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15/03/2019

Leitura espiritual



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA 

CAPÍTULO IV


O AMOR NO MATRIMÓNIO


A lógica do amor cristão não é a de quem se considera superior aos outros e precisa de fazer-lhes sentir o seu poder, mas a de «quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo».[i]

Na vida familiar, não pode reinar a lógica do domínio de uns sobre os outros, nem a competição para ver quem é mais inteligente ou poderoso, porque esta lógica acaba com o amor. Vale também para a família o seguinte conselho: «Revesti-vos todos de humildade no trato uns com os outros, porque Deus opõe-se aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes».[ii]

Amabilidade.

Amar é também tornar-se amável, e nisto está o sentido do termo asjemonéi. Significa que o amor não age rudemente, não actua de forma inconveniente, não se mostra duro no trato. Os seus modos, as suas palavras, os seus gestos são agradáveis; não são ásperos, nem rígidos. Detesta fazer sofrer os outros. A cortesia «é uma escola de sensibilidade e altruísmo», que exige que a pessoa «cultive a sua mente e os seus sentidos, aprenda a ouvir, a falar e, em certos momentos, a calar».
Ser amável não é um estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz parte das exigências irrenunciáveis do amor, por isso «todo o ser humano está obrigado a ser afável com aqueles que o rodeiam».
Diariamente «entrar na vida do outro, mesmo quando faz parte da nossa existência, exige a delicadeza duma atitude não invasiva, que renova a confiança e o respeito. (...) E quanto mais íntimo e profundo for o amor, tanto mais exigirá o respeito pela liberdade e a capacidade de esperar que o outro abra a porta do seu coração».
A fim de se predispor para um verdadeiro encontro com o outro, requer-se um olhar amável pousado nele. Isto não é possível quando reina um pessimismo que põe em evidência os defeitos e erros alheios, talvez para compensar os próprios complexos.[iii]
Um olhar amável faz com que nos detenhamos menos nos limites do outro, po­dendo assim tolerá-lo e unirmo-nos num projecto comum, apesar de sermos diferentes. O amor amável gera vínculos, cultiva laços, cria novas redes de integração, constrói um tecido social firme. Deste modo, uma pessoa protege-se a si mesma, pois, sem sentido de pertença, não se pode sustentar uma entrega aos outros, acabando cada um por buscar apenas as próprias conveniências, e a convivência torna-se impossível.
Uma pessoa anti-social julga que os outros existem para satisfazer as suas necessidades e, quando o fazem, cumprem apenas o seu dever. Neste caso, não haveria espaço para a amabilidade do amor e a sua linguagem.
A pessoa que ama é capaz de dizer palavras de incentivo, que reconfortam, fortalecem, consolam, estimulam.
Vejamos, por exemplo, algumas palavras que Jesus dizia às pessoas:

«Filho, tem confiança!».[iv]
«Grande é a tua fé!».[v]
«Levanta-te!».[vi]
«Vai em paz».[vii]
«Não temais!».[viii]
Não são palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam. Na família, é preciso aprender esta linguagem amável de Jesus.

Desprendimento.

Como se diz muitas vezes, para amar os outros, é preciso primeiro amar-se a si mesmo.
Todavia este hino à caridade afirma que o amor «não procura o seu próprio interesse», ou «não procura o que é seu». Esta expressão aparece ainda noutro texto:
«Não tenha cada um em vista os próprios interesses, mas todos e cada um exactamente os interesses dos outros».[ix]
Perante uma afirmação assim clara da Sagrada Escritura, deve-se evitar de dar prioridade ao amor a si mesmo, como se fosse mais nobre do que o dom de si aos outros. Uma certa prioridade do amor a si mesmo só se pode entender como condição psicológica, pois uma pessoa que seja incapaz de se amar a si mesma sente dificuldade em amar os outros: «Para quem será bom aquele que é mau para si mesmo? (...) Não há pior do que aquele que é avaro para si mesmo».[x]
Mas o próprio Tomás de Aquino explicou «ser mais próprio da caridade querer amar do que querer ser amado», e que de facto «as mães, que são as que mais amam, procuram mais amar do que ser amadas».
Por isso, o amor pode superar a justiça e transbordar gratuitamente «sem nada esperar em troca»,[xi] até chegar ao amor maior que é «dar a vida» pelos outros.[xii]
Mas será possível um desprendimento assim, que permite dar gratui­tamente e dar até ao fim?
Sem dúvida, porque é o que pede o Evangelho: «Recebestes de graça, dai de graça».[xiii] ,[xiv]

Sem violência interior.

Se a primeira expressão do hino nos convidava à paciência, que evita reagir bruscamente perante as fraquezas ou erros dos outros, agora aparece outra palavra – paroxýnetai – que diz respeito a uma reacção interior de indignação provocada por algo exterior.
Trata-se de uma violência interna, uma irritação recôndita que nos põe à defesa perante os outros, como se fossem inimigos molestos a evitar. Alimentar esta agressividade íntima, de nada aproveita. Serve apenas para nos adoentar, acabando por nos isolar. A indignação é saudável, quando nos leva a reagir perante uma grave injustiça; mas é prejudicial, quando tende a impregnar todas as nossas atitudes para com os outros.
O Evangelho convida a olhar primeiro a trave na própria vista,[xv] e nós, cristãos, não podemos ignorar o convite constante da Palavra de Deus para não se alimentar a ira: «Não te deixes vencer pelo mal»;[xvi] «não nos cansemos de fazer o bem».[xvii]
Uma coisa é sentir a força da agressividade que irrompe, e outra é consentir nela, deixar que se torne uma atitude permanente: «Se vos irardes, não pequeis; que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento».[xviii] Por isso, nunca se deve terminar o dia sem fazer as pazes na família. «E como devo fazer as pazes? Ajoelhar-me? Não! Para restabelecer a harmonia familiar basta um pequeno gesto, uma coisa de nada. É suficiente uma carícia, sem palavras. Mas nunca permitais que o dia em família termine sem fazer as pazes».
A reacção interior perante uma moléstia que nos causam os outros, deveria ser, antes de mais nada, abençoar no coração, desejar o bem do outro, pedir a Deus que o liberte e cure. «Respondei com palavras de bênção, pois a isto fostes chamados: a herdar uma bênção».[xix] Se tivermos de lutar contra um mal, façamo-lo; mas sempre digamos «não» à violência interior.

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)



[i] (Mt 20, 27)
[ii] (1 Ped 5, 5)
[iii] Octavio Paz, La llama doble (Barcelona 1993), 35. 108 Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 114, art. 2, ad 1. 109 Francisco, Catequese (13 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2015), 16
[iv] (Mt 9, 2)
[v] (Mt 15, 28)
[vi] (Mc 5, 41)
[vii] (Lc 7, 50)
[viii] (Mt 14, 27)
[ix] (Flp 2, 4)
[x] (Sir 14, 5-6)
[xi] (Lc 6, 35)
[xii] (Jo 15, 13)
[xiii] (Mt 10, 8)
[xiv] Summa theologiae, II-II, q. 27, art. 1, ad. 2. 111 Ibid., II-II, q. 27, art. 1.
[xv] (cf. Mt 7, 5)
[xvi] (Rm 12, 21)
[xvii] (Gal 6, 9)
[xviii] (Ef 4, 26)
[xix] (1 Ped 3, 9)

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