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17/03/2019

Leitura espiritual



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA 

CAPÍTULO IV


O AMOR NO MATRIMÓNIO


Espera.

Panta elpízei: não desespera do futuro.
Ligado à palavra anterior, indica a esperança de quem sabe que o outro pode mudar; sempre espera que seja possível um amadurecimento, um inesperado surto de beleza, que as potencialidades mais recônditas do seu ser germinem algum dia. Não significa que, nesta vida, tudo vai mudar; implica aceitar que nem tudo aconteça como se deseja, mas talvez Deus escreva direito por linhas tortas e saiba tirar algum bem dos males que não se conseguem vencer nesta terra.

Aqui aparece a esperança no seu sentido pleno, porque inclui a certeza duma vida para além da morte. Aquela pessoa, com todas as suas fraquezas, é chamada à plenitude do Céu: lá, completamente transformada pela ressurreição de Cristo, cessarão de existir as suas fraquezas, trevas e patologias; lá, o verdadeiro ser daquela pessoa resplandecerá com toda a sua potência de bem e beleza. Isto permite-nos, no meio das moléstias desta terra, contemplar aquela pessoa com um olhar sobrenatural, à luz da esperança, e aguardar aquela plenitude que, embora hoje não seja visível, há-de receber um dia no Reino celeste.

Tudo suporta.

Panta hypoménei significa que suporta, com espírito positivo, todas as contrariedades. É manter-se firme no meio dum ambiente hostil. Não consiste apenas em tolerar algumas coisas molestas, mas é algo de mais amplo: uma resistência dinâmica e constante, capaz de superar qualquer desafio. É amor que apesar de tudo não desiste, mesmo que todo o contexto convide a outra coisa. Manifesta uma dose de heroísmo tenaz, de força contra qualquer corrente negativa, uma opção pelo bem que nada pode derrubar.
Isto lembra-me Martin Luther King, quando reafirmava a opção pelo amor fraterno, mesmo no meio das piores perseguições e humilhações: «A pessoa que mais te odeia, tem algo de bom nela; mesmo a nação que mais odeia, tem algo de bom nela; mesmo a raça que mais odeia, tem algo de bom nela. E, quando chegas ao ponto de fixar o rosto de cada ser humano e, bem no fundo dele, vês o que a religião chama a “imagem de Deus”, começas, não obstante tudo, a amá-lo. Não importa o que faça, lá vês a imagem de Deus. Há um elemento de bondade de que nunca poderás livrar-te. (...) Outra forma de amares o teu inimigo é esta: quando surge a oportunidade de derrotares o teu inimigo, aquele é o momento em que deves decidir não o fazer. (...) Quando te elevas ao nível do amor, da sua grande beleza e poder, a única coisa que procuras derrotar são os sistemas malignos. Às pes­soas que caíram na armadilha deste sistema, tu ama-las, mas procuras derrotar o sistema. (...) Ódio por ódio só intensifica a existência do ódio e do mal no universo. Se eu te bato e tu me bates, e eu te devolvo a pancada e tu me devolves a pancada, e assim por diante… obviamente continua-se até ao infinito; simplesmente nunca termina. Nalgum ponto, alguém deve ter um pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte. A pessoa forte é aquela que pode quebrar a ca- 93 deia do ódio, a cadeia do mal. (...) Alguém deve ter bastante fé e moralidade para a quebrar e injectar dentro da própria estrutura do universo o elemento forte e poderoso do amor».

Na vida familiar, é preciso cultivar esta força do amor, que permite lutar contra o mal que a ameaça. O amor não se deixa dominar pelo ressentimento, o desprezo das pessoas, o desejo de se lamentar ou vingar de alguma coisa. O ideal cristão, nomeadamente na família, é amor que apesar de tudo não desiste.
Deixa-me maravilhado, por exemplo, a atitude das pessoas que, para se proteger da violência física, tiveram de separar-se do seu cônjuge e todavia, pela caridade conjugal que sabe ultrapassar os sentimentos, foram capazes de procurar o seu bem, mesmo através de terceiros, em momentos de doença, tribulação ou dificuldade. Isto também é amor que apesar de tudo não desiste.

Crescer na caridade conjugal.

O cântico de São Paulo, que acabámos de repassar, permite-nos avançar para a caridade conjugal. Esta é o amor que une os esposos, amor santificado, enriquecido e iluminado pela graça do sacramento do matrimónio. É uma «união afectiva», espiritual e oblativa, mas que reúne em si a ternura da amizade e a paixão erótica, embora seja capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão enfraquecem.
O Papa Pio XI ensinava que este amor permeia todos os deveres da vida conjugal e «detém como que o primado da nobreza».
Com efeito, este amor forte, derramado pelo Espírito Santo, é reflexo da aliança indestrutível entre Cristo e a humanidade que culminou na entrega até ao fim na cruz. «O Espírito, que o Senhor infunde, dá um coração novo e torna o homem e a mulher capazes de se amarem como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge assim aquela plenitude para a qual está interiormente ordenado: a caridade conjugal».
O matrimónio é um sinal precioso, porque, «quando um homem e uma mulher celebram o sacramento do matri­mónio, Deus, por assim dizer, “espelha-Se” neles, imprime neles as suas características e o carácter indelével do seu amor. O matrimónio é o ícone do amor de Deus por nós. Com efeito, também Deus é comunhão: as três Pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo – vivem desde sempre e para sempre em unidade perfeita. É precisamente nisto que consiste o mistério do matrimónio: dos dois esposos, Deus faz uma só existência».[i]
Isto tem consequências muito concretas na vida do dia-a-dia, porque, «em virtude do sacramento, os esposos são investidos numa autêntica missão, para que possam tornar visível, a partir das realidades simples e ordinárias, o amor com que Cristo ama a sua Igreja, continuando a dar a vida por ela».

Todavia convém não confundir planos diferentes: não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimónio como sinal implica «um processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus».

A vida toda, tudo em comum.

Depois do amor que nos une a Deus, o amor conjugal é a «amizade maior». É uma união que tem todas as características duma boa amizade: busca do bem do outro, reciprocidade, intimidade, ternura, estabilidade e uma semelhança entre os amigos que se vai construindo com a vida partilhada.[ii]
O matrimónio, porém, acrescenta a tudo isso uma exclusividade indissolúvel, que se expressa no projecto estável de partilhar e construir juntos toda a existência. Sejamos sinceros na leitura dos sinais da realidade: quem está enamorado não projecta que essa relação possa ser apenas por um certo tempo; quem vive intensamente a alegria de se casar não está a pensar em algo de passageiro; aqueles que acompanham a celebração duma união cheia de amor, embora frágil, esperam que possa perdurar no tempo; os filhos querem não só que os seus pais se amem, mas também que sejam fiéis e permaneçam sempre juntos.
Estes e outros sinais mos­tram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo.
A união, que se cristaliza na promessa matrimonial para sempre, é mais do que uma formalidade social ou uma tradição, porque radica-se nas inclinações espontâneas da pessoa humana. E, para os crentes, é uma aliança diante de Deus, que exige fidelidade: «O Senhor constituiu-Se testemunha entre ti e a esposa da tua juventude, aquela que tu atraiçoaste, embora ela fosse a tua companheira e aquela com quem fizeste aliança. (...) Ninguém atraiçoe a mulher da sua juventude, porque Eu odeio o divórcio».[iii]
Um amor frágil ou enfermiço, incapaz de aceitar o matrimónio como um desafio que exige lutar, renascer, reinventar-se e recomeçar sempre de novo até à morte, não pode sustentar um nível alto de compromisso. Cede à cultura do provisório, que impede um processo constante de crescimento.
Mas «prometer um amor que dure para sempre é possível, quando se descobre um desígnio maior que os próprios projectos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa amada».
Para que este amor possa atravessar todas as provações e manter-se fiel contra tudo, requer-se o dom da graça que o fortalece e eleva. Como dizia São Roberto Belarmino, «o facto de um só se unir com uma só num vínculo indissolúvel, de modo que não possam separar-se, sejam quais forem as dificuldades, e mesmo quando se perdeu a esperança da prole, isto não pode acontecer sem um grande mistério».
Além disso, o matrimónio é uma amizade que inclui as características próprias da paixão, mas sempre orientada para uma união cada vez mais firme e intensa.
Com efeito, «não foi instituído só em ordem à procriação», mas para que o amor mútuo «se exprima convenientemente, aumente e chegue à maturidade».
Esta amizade peculiar entre um homem e uma mulher adquire um carácter totalizante, que só se verifica na união conjugal. E precisamente por ser totalizante, esta união também é exclusiva, fiel e aberta à geração.[iv] Partilha-se tudo, incluindo a sexualidade, sempre no mútuo respeito. Isto mesmo expressou o Concílio Vaticano II ao dizer que, «unindo o humano e o divino, esse amor leva os esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos, que se manifesta com a ternura do afecto e com as obras, e penetra toda a sua vida».

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)



[i] 116 Ibid., II-II, q. 27, art. 2. 117 Carta enc. Casti connubii (31 de Dezembro de 1930): AAS 22 (1930), 547-548. 118 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 13: AAS 74 (1982), 94.
[ii] Francisco, Catequese (2 de Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 03/IV/2014), 12. 120 Ibidem. 121 João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981), 9: AAS 74 (1982), 90. 122 Tomás de Aquino, Summa contra gentiles, III, 123; cf. Aristóteles, Ética a Nicómaco, 8, 12 (ed. Bywater, Oxford 1984, 174).
[iii] (Ml 2, 14.15-16)
[iv] Francisco, Carta enc. Lumen fidei (29 de Junho de 2013), 52: AAS 105 (2013), 590. 124 «De sacramento matrimonii», I, 2 in: Idem, Disputationes de controversiis christianae fidei, III, 5, 3 (ed. Giuliano, Nápoles 1858, 778). 125 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 50.

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