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08/03/2019

Leitura espiritual



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA 

CAPÍTULO II
A REALIDADE E OS DESAFIOS DAS FAMÍLIAS.

A situação actual da família

45. «Há muitos filhos nascidos fora do matrimónio, especialmente nalguns países, e muitos são os que, em seguida, crescem com um só dos progenitores e num contexto familiar alargado ou reconstituído. (...) Por outro lado, a exploração sexual da infância constitui uma das realidades mais escandalosas e perversas da sociedade actual. Além disso, nas sociedades feridas pela violência da guerra, do terrorismo ou da presença do crime organizado, acabam deterioradas as situações familiares, sobretudo nas grandes metrópoles, e nas suas periferias cresce o chamado fenómeno dos meninos da rua»[i]. O abuso sexual das crianças torna-se ainda mais escandaloso, quando se verifica em ambientes onde deveriam ser protegidas, particularmente nas famílias e nas comunidades e instituições cristãs[ii].

46. As migrações «constituem outro sinal dos tempos, que deve ser enfrentado e compreendido com todo o seu peso de consequências sobre a vida familiar».[iii] O último Sínodo atribuiu grande importância a esta problemática ao reconhecer que, «sob modalidades diferentes, atinge populações inteiras em várias partes do mundo. A Igreja desempenhou, neste campo, papel de primária grandeza. A necessidade de manter e desenvolver este testemunho evangélico[iv] aparece hoje mais urgente do que nunca. (...) A mobilidade humana, que corresponde ao movimento histórico-natural dos povos, pode revelar-se uma verdadeira riqueza tanto para a família que emigra como para o país que a recebe. Caso diferente é a migração forçada das famílias, em consequência de situações de guerra, perseguição, pobreza, injustiça, marcada pelas vicissitudes duma viagem que, muitas vezes, põe em perigo a vida, traumatiza as pessoas e destabiliza as famílias. O acompanhamento dos migrantes exige uma pastoral específica dirigida tanto às famílias que emigram como aos membros dos núcleos familiares que ficaram nos lugares de origem. Isto deve ser feito respeitando as suas culturas, a formação religiosa e humana da sua origem, a riqueza espiritual dos seus ritos e tradições, inclusive através dum cuidado pastoral específico. (...) As migrações revelam-se particularmente dramáticas e devastadoras tanto para as famílias como para as pessoas, quando têm lugar à margem da legalidade e são sustentadas por circuitos internacionais do tráfico de pessoas. O mesmo se pode dizer quando envolvem mulheres ou crianças não acompanhadas, forçadas a estadias prolongadas nos locais de passagem entre um país e outro, nos campos de refugiados, onde não é possível iniciar um per­curso de integração. A pobreza extrema e outras situações de desintegração induzem, por vezes, as famílias até mesmo a vender os próprios filhos para a prostituição ou o tráfico de órgãos».[v] «As perseguições dos cristãos, bem como as de minorias étnicas e religiosas, em várias partes do mundo, especialmente no Médio Oriente, constituem uma grande prova: não só para a Igreja mas também para toda a comunidade internacional. Devem ser apoiados todos os esforços para favorecer a permanência das famílias e das comunidades cristãs nas suas terras de origem».[vi]  Os Padres dedicaram especial atenção também «às famílias das pessoas com deficiência, já que tal deficiência, ao irromper na vida, gera um desafio profundo e inesperado e transtorna os equilíbrios, os desejos, as expectativas. (...) Merecem grande admiração as famílias que aceitam, com amor, a prova difícil dum filho deficiente. Dão à Igreja e à sociedade um valioso testemunho de fidelidade ao dom da vida. A família poderá descobrir, juntamente com a comunidade cristã, novos gestos e linguagens, formas de compreensão e identidade, no percurso de acolhimento e cuidado do mistério da fragilidade. As pessoas com deficiência são, para a família, um dom e uma oportunidade para crescer no amor, na ajuda recíproca e na unidade. (...) A família que aceita, com os olhos da fé, a presença de pessoas com deficiência poderá reconhecer e garantir a qualidade e o valor de cada vida, com as suas necessidades, os seus direitos e as suas oportunidades. Tal família providenciará assistência e cuidados e promoverá companhia e carinho em cada fase da vida»[vii]. Quero sublinhar que a atenção prestada tanto aos migrantes como às pessoas com deficiência é um sinal do Espírito. Pois ambas as situações são paradigmáticas: põem especialmente em questão o modo como se vive, hoje, a lógica do acolhimento misericordioso e da integração das pessoas frágeis. «A maioria das famílias respeita os idosos, rodeia-os de carinho e considera-os uma bênção. Um agradecimento especial deve ser dirigido às associações e movimentos familiares que trabalham a favor dos idosos, sob o aspecto espiritual e social (...). Nas sociedades altamente industrializadas, onde o seu número tende a aumentar enquanto diminui a taxa de natalidade, os idosos correm o risco de ser vistos como um peso. Por outro lado, os cuidados que requerem muitas vezes põem a dura prova os seus entes queridos».[viii] «A valorização da fase conclusiva da vida é, hoje, ainda mais necessária, porque na sociedade actual se tenta, de todos os modos possíveis, ocultar o mo­mento da passagem. Às vezes, a fragilidade e dependência do idoso são iniquamente exploradas por mero proveito económico. Muitas famílias ensinam-nos que é possível enfrentar os últimos anos da vida, valorizando o sentido de realização e integração de toda a existência no mistério pascal. Um grande número de idosos é acolhido em estruturas da Igreja, onde podem viver num ambiente sereno e familiar a nível material e espiritual. A eutanásia e o suicídio assistido são graves ameaças para as famílias, em todo o mundo. A sua prática é legal em muitos Estados. A Igreja, ao mesmo tempo que se opõe firmemente a tais práticas, sente o dever de ajudar as famílias que cuidam dos seus membros idosos e doentes».[ix]

49. Quero assinalar a situação das famílias caídas na miséria, penalizadas de tantas maneiras, onde as limitações da vida se fazem sentir de forma lancinante. Se todos têm dificuldades, estas, numa casa muito pobre, tornam-se mais duras[x]. Por exemplo, se uma mulher deve criar o seu filho sozinha, devido a uma separação ou por outras causas, e tem de ir trabalhar sem a possibilidade de o deixar com outra pessoa, o filho cresce num abandono que o expõe a todos os tipos de risco e fica comprometido o seu amadurecimento pessoal. Nas situações difíceis em que vivem as pessoas mais necessitadas, a Igreja deve pôr um cuidado especial em compreender, consolar e integrar, evitando impor-lhes um conjunto de normas como se fossem uma rocha, tendo como resultado fazê-las sentir-se julgadas e abandonadas precisamente por aquela Mãe que é chamada a levar-lhes a misericórdia de Deus. Assim, em vez de oferecer a força sanadora da graça e da luz do Evangelho, alguns querem «doutrinar» o Evangelho, transformá-lo em «pedras mortas para as jogar contra os outros».[xi]

Alguns desafios


50. As respostas recebidas nas duas consultas, efectuadas no caminho sinodal, mencionaram as mais diversas situações que colocam novos desafios. Além das situações já indicadas, muitos referiram-se à função educativa, que acaba dificultada porque, entre outras causas, os pais chegam a casa cansados e sem vontade de conversar; em muitas famílias, já não há sequer o hábito de comerem juntos, e cresce uma grande variedade de ofertas de distracção, para além da dependência da televisão. Isto torna difícil a transmissão da fé de pais para filhos. Outros assinalaram que as famílias habitualmente padecem duma enorme ansiedade; pa­rece haver mais preocupação por prevenir problemas futuros do que por compartilhar o presente. Isto, que é uma questão cultural, vê-se agravado por um futuro profissional incerto, pela insegurança económica ou pelo medo quanto ao futuro dos filhos.

51. Mencionou-se também a toxicodependência como um dos flagelos do nosso tempo que faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba por destruí-las. Algo semelhante acontece com o alcoolismo, os jogos de azar e outras dependências. A família poderia ser o lugar da prevenção e das boas regras, mas a sociedade e a política não chegam a perceber que uma família em risco «perde a capacidade de reacção para ajudar os seus membros (...). Observamos as graves consequências desta ruptura em famílias destruídas, filhos desenraizados, idosos abandonados, crianças órfãs de pais vivos, adolescentes e jovens desorientados e sem regras».[xii] Como apontaram os bispos do México, há tristes situações de violência familiar que são terreno fértil para novas formas de agressividade social, porque «as relações familiares explicam também a predisposição para uma personalidade violenta. As famílias que influem nesta direcção são aquelas em que há uma comunicação deficiente; aquelas em que predominam as atitudes defensivas e os seus membros não se apoiam entre si; onde não há actividades familiares que favoreçam a participação; as famílias onde as relações entre os pais costumam ser conflituosas e violentas, e as relações pais-filhos se caracterizam por atitudes hostis. A violência no seio da família é escola de ressentimento e ódio nas relações humanas básicas».[xiii]

52. Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da família como sociedade natural fundada no matrimónio seja algo que beneficia a sociedade. Antes pelo contrário, prejudica o amadurecimento das pessoas, o cultivo dos valores comunitários e o desenvolvimento ético das cidades e das aldeias. Já não se adverte claramente que só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e tornar possível a fecundidade. Devemos reconhecer
a grande variedade de situações familiares que podem fornecer uma certa regra de vida, mas as uniões de facto ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não podem ser simplistamente equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união precária ou fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade. E, todavia, quem se preocupa hoje com fortalecer os cônjuges, ajudá-los a superar os riscos que os ameaçam, acompanhá-los no seu papel educativo, incentivar a estabilidade da união conjugal?

53. «Nalgumas sociedades, vigora ainda a prática da poligamia; noutros contextos, permanece a prática dos matrimónios combinados. (...) Em muitos contextos, e não apenas ocidentais, está a difundir-se largamente a prática da convivência que precede o ma­trimónio e também a prática de convivências não orientadas para assumir a forma dum vínculo institucional» [xiv]. Em vários países, a legislação facilita o avanço de várias alternativas, de modo que um matrimónio com as características de exclusividade, indissolubilidade e abertura à vida acaba por aparecer como mais uma proposta antiquada entre muitas outras. Avança, em muitos países, uma desconstrução jurídica da família, que tende a adoptar formas baseadas quase exclusivamente no paradigma da autonomia da vontade. Embora seja legítimo e justo rejeitar velhas formas de família «tradicional», caracterizadas pelo autoritarismo e inclusive pela violência, todavia isso não deveria levar ao desprezo do matrimónio, mas à redescoberta do seu verdadeiro sentido e à sua renovação. A força da família «reside essencialmente na sua capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito ferida que possa estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do amor» [xv].

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)



[i] Relatio Synodi 2014, 8.
[ii] Cf. Relatio Finalis 2015, 78.
[iii] Relatio Synodi 2014, 8.
[iv] cf. Mt 25, 35
[v] Relatio Finalis 2015, 23; cf. Mensagem para o Dia Mundial do Emigrante e do Refugiado em 17 de Janeiro de 2016 (12 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 18-19.
[vi] Relatio Finalis 2015, 24. 40 47.
[vii] Ibid., 21. 41 48
[viii] Ibid., 17.
[ix] Ibid., 20.
[x] Cf. ibid., 15.
[xi] Francisco, Discurso no encerramento da XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9.
[xii] Conferência Episcopal Argentina, Navega mar adentro (31 de Maio de 2003), 42.
[xiii] Conferência Episcopal Mexicana, Que en Cristo Nuestra Paz México tenga vida digna (15 de Fevereiro de 2009), 67.
[xiv] Relatio Finalis 2015, 25.
[xv] Ibid., 10.

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