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09/03/2019

Leitura espiritual



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA  

CAPÍTULO II

A REALIDADE E OS DESAFIOS DAS FAMÍLIAS.

Alguns desafios

54. Neste relance sobre a realidade, desejo salientar que, apesar das melhorias notáveis registadas no reconhecimento dos direitos da mulher e na sua participação no espaço público, ainda há muito que avançar nalguns países. Não se acabou ainda de erradicar costumes inaceitáveis; destaco a violência vergonhosa que, às vezes, se exerce sobre as mulheres, os maus-tratos familiares e várias formas de escravidão, que não constituem um sinal de força masculina, mas uma covarde degradação. A violência verbal, física e sexual, perpetrada contra as mulheres nalguns casais, contradiz a própria natureza da união conjugal. Penso na grave mutilação genital da mulher nalgumas culturas, mas também na desigualdade de acesso a postos de trabalho dignos e aos lugares onde as decisões são tomadas. A história carrega os vestígios dos excessos das culturas patriarcais, onde a mulher era considerada um ser de segunda classe, mas recordemos também o «aluguer de ventres» ou «a instrumentalização e comercialização do corpo feminino na cultura mediática contemporânea».[i] Alguns consideram que muitos dos problemas actuais ocorreram a partir da emancipação da mulher. Mas este argumento não é válido, «é falso, não é verdade! Trata-se de uma forma de machismo».

43 A idêntica dignidade entre o homem e a mulher impele a alegrar-nos com a superação de velhas formas de discriminação e o desenvolvimento dum estilo de reciprocidade dentro das famílias. Se aparecem formas de feminismo que não podemos considerar adequadas, de igual modo admiramos a obra do Espírito no reconhecimento mais claro da digni­dade da mulher e dos seus direitos.

55. O homem «desempenha um papel igualmente decisivo na vida da família, especialmente na protecção e sustentamento da esposa e dos filhos. (...) Muitos homens estão conscientes da importância do seu papel na família e vivem-no com as qualidades peculiares da índole masculina. A ausência do pai penaliza gravemente a vida familiar, a educação dos filhos e a sua integração na sociedade. Tal ausência pode ser física, afectiva, cognitiva e espiritual. Esta carência priva os filhos dum modelo adequado do comportamento paterno».[ii],[iii] Outro desafio surge de várias formas duma ideologia genericamente chamada gender, que «nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base antropológica da família. Esta ideologia leva a projectos educativos e directrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afectiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e mulher. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que também muda com o tempo». [iv] Preocupa o facto de algumas ideologias deste tipo, que pretendem dar resposta a certas aspirações por vezes compreensíveis, procurarem impor-se como pensamento único que determina até mesmo a educação das crianças. É preciso não esquecer que «sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem-se distinguir, mas não separar».[v] Por outro lado, «a revolução biotecnológica no campo da procriação humana introduziu a possibilidade de manipular o acto generativo, tornando-o independente da relação sexual entre homem e mulher. Assim, a vida humana bem como a paternidade e a maternidade tornaram-se realidades componíveis e decomponíveis, sujeitas de modo prevalecente aos desejos dos indivíduos ou dos casais».[vi] Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em dois os aspectos inseparáveis da realidade. Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e res­peitá-la como ela foi criada.

57. Dou graças a Deus porque muitas famílias, que estão bem longe de se considerarem perfeitas, vivem no amor, realizam a sua vocação e continuam para diante embora caiam muitas vezes ao longo do caminho. Partindo das reflexões sinodais, não se chega a um estereótipo da família ideal, mas um interpelante mosaico formado por muitas realidades diferentes, cheias de alegrias, dramas e sonhos. As realidades que nos preocupam, são desafios. Não caiamos na armadilha de nos consumirmos em lamentações auto-defensivas, em vez de suscitar uma criatividade missionária. Em todas as situações, «a Igreja sente a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. (...) Os grandes valores do matrimónio e da família cristã correspondem à busca que atravessa a existência humana [vii]». Se constatamos muitas dificuldades, estas são – como disseram os bispos da Colômbia – um apelo para «libertar em nós as energias da esperança, traduzindo-as em sonhos proféticos, acções transformadoras e imaginação da caridade.[viii]


CAPÍTULO III
O OLHAR FIXO EM JESUS: A VOCAÇÃO DA FAMÍLIA

58. Diante das famílias e no meio delas, deve ressoar sempre de novo o primeiro anúncio, que é o «mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário [ix] e «deve ocupar o centro da actividade evangelizadora». [x] É o anúncio principal, «aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra».[xi] Porque «nada há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse anúncio» e «toda a formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma».[xii]
O nosso ensinamento sobre o matrimónio e a família não pode deixar de se inspirar e transfigurar à luz deste anúncio de amor e ternura, se não quiser tornar-se mera defesa duma doutrina fria e sem vida. Com efeito, o próprio mistério da família cristã só se pode compreender plenamente à luz do amor infinito do Pai, que se manifestou em Cristo entregue até ao fim e vivo entre nós. Por isso, quero contemplar Cristo vivo que está presente em tantas histórias de amor e invocar o fogo do Espírito sobre todas as famílias do mundo. Dentro deste quadro, o presente capítulo recolhe uma síntese da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família. Também aqui citarei várias contribuições prestadas pelos Padres sinodais nas suas considerações acerca da luz que a fé nos oferece. Eles partiram do olhar de Jesus, dizendo que Ele «olhou para as mulheres e os ho­mens que encontrou com amor e ternura, acompanhando os seus passos com verdade, paciência e misericórdia, ao anunciar as exigências do Reino de Deus». De igual modo nos acompanha, hoje, o Senhor no nosso compromisso de viver e transmitir o Evangelho da família. Jesus recupera e realiza plenamente o projecto divino. Contrariamente àqueles que proibiam o matrimónio, o Novo Testamento ensina que «tudo o que Deus criou é bom e nada deve ser rejeitado».[xiii] O matrimónio é um «dom» do Senhor[xiv]. Ao mesmo tempo que se dá esta avaliação positiva, acentua-se fortemente a obrigação de cuidar deste dom divino: «Seja[xv] o matrimónio honrado por todos e imaculado o leito conjuga[xvi]. Este dom de Deus inclui a sexualidade: «Não vos recuseis um ao outro».[xvii]

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)



[i] Francisco, Catequese (22 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 23/IV/2015), 16.
[ii] Idem, Catequese (29 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 30/IV/2015), 16.
[iii] Relatio Finalis 2015, 28. 48 56.
[iv] Ibid., 8.
[v] Ibid., 58. 47.
[vi] Ibid., 33
[vii] Relatio Synodi 2014, 11.
[viii] Conferência Episcopal da Colômbia, A tiempos difíciles, colombianos nuevos (13 de Fevereiro de 2003), 3.
[ix] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 35: AAS 105 (2013), 1034.
[x] Ibid., 164: o. c., 1088.
[xi] Ibidem.
[xii] Ibid., 165: o. c., 1089.
[xiii] (1 Tim 4, 4)
[xiv] (cf. 1 Cor 7, 7)
[xv] 54 Relatio Synodi 2014, 12. 53
[xvi] (Heb 13, 4)
[xvii] (1 Cor 7, 5).

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