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08/01/2019

Leitura espiritual


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
GAUDETE ET EXSULTATE
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE A CHAMADA À SANTIDADE
NO MUNDO ACTUAL



SOBRE A CHAMADA À SANTIDADE

NO MUNDO ACTUAL

Capítulo II

DOIS INIMIGOS SUBTIS DA SANTIDADE

51. Quando Deus Se dirige a Abraão, diz-lhe: «Eu sou o Deus supremo. Anda na minha presença e sê perfeito» (Gn 17, 1). Para poder ser perfeitos, como é do seu agrado, precisamos de viver humildemente na presença d’Ele, envolvidos pela sua glória; necessitamos de andar em união com Ele, reconhecendo o seu amor constante na nossa vida. Há que perder o medo desta presença que só nos pode fazer bem. É o Pai que nos deu vida e nos ama tanto. Uma vez que O aceitamos e deixamos de pensar a nossa existência sem Ele, desaparece a angústia da solidão (cf. Sal 139/138, 7). E, se deixarmos de pôr Deus à distância e vivermos na sua presença, poderemos permitir-Lhe que examine os nossos corações para ver se seguem pelo recto caminho (cf. Sal 139/138, 23-24). Assim conheceremos a vontade perfeita e agradável ao Senhor (cf. Rm 12, 1-2) e deixaremos que Ele nos molde como um oleiro (cf. Is 29, 16). Dissemos tantas vezes que Deus habita em nós, mas é melhor dizer que nós habitamos n’Ele, que Ele nos possibilita viver na sua luz e no seu amor. Ele é o nosso templo: «Uma só coisa (…) ardentemente desejo: é habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida» (Sal 27/26, 4). «Um dia em teus átrios vale por mil» (Sal 84/83, 11). N’Ele, somos santificados.

Um ensinamento da Igreja frequentemente esquecido

52. A Igreja ensinou repetidamente que não somos justificados pelas nossas obras ou pelos nossos esforços, mas pela graça do Senhor que toma a iniciativa. Os Padres da Igreja, já antes de Santo Agostinho, expressavam com clareza esta convicção primária. Dizia São João Crisóstomo que Deus derrama em nós a própria fonte de todos os dons, «antes de termos entrado no combate». São Basílio Magno observava que o fiel se gloria apenas em Deus, porque «reconhece estar privado da verdadeira justiça e que é justificado somente por meio da fé em Cristo».
53. O II Sínodo de Orange ensinou, com firme autoridade, que nenhum ser humano pode exigir, merecer ou comprar o dom da graça divina, e que toda a cooperação com ela é dom prévio da mesma graça: «até o desejo de ser puro se realiza em nós por infusão do Espírito Santo e com sua acção sobre nós». Sucessivamente o Concílio de Trento, mesmo quando destacou a importância da nossa cooperação para o crescimento espiritual, reafirmou tal ensinamento dogmático: «Afirma-se que somos justificados gratuitamente, porque nada do que precede a justificação, quer a fé, quer as obras, merece a própria graça da justificação; porque, se é graça, então não é pelas obras, caso contrário, a graça já não seria graça (Rm 11, 6)».

54. Também o Catecismo da Igreja Católica nos lembra que o dom da graça «ultrapassa as capacidades da inteligência e as forças da vontade humana» e que, «em relação a Deus, não há, da parte do homem, mérito no sentido dum direito estrito. Entre Ele e nós, a desigualdade é sem medida». A sua amizade supera-nos infinitamente, não pode ser comprada por nós com as nossas obras e só pode ser um dom da sua iniciativa de amor. Isto convida-nos a viver com jubilosa gratidão por este dom que nunca mereceremos, uma vez que, «depois duma pessoa já possuir a graça, não pode a graça já recebida cair sob a alçada do mérito». Os santos evitam de pôr a confiança nas suas acções: «Ao anoitecer desta vida, aparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos peço, Senhor, que conteis as minhas obras. Todas as nossas justiças têm manchas aos vossos olhos».

55. Esta é uma das grandes convicções definitivamente adquiridas pela Igreja e está tão claramente expressa na Palavra de Deus que fica fora de qualquer discussão. Esta verdade, tal como o supremo mandamento do amor, deveria caracterizar o nosso estilo de vida, porque bebe do coração do Evangelho e convida-nos não só a aceitá-la com a mente, mas também a transformá-la numa alegria contagiosa. Mas não poderemos celebrar com gratidão o dom gratuito da amizade com o Senhor, se não reconhecermos que a própria existência terrena e as nossas capacidades naturais são um dom. Precisamos de «reconhecer alegremente que a nossa realidade é fruto dum dom, e aceitar também a nossa liberdade como graça. Isto é difícil hoje, num mundo que julga possuir algo por si mesmo, fruto da sua própria originalidade e liberdade».

56. Só a partir do dom de Deus, livremente acolhido e humildemente recebido, é que podemos cooperar com os nossos esforços para nos deixarmos transformar cada vez mais. A primeira coisa é pertencer a Deus. Trata-se de nos oferecermos a Ele que nos antecipa, de Lhe oferecermos as nossas capacidades, o nosso esforço, a nossa luta contra o mal e a nossa criatividade, para que o seu dom gratuito cresça e se desenvolva em nós: «por isso, vos exorto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus» (Rm 12, 1). Aliás, a Igreja sempre ensinou que só a caridade torna possível o crescimento na vida da graça, porque, «se não tiver amor, nada sou» (1 Cor 13, 2).
Os novos pelagianos

57. Ainda há cristãos que insistem em seguir outro caminho: o da justificação pelas suas próprias forças, o da adoração da vontade humana e da própria capacidade, que se traduz numa auto-complacência egocêntrica e elitista, desprovida do verdadeiro amor. Manifesta-se em muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atracção pelas dinâmicas de auto-ajuda e realização auto-referencial. É nisto que alguns cristãos gastam as suas energias e o seu tempo, em vez de se deixarem guiar pelo Espírito no caminho do amor, apaixonarem-se por comunicar a beleza e a alegria do Evangelho e procurarem os afastados nessas imensas multidões sedentas de Cristo.

58. Muitas vezes, contra o impulso do Espírito, a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa propriedade de poucos. Verifica-se isto quando alguns grupos cristãos dão excessiva importância à observância de certas normas próprias, costumes ou estilos. Assim se habituam a reduzir e manietar o Evangelho, despojando-o da sua simplicidade cativante e do seu sabor. É talvez uma forma subtil de pelagianismo, porque parece submeter a vida da graça a certas estruturas humanas. Isto diz respeito a grupos, movimentos e comunidades, e explica por que tantas vezes começam com uma vida intensa no Espírito, mas depressa acabam fossilizados... ou corruptos.

59. Sem nos darmos conta, pelo facto de pensar que tudo depende do esforço humano canalizado através de normas e estruturas eclesiais, complicamos o Evangelho e tornamo-nos escravos dum esquema que deixa poucas aberturas para que a graça atue. São Tomás de Aquino lembrava-nos que se deve exigir, com moderação, os preceitos acrescentados ao Evangelho pela Igreja, «para não tornar a vida pesada aos fiéis, [porque assim] se transformaria a nossa religião numa escravidão».

O resumo da Lei
60. Para evitar isso, é bom recordar frequentemente que existe uma hierarquia das virtudes, que nos convida a buscar o essencial. A primazia pertence às virtudes teologais, que têm Deus como objecto e motivo. E, no centro, está a caridade. São Paulo diz que o que conta verdadeiramente é «a fé que actua pelo amor» (Gal 5, 6). Somos chamados a cuidar solicitamente da caridade: «quem ama o próximo cumpre plenamente a Lei. (...) Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da lei» (Rm 13, 8.10). «É que toda a Lei se resume neste único preceito: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”» (Gal 5, 14).

61. Por outras palavras, no meio da densa selva de preceitos e prescrições, Jesus abre uma brecha que permite vislumbrar dois rostos: o do Pai e o do irmão. Não nos dá mais duas fórmulas ou dois preceitos; entrega-nos dois rostos, ou melhor, um só: o de Deus que se reflecte em muitos, porque em cada irmão, especialmente no mais pequeno, frágil, inerme e necessitado, está presente a própria imagem de Deus. De facto, será com os descartados desta humanidade vulnerável que, no fim dos tempos, o Senhor plasmará a sua última obra de arte. Pois, «o que é que resta? O que é que tem valor na vida? Quais são as riquezas que não desaparecem? Seguramente duas: o Senhor e o próximo. Estas duas riquezas não desaparecem».

62. Que o Senhor liberte a Igreja das novas formas de gnosticismo e pelagianismo que a complicam e detêm no seu caminho para a santidade! Estes desvios manifestam-se de formas diferentes, segundo o temperamento e as características próprias. Por isso, exorto cada um a questionar-se e a discernir diante de Deus a maneira como possam estar a manifestar-se na sua vida.

Capítulo III

À LUZ DO MESTRE~

63. Sobre a essência da santidade, pode haver muitas teorias, abundantes explicações e distinções. Uma reflexão do género poderia ser útil, mas não há nada de mais esclarecedor do que voltar às palavras de Jesus e recolher o seu modo de transmitir a verdade. Jesus explicou, com toda a simplicidade, o que é ser santo; fê-lo quando nos deixou as bem-aventuranças (cf. Mt 5, 3-12; Lc 6, 20-23). Estas são como que o bilhete de identidade do cristão. Assim, se um de nós se questionar sobre «como fazer para chegar a ser um bom cristão», a resposta é simples: é necessário fazer – cada qual a seu modo – aquilo que Jesus disse no sermão das bem-aventuranças. Nelas está delineado o rosto do Mestre, que somos chamados a deixar transparecer no dia-a-dia da nossa vida.

64. A palavra «feliz» ou «bem-aventurado» torna-se sinónimo de «santo», porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade.

Contracorrente

65. Estas palavras de Jesus, não obstante possam até parecer poéticas, estão decididamente contracorrente ao que é habitual, àquilo que se faz na sociedade; e, embora esta mensagem de Jesus nos fascine, na realidade o mundo conduz-nos para outro estilo de vida. As bem-aventuranças não são, absolutamente, um compromisso leve ou superficial; pelo contrário, só as podemos viver se o Espírito Santo nos permear com toda a sua força e nos libertar da fraqueza do egoísmo, da preguiça, do orgulho.

66. Voltemos a escutar Jesus, com todo o amor e respeito que o Mestre merece. Permitamos-Lhe que nos fustigue com as suas palavras, que nos desafie, que nos chame a uma mudança real de vida. Caso contrário, a santidade não passará de palavras. Recordemos agora as diferentes bem-aventuranças, na versão do Evangelho de Mateus (cf. 5, 3-12).

«Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu»

67. O Evangelho convida-nos a reconhecer a verdade do nosso coração, para ver onde colocamos a segurança da nossa vida. Normalmente, o rico sente-se seguro com as suas riquezas e, quando estas estão em risco, pensa que se desmorona todo o sentido da sua vida na terra. O próprio Jesus no-lo disse na parábola do rico insensato, falando daquele homem seguro de si, que – como um insensato – não pensava que poderia morrer naquele mesmo dia (cf. Lc 12, 16-21).

(cont)
(revisão da versão portuguesa por AMA)


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