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20/03/2019

Leitura espiritual



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA 

CAPÍTULO IV


O AMOR NO MATRIMÓNIO

O mundo das emoções.

Desejos, sentimentos, emoções (os clássicos chamavam-lhes «paixões») ocupam um lugar importante no matrimónio. Geram-se quando «outro» se torna presente e intervém na minha vida. É próprio de todo o ser vivo tender para outra realidade, e esta tendência reveste-se sempre de sinais afectivos basilares: prazer ou sofrimento, alegria ou tristeza, ternura ou receio. São o pressuposto da actividade psicológica mais elementar. O ser humano é um vivente desta terra, e tudo o que faz e busca está carregado de paixões.
Verdadeiro homem, Jesus vivia as coisas com grande emotividade. Por isso, sofria com a rejeição de Jerusalém[i] e, por esta situação, chorou.[ii]
Compadecia-Se também à vista da multidão atribulada. Vendo os outros a chorar[iii], comovia-Se e turbava-Se,[iv] e Ele mesmo chorou pela morte dum amigo.[v]
Estas manifestações da sua sensibilidade mostram até que ponto estava aberto aos outros o seu coração humano.
Experimentar uma emoção não é, em si mesmo, algo moralmente bom nem mau. Começar a sentir desejo ou repulsa não é pecaminoso nem censurável. O que pode ser bom ou mau é o acto que a pessoa realiza movida ou sustentada por uma paixão. Pois, se os sentimentos são alimentados, procurados e, por causa deles, cometemos más acções, o mal está na decisão de os alimentar e nos actos maus que se seguem. Na mesma linha, sentir atracção por alguém não é, de por si, um bem. Se esta atracção me leva a procurar que essa pessoa se torne minha escrava, o sentimento estará ao serviço do meu egoísmo. Julgar que somos bons só porque «provamos sentimentos», é um tremendo engano.
Há pessoas que se sentem capazes dum grande amor, só porque têm grande necessidade de afecto, mas não conseguem lutar pela felicidade dos outros e vivem confinados nos próprios desejos. Neste caso, os sentimentos desviam dos grandes valores e escondem um egocentrismo que torna impossível cultivar uma vida sadia e feliz em família. Entretanto, se uma paixão acompanha o acto livre, pode manifestar a profundidade dessa opção. O amor matrimonial leva a procurar que toda a vida emo­tiva se torne um bem para a família e esteja ao serviço da vida em comum.
A maturidade chega a uma família, quando a vida emotiva dos seus membros se transforma numa sensibilidade que não domina nem obscurece as grandes opções e valores, mas segue a sua liberdade,[vi] brota dela, enriquece-a, embeleza-a e torna-a mais harmoniosa para bem de todos. Deus ama a alegria dos seus filhos. Isto requer um caminho pedagógico, um processo que inclui renúncias: é uma convicção da Igreja, que muitas vezes foi rejeitada pelo mundo como se fosse inimiga da felicidade humana.
Bento XVI regista esta crítica com muita clareza: «Com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?» Mas ele responde que, embora não tenham faltado exageros ou ascetismos extraviados no cristianismo, a doutrina oficial da Igreja, fiel à Sagrada Escritura, não rejeitou «o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros (…) priva-o da sua dignidade, desumaniza-o».
É necessária a educação da emotividade e do instinto e, para isso, às vezes torna-se indispensável impormo-nos algum limite.[vii] O excesso, o descontrole, a obsessão por um único tipo de prazeres acabam por debilitar e combalir o próprio prazer, e prejudicam a vida da família. Na verdade, pode-se fazer um belo caminho com as paixões, o que significa orientá-las cada vez mais num projecto de auto-doação e plena realização própria que enriquece as relações interpessoais no seio da família. Isto não implica renunciar a momentos de intenso prazer, mas assumi-los de certo modo entrelaçados com outros momentos de dedicação generosa, espera paciente, inevitável fadiga, esforço por um ideal.
A vida em família é tudo isto e merece ser vivida inteiramente.. Algumas correntes espirituais insistem em eliminar o desejo para se libertar da dor. Mas nós acreditamos que Deus ama a alegria do ser humano, pois Ele criou tudo «para nosso usufruto».[viii]
Deixemos brotar a alegria à vista da sua ternura, quando nos propõe: «Meu filho, se tens com quê, trata-te bem. (...) Não te prives da felicidade presente».[ix]
Também um casal de esposos corresponde à vontade de Deus, quando segue este convite bíblico: «No dia da felicidade, sê alegre».[x]
A questão é ter a liberdade para aceitar que o prazer encontre outras formas de expressão nos sucessivos momentos da vida, de acordo com as necessidades do amor mútuo.[xi]
Neste sentido, pode-se aceitar a proposta de alguns mestres orientais que insistem em ampliar a consciência, para não ficar presos numa experiência muito limitada que nos fecharia as perspectivas. Esta ampliação da consciência não é a negação ou a destruição do desejo, mas a sua dilatação e aperfeiçoamento. A dimensão erótica do amor. Tudo isto nos leva a falar da vida sexual dos esposos. O próprio Deus criou a sexualidade, que é um presente maravilhoso para as suas criaturas. Quando se cultiva e evita o seu descontrole, fazemo-lo para impedir que se produza o «depauperamento de um valor autêntico».
São João Paulo II rejeitou a ideia de que a doutrina da Igreja leve a «uma negação do valor do sexo humano» ou que o tolere simplesmente «pela necessidade da procriação».
A necessidade sexual dos esposos não é objecto de menosprezo, e «não se trata de modo algum de pôr em questão aquela necessidade».
A quantos receiam que, com a educação das paixões e da sexualidade, se prejudique a espontaneidade do amor sexual,[xii] São João Paulo II respondia que o ser humano «é também chamado à plena e matura espontaneidade das rela ções», que «é o fruto gradual do discernimento dos impulsos do próprio coração». É algo que se conquista, pois todo o ser humano «deve, perseverante e coerentemente, aprender o que é o significado do corpo».
A sexualidade não é um recurso para compensar ou entreter, mas trata-se de uma linguagem interpessoal onde o outro é tomado a sério, com o seu valor sagrado e inviolável. Assim, «o coração humano torna-se participante, por assim dizer, de outra espontaneidade». Neste contexto, o erotismo aparece como uma manifestação especificamente humana da sexualidade. Nele pode-se encontrar o «significado esponsal do corpo e a autêntica dignidade do dom».1
Nas suas catequeses sobre a teologia do corpo humano, São João Paulo II ensinou que a corporeidade sexuada «é não só fonte de fecundidade e de procriação», mas possui «a capacidade de exprimir o amor: exactamente aquele amor em que o homem-pessoa se torna dom». O erotismo mais saudável, embora esteja ligado a uma busca de prazer, supõe a admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos.[xiii]
 Assim, não podemos, de maneira alguma, entender a dimensão erótica do amor como um mal permitido ou como um peso tolerável para o bem da família, mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos. Tratando-se de uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade do outro, torna-se uma «afirmação amorosa plena e cristalina», mostrando-nos de que maravilhas é capaz o coração humano, e assim, por um momento, «sente-se que a existência humana foi um sucesso».

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)



[i] (cf. Mt 23, 37)
[ii] (cf. Lc 19, 41)
[iii] (cf. Mc 6, 34)
[iv] (cf. Jo 11, 33)
[v] (cf. Jo 11, 35)
[vi] Cf. Tomás de Aquino, Summa theologiae, I-II, q. 24, art. 1.
[vii] Cf. ibid., I-II, q. 59, art. 5. 142 Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 3: AAS 98 (2006), 219-220. 143 Ibid., 4: o. c., 220.
[viii] (1 Tim 6, 17)
[ix] (Sir 14, 11.14)
[x] (Qo 7, 14)
[xi] Cf. Tomás de Aquino, Summa theologiae, I-II, q. 32, art. 7. 145 Cf. ibid., II-II, q. 153, art. 2, ad 2: «Abundantia delectationis quae est in actu venereo secundum rationem ordinato, non contrariatur medio vir­tutis».
[xii] João Paulo II, Catequese (22 de Outubro de 1980), 5: Insegnamenti 3/2 (1980), 951; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 26/X/1980), 12. 147 Ibid., 3. 148 Idem, Catequese (24 de Setembro de 1980), 4: Insegnamenti 3/2 (1980), 719; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 28/IX/1980), 12.
[xiii] Catequese (12 de Novembro de 1980), 2: Insegna­menti 3/2 (1980), 1133; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 16/XI/1980), 12. 150 Ibid., 4. 151 Ibid., 5. 152 Ibid., 1. 153 Catequese (16 de Janeiro de 1980), 1: Insegnamenti 3/1 (1980), 151; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 20/I/1980), 12.

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