual esta explica e compreende a verdade revelada e a integra com a verdade da natureza humana, hauridas no projecto divino expresso pela criação[vii], ou seja, a verdade integral da pessoa humana enquanto ser espiritual e corpóreo, em relação com Deus, com os outros seres humanos e com todas as demais criaturas[viii].

O centrar-se sobre o mistério de Cristo, portanto, não enfraquece ou exclui o papel da razão e, por isso, não priva a doutrina social de plausibilidade racional e, portanto, da sua destinação universal. Dado que o mistério de Cristo ilumina o mistério do homem, a doutrina social confere plenitude de sentido à compreensão da dignidade humana e das exigências morais que a tutelam. A doutrina social da Igreja é um conhecer iluminado pela fé, que — precisamente por isso — expressa a sua maior capacidade de conhecimento. Ela dá razão a todos das verdades que afirma e dos deveres que comporta: pode encontrar acolhimento e aceitação por parte de todos.

b) Em diálogo cordial com todo o saber

76 A doutrina social da Igreja se vale de todos os contributos cognoscitivos, qualquer que seja o saber donde provenham, e tem uma importante dimensão interdisciplinar: «Para encarnar melhor nos diversos contextos sociais, económicos e políticos em contínua mutação, essa doutrina entra em diálogo com diversas disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em se os contributos que delas provêm»[ix]. A doutrina social vale-se dos contributos de significado da filosofia e igualmente dos contributos descritivos das ciências humanas.

77 Essencial é, em primeiro lugar, o contributo da filosofia, já mencionado ao se evocar a natureza humana qual fonte e a razão qual via cognoscitiva da mesma fé. Mediante a razão, a doutrina social assume a filosofia na sua própria lógica interna, ou seja no argumentar que lhe é próprio.

Afirmar que a doutrina social deve ser adscrita antes à teologia que à filosofia não significa desconhecer o menosprezar o papel e o aporte filosófico. A filosofia é, efectivamente, instrumento apto e indispensável para uma correta compreensão de conceitos basilares da doutrina social — como a pessoa, a sociedade, a liberdade, a consciência, a ética, o direito, a justiça, o bem comum, a solidariedade, a subsidiariedade, o Estado —, compreensão tal que inspire uma convivência social harmoniosa. É a filosofia ainda a ressaltar a plausibilidade racional da luz que o Evangelho projecta sobre a sociedade e a exigir de cada inteligência e consciência a abertura e o assentimento à verdade.

78 Um significativo contributo à doutrina social da Igreja provém das ciências humanas e sociais[x]: pela parte de verdade de que é portador, nenhum saber é excluído. A Igreja reconhece e acolhe tudo quanto contribui para a compreensão do homem na sempre mais extensa, mutável e complexa rede das relações sociais. Ela é consciente do facto de que não se chega a um conhecimento profundo do homem somente com a teologia, sem a contribuição de muitos saberes, aos quais a própria teologia faz referência.

A abertura atenta e constante às ciências faz com que a doutrina social da Igreja adquira competência, concretude e actualidade. Graças a elas, a Igreja pode para compreender de modo mais preciso o homem na sociedade, de falar aos homens do próprio tempo de modo mais convincente e cumprir de modo eficaz a sua tarefa de encarnar, na consciência e na sensibilidade social do nosso tempo, a palavra de Deus e a fé, da qual a doutrina social «parte»[xi].

Este diálogo interdisciplinar compele também as ciências a colher as perspectivas de significado, de valor e de empenhamento que a doutrina social desvela e «a abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de cada pessoa, conhecida e amada na plenitude da sua vocação»[xii].



[i] João Paulo II, Mensagem ao Secretário Geral das Nações Unidas por ocasião do Encontro Mundial sobre as Crianças (22 de Setembro de 1990): L’Osservatore Romano, ed. em Português, 14 de Outubro de 1990, p. 13.
[ii] Cf. João Paulo II, Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz 2001, 13: AAS 93 (2001) 241; Pontifício Conselho Cor Unum – Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, Os refugiados, um desafio à solidariedade, 6: Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 1992, p. 8.
[iii] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 2241.
[iv] Cf. Santa Sede, Carta dos direitos da família, art.12: Tipografia Poliglota Vaticana, Cidade do Vaticano 1983, 14; João Paulo II, Exort. apost. Familiaris consortio, 77: AAS 74 (1982) 175-178.
[v] Cf. Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, 66: AAS 58 (1966) 1087-1088; João Paulo II, Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz 1993, 3: AAS 85 (1993)
[vi] João Paulo II, Carta encicl. Laborem exercens, 21: AAS 73 (1981) 634.
[vii] Cf. Paulo VI, Carta encicl. Populorum progressio, 23: AAS 59 (1967) 268-269.
[viii] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Para uma melhor distribuição da terra. O desafio da reforma agrária (23 de Novembro de 1997), 13: Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 1997, p. 15.
[ix] Cf. Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Para uma melhor distribuição da terra. O desafio da reforma agrária (23 de Novembro de 1997), 35: Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 1997, p. 30-31.
[x] Cf. João Paulo II, Carta encicl. Laborem exercens, 19: AAS 73 (1981) 625-629.
[xi] Cf. João Paulo II, Carta encicl. Laborem exercens, 19: AAS 73 (1981) 625-629.
[xii] João Paulo II, Carta encicl. Laborem exercens, 19: AAS 73 (1981) 629.

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