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07/01/2019

Leitura espiritual


SOBRE A CHAMADA À SANTIDADE
NO MUNDO ACTUAL
Capítulo II
DOIS INIMIGOS SUBTIS DA SANTIDADE
35. Neste contexto, desejo chamar a atenção para duas falsificações da santidade que poderiam extraviar-nos: o gnosticismo e o pelagianismo. São duas heresias que surgiram nos primeiros séculos do cristianismo, mas continuam a ser de alarmante actualidade. Ainda hoje os corações de muitos cristãos, talvez inconscientemente, deixam-se seduzir por estas propostas enganadoras. Nelas aparece expresso um imanentismo antropocêntrico, disfarçado de verdade católica. [i] Vejamos estas duas formas de segurança doutrinária ou disciplinar, que dão origem «a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente». [ii]
36. O gnosticismo supõe «uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos». [iii]
37. Graças a Deus, ao longo da história da Igreja, ficou bem claro que aquilo que mede a perfeição das pessoas é o seu grau de caridade, e não a quantidade de dados e conhecimentos que possam acumular. Os «gnósticos», baralhados neste ponto, julgam os outros segundo conseguem, ou não, compreender a profundidade de certas doutrinas. Concebem uma mente sem encarnação, incapaz de tocar a carne sofredora de Cristo nos outros, engessada numa enciclopédia de abstracções. Ao desencarnar o mistério, em última análise preferem «um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo». [iv]
38. Em suma, trata-se duma vaidosa superficialidade: muito movimento à superfície da mente, mas não se move nem se comove a profundidade do pensamento. No entanto, consegue subjugar alguns com o seu fascínio enganador, porque o equilíbrio gnóstico é formal e supostamente asséptico, podendo assumir o aspeto duma certa harmonia ou duma ordem que tudo abrange.
39. Mas atenção! Não estou a referir-me aos racionalistas inimigos da fé cristã. Isto pode acontecer dentro da Igreja, tanto nos leigos das paróquias como naqueles que ensinam filosofia ou teologia em centros de formação. Com efeito, também é típico dos gnósticos crer que eles, com as suas explicações, podem tornar perfeitamente compreensível toda a fé e todo o Evangelho. Absolutizam as suas teorias e obrigam os outros a submeter-se aos raciocínios que eles usam. Uma coisa é o uso saudável e humilde da razão para refletir sobre o ensinamento teológico e moral do Evangelho, outra é pretender reduzir o ensinamento de Jesus a uma lógica fria e dura que procura dominar tudo [v].
40. O gnosticismo é uma das piores ideologias, pois, ao mesmo tempo que exalta indevidamente o conhecimento ou uma determinada experiência, considera que a sua própria visão da realidade seja a perfeição. Assim, talvez sem se aperceber, esta ideologia auto-alimenta-se e torna-se ainda mais cega. Por vezes, torna-se particularmente enganadora, quando se disfarça de espiritualidade desencarnada. Com efeito, o gnosticismo, «por sua natureza, quer domesticar o mistério», [vi] tanto o mistério de Deus e da sua graça, como o mistério da vida dos outros.
41. Quando alguém tem resposta para todas as perguntas, demonstra que não está no bom caminho e é possível que seja um falso profeta, que usa a religião para seu benefício, ao serviço das próprias lucubrações psicológicas e mentais. Deus supera-nos infinitamente, é sempre uma surpresa e não somos nós que determinamos a circunstância histórica em que O encontramos, já que não dependem de nós o tempo, nem o lugar, nem a modalidade do encontro. Quem quer tudo claro e seguro, pretende dominar a transcendência de Deus.
42. Nem se pode pretender definir onde Deus não Se encontra, porque Ele está misteriosamente presente na vida de toda a pessoa, na vida de cada um como Ele quer, e não o podemos negar com as nossas supostas certezas. Mesmo quando a vida de alguém tiver sido um desastre, mesmo que o vejamos destruído pelos vícios ou dependências, Deus está presente na sua vida. Se nos deixarmos guiar mais pelo Espírito do que pelos nossos raciocínios, podemos e devemos procurar o Senhor em cada vida humana. Isto faz parte do mistério que as mentalidades gnósticas acabam por rejeitar, porque não o podem controlar.
43. Só de forma muito pobre, chegamos a compreender a verdade que recebemos do Senhor. E, ainda com maior dificuldade, conseguimos expressá-la. Por isso, não podemos pretender que o nosso modo de a entender nos autorize a exercer um controlo rigoroso sobre a vida dos outros. Quero lembrar que, na Igreja, convivem legitimamente diferentes maneiras de interpretar muitos aspetos da doutrina e da vida cristã, que, na sua variedade, «ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. [Certamente,] a quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita». [vii] Por isso mesmo, algumas correntes gnósticas desprezaram a simplicidade tão concreta do Evangelho e tentaram substituir o Deus trinitário e encarnado por uma Unidade superior onde desaparecia a rica multiplicidade da nossa história.
44. Na realidade, a doutrina, ou melhor, a nossa compreensão e expressão dela, «não é um sistema fechado, privado de dinâmicas próprias capazes de gerar perguntas, dúvidas, questões (…); e as perguntas do nosso povo, as suas angústias, batalhas, sonhos e preocupações possuem um valor hermenêutico que não podemos ignorar, se quisermos deveras levar a sério o princípio da encarnação. As suas perguntas ajudam-nos a questionar-nos, as suas questões interrogam-nos». [viii]
45. Com frequência, verifica-se uma perigosa confusão: julgar que, por sabermos algo ou podermos explicá-lo com uma certa lógica, já somos santos, perfeitos, melhores do que a «massa ignorante». São João Paulo II advertia, a quantos na Igreja têm a possibilidade de uma formação mais elevada, contra a tentação de cultivarem «um certo sentimento de superioridade relativamente aos outros fiéis». [ix] Na realidade, porém, aquilo que julgamos saber sempre deveria ser uma motivação para responder melhor ao amor de Deus, porque «se aprende para viver: teologia e santidade são um binómio inseparável». [x]
46. São Francisco de Assis, ao ver que alguns dos seus discípulos ensinavam a doutrina, quis evitar a tentação do gnosticismo. Então escreveu assim a Santo António de Lisboa: «Apraz-me que interpreteis aos demais frades a sagrada teologia, contanto que este estudo não apague neles o espírito da santa oração e devoção». [xi] Reconhecia a tentação de transformar a experiência cristã num conjunto de especulações mentais, que acabam por nos afastar do frescor do Evangelho. São Boaventura, por sua vez, advertia que a verdadeira sabedoria cristã não se deve desligar da misericórdia para com o próximo: «A maior sabedoria que pode existir consiste em dispensar frutuosamente o que se possui e que lhe foi dado precisamente para o distribuir (...). Por isso, como a misericórdia é amiga da sabedoria, assim a avareza é sua inimiga». [xii] «Há actividades, como as obras de misericórdia e de piedade, que, unindo-se à contemplação, não a impedem, antes favorecem-na». [xiii]
47. O gnosticismo deu lugar a outra heresia antiga, que está presente também hoje. Com o passar do tempo, muitos começaram a reconhecer que não é o conhecimento que nos torna melhores ou santos, mas a vida que levamos. O problema é que isto foi subtilmente degenerando, de modo que o mesmo erro dos gnósticos foi simplesmente transformado, mas não superado.
48. Com efeito, o poder que os gnósticos atribuíam à inteligência, alguns começaram a atribuí-lo à vontade humana, ao esforço pessoal. Surgiram, assim, os pelagianos e os semipelagianos. Já não era a inteligência que ocupava o lugar do mistério e da graça, mas a vontade. Esquecia-se que «isto não depende daquele que quer nem daquele que se esfoça por alcançá-lo, mas de Deus que é misericordioso» (Rm 9, 16) e que Ele «nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19).
49. Quem se conforma a esta mentalidade pelagiana ou semipelagiana, embora fale da graça de Deus com discursos edulcorados, «no fundo, só confia nas suas próprias forças e sente-se superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico». [xiv] Quando alguns deles se dirigem aos frágeis, dizendo-lhes que se pode tudo com a graça de Deus, basicamente costumam transmitir a ideia de que tudo se pode com a vontade humana, como se esta fosse algo puro, perfeito, omnipotente, a que se acrescenta a graça. Pretende-se ignorar que «nem todos podem tudo», [xv] e que, nesta vida, as fragilidades humanas não são curadas, completamente e duma vez por todas, pela graça. [xvi] Em todo o caso, como ensinava Santo Agostinho, Deus convida-te a fazer o que podes e «a pedir o que não podes»; [xvii] ou então a dizer humildemente ao Senhor: «dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes». [xviii]
50. No fundo, a falta dum reconhecimento sincero, pesaroso e orante dos nossos limites é que impede a graça de actuar melhor em nós, pois não lhe deixa espaço para provocar aquele bem possível que se integra num caminho sincero e real de crescimento. [xix] A graça, precisamente porque supõe a nossa natureza, não nos faz improvisamente super-homens. Pretendê-lo seria confiar demasiado em nós próprios. Neste caso, por trás da ortodoxia, as nossas atitudes podem não corresponder ao que afirmamos sobre a necessidade da graça e, na prática, acabamos por confiar pouco nela. Com efeito, se não reconhecemos a nossa realidade concreta e limitada, não poderemos ver os passos reais e possíveis que o Senhor nos pede em cada momento, depois de nos ter atraído e tornado idóneos com o seu dom. A graça atua historicamente e, em geral, toma-nos e transforma-nos de forma progressiva. [xx] Por isso, se recusarmos esta modalidade histórica e progressiva, de facto podemos chegar a negá-la e bloqueá-la, embora a exaltemos com as nossas palavras.

(cont)
Revisão da versão portuguesa por AMA)




[i] «Quer o individualismo neopelagiano quer o desprezo neognóstico do corpo descaraterizam a confissão de fé em Cristo, único Salvador universal» [Congr. para a Doutrina da Fé, Carta sobre alguns aspetos da salvação cristã Placuit Deo (22 de fevereiro de 2018), 4: L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 08/III/2018), 8]. Neste documento, encontram-se as bases doutrinais para compreender a salvação face às derivas neognósticas e neopelagianas atuais.
[ii] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 94: AAS 105 (2013), 1060.
[iii] Ibid., 94: o. c., 1059.
[iv] Francisco, Homilia da Missa na Casa de Santa Marta (11 de novembro de 2016): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 17/XI/2016), 11.
[v] Como ensina São Boaventura, «é necessário que se deixem todas as operações intelectivas e que o ápice mais sublime do amor seja transferido e transformado totalmente em Deus. (…) Dado que, para se obter isto, nada pode a natureza e pouco pode a ciência, é preciso dar pouca importância à indagação, muita à unção espiritual; pouca à língua e muita à alegria interior; pouca à palavra e aos livros e toda ao dom de Deus, isto é, ao Espírito Santo; pouca ou nenhuma à criatura e toda ao Criador: ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo» [Itinerarium mentis in Deo, VII, 4-5: Opere di San Bonaventura (Roma 1993), 577].
[vi] Francisco, Carta ao Grão-Chanceler da Pontifícia Universidade Católica Argentina no centenário da Faculdade de Teologia (3 de março de 2015): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 12/III/2015), 11.
[vii] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 40: AAS 105 (2013), 1037.
[ix] Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25 de março de 1996), 38: AAS 88 (1996), 412.
[x] Francisco, Carta ao Grão-Chanceler da Pontifícia Universidade Católica Argentina no centenário da Faculdade de Teologia (3 de março de 2015): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 12/III/2015), 11.
[xi] Carta a Frei António, 2: Fonti Francescane, 251.
[xii] De septem Donis, 9, 15.
[xiii] Idem, In IV Sent. 37, 1, 3, ad 6.
[xiv] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 94: AAS 105 (2013), 1059.
[xv] «Non omnes omnia possunt» (São Boaventura, De sex alis Seraphim 3, 8). Há que entender a afirmação na linha do Catecismo da Igreja Católica, n. 1735.
[xvi] «Agora, porém, a graça é de certo modo imperfeita, pois – como se disse – não cura o homem totalmente» (São Tomás de Aquino, Summa Theologiae I-II, q. 109, a. 9, ad 1).
[xvii] De natura et gratia, XLIII, 50: PL 44, 271.
[xviii] Idem, Confissões, X, 29, 40: PL 32, 796.
[xix] Cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038.
[xx] Na compreensão da fé cristã, a graça é preveniente, concomitante e subsequente a todo o nosso agir. Cf. Conc. Ecum. de Trento, Sess.VI, Decretum de iustificatione, cap. 5: DzS 1525.

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