Páginas

11/01/2019

Leitura espiritual


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
GAUDETE ET EXSULTATE
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE A CHAMADA À SANTIDADE
NO MUNDO ACTUAL
Capítulo III
À LUZ DO MESTRE
A grande regra de comportamento

104. Poder-se-ia pensar que damos glória a Deus só com o culto e a oração, ou apenas observando algumas normas éticas (é verdade que o primado pertence à relação com Deus), mas esquecemos que o critério de avaliação da nossa vida é, antes de mais nada, o que fizemos pelos outros. A oração é preciosa, se alimenta uma doação diária de amor. O nosso culto agrada a Deus, quando levamos lá os propósitos de viver com generosidade e quando deixamos que o dom lá recebido se manifeste na dedicação aos irmãos.
105. Pela mesma razão, o melhor modo para discernir se o nosso caminho de oração é autêntico será ver em que medida a nossa vida se vai transformando à luz da misericórdia. Com efeito, «a misericórdia não é apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros filhos». [i] É «a arquitrave que suporta avida da Igreja». [ii] Quero assinalar mais uma vez que, embora a misericórdia não exclua a justiça e a verdade, «antes de tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus». [iii] A misericórdia «é a chave do Céu». [iv]
106. Não posso deixar de lembrar a questão que se colocava São Tomás de Aquino ao interrogar-se quais são as nossas acções maiores, quais são as obras exteriores que manifestam melhor o nosso amor a Deus. Responde sem hesitar que, mais do que os actos de culto, são as obras de misericórdia para com o próximo: [v] «não praticamos o culto a Deus com sacrifícios e com ofertas exteriores para proveito d’Ele, mas para benefício nosso e do próximo: de facto Ele não precisa dos nossos sacrifícios, mas quer que Lhos ofereçamos para nossa devoção e para utilidade do próximo. Por isso a misericórdia, pela qual socorremos as carências alheias, ao favorecer mais directamente a utilidade do próximo, é o sacrifício que mais Lhe agrada». [vi]
107. Quem deseja verdadeiramente dar glória a Deus com a sua vida, quem realmente se quer santificar para que a sua existência glorifique o Santo, é chamado a obstinar-se, gastar-se e cansar-se procurando viver as obras de misericórdia. Muito bem o entendera Santa Teresa de Calcutá: «sim, tenho muitas fraquezas humanas, muitas misérias humanas. (...) Mas Ele abaixa-Se e serve-Se de nós, de ti e de mim, para sermos o seu amor e a sua compaixão no mundo, apesar dos nossos pecados, apesar das nossas misérias e defeitos. Ele depende de nós para amar o mundo e demonstrar-lhe o muito que o ama. Se nos ocuparmos demasiado de nós mesmos, não teremos tempo para os outros». [vii]
108. O consumismo hedonista pode-nos enganar, porque, na obsessão de divertir-nos, acabamos por estar excessivamente concentrados em nós mesmos, nos nossos direitos e na exacerbação de ter tempo livre para gozar a vida. Será difícil que nos comprometamos e dediquemos energias a dar uma mão a quem está mal, se não cultivarmos uma certa austeridade, se não lutarmos contra esta febre que a sociedade de consumo nos impõe para nos vender coisas, acabando por nos transformar em pobres insatisfeitos que tudo querem ter e provar. O próprio consumo de informação superficial e as formas de comunicação rápida e virtual podem ser um fator de estonteamento que ocupa todo o nosso tempo e nos afasta da carne sofredora dos irmãos. No meio deste turbilhão actual, volta a ressoar o Evangelho para nos oferecer uma vida diferente, mais saudável e mais feliz.
109. A força do testemunho dos santos consiste em viver as bem-aventuranças e a regra de comportamento do juízo final. São poucas palavras, simples, mas práticas e válidas para todos, porque o cristianismo está feito principalmente para ser praticado e, se é também objecto de reflexão, isso só tem valor quando nos ajuda a viver o Evangelho na vida diária. Recomendo vivamente que se leia, com frequência, estes grandes textos bíblicos, que sejam recordados, que se reze com eles, que se procure encarná-los. Far-nos-ão bem, tornar-nos-ão genuinamente felizes.
ALGUMAS CARATERÍSTICAS DA SANTIDADE
NO MUNDO ATUAL
110. Neste grande quadro da santidade que as bem-aventuranças e Mateus 25, 31-46 nos propõem, gostaria de recolher algumas características ou traços espirituais que, a meu ver, são indispensáveis para compreender o estilo de vida a que o Senhor nos chama. Não me deterei a explicar os meios de santificação que já conhecemos: os diferentes métodos de oração, os sacramentos inestimáveis da Eucaristia e da Reconciliação, a oferta de sacrifícios, as várias formas de devoção, a direcção espiritual e muitos outros. Limitar-me-ei a referir alguns aspectos da chamada à santidade, que tenham – assim o espero – uma ressonância especial.
111. Estas características que quero evidenciar não são todas as que podem constituir um modelo de santidade, mas são cinco grandes manifestações do amor a Deus e ao próximo, que considero particularmente importantes devido a alguns riscos e limites da cultura de hoje. Nesta se manifestam: a ansiedade nervosa e violenta que nos dispersa e enfraquece; o negativismo e a tristeza; a acédia cómoda, consumista e egoísta; o individualismo e tantas formas de falsa espiritualidade sem encontro com Deus que reinam no mercado religioso actual.
112. A primeira destas grandes características é permanecer centrado, firme em Deus que ama e sustenta. A partir desta firmeza interior, é possível aguentar, suportar as contrariedades, as vicissitudes da vida e também as agressões dos outros, as suas infidelidades e defeitos: «se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?» (Rm 8, 31). Nisto está a fonte da paz que se expressa nas atitudes dum santo. Com base em tal solidez interior, o testemunho de santidade, no nosso mundo acelerado, volúvel e agressivo, é feito de paciência e constância no bem. É a fidelidade (pistis) do amor, pois quem se apoia em Deus também pode ser fiel (pistós) aos irmãos, não os abandonando nos momentos difíceis, nem se deixando levar pela própria ansiedade, mas mantendo-se ao lado dos outros mesmo quando isso não lhe proporcione qualquer satisfação imediata.
113. São Paulo convidava os cristãos de Roma a não pagar a ninguém o mal com o mal (cf. Rm 12, 17), a não fazer-se justiça por conta própria (cf. 12, 19), nem a deixar-se vencer pelo mal, mas vencer o mal com o bem (cf. 12, 21). Esta atitude não é sinal de fraqueza, mas da verdadeira força, porque o próprio Deus «é paciente e grande em poder» (Na 1, 3). Assim nos adverte a Palavra de Deus: «toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade» (Ef 4, 31).
114. É preciso lutar e estar atentos às nossas inclinações agressivas e egocêntricas, para não deixar que ganhem raízes: «se vos irardes, não pequeis; que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento» (Ef 4, 26). Quando há circunstâncias que nos acabrunham, sempre podemos recorrer à âncora da súplica, que nos leva a ficar de novo nas mãos de Deus e junto da fonte da paz: «por nada vos deixeis inquietar; pelo contrário: em tudo, pela oração e pela prece, apresentai os vossos pedidos a Deus em acções de graças. Então, a paz de Deus, que ultrapassa toda a inteligência, guardará os vossos corações» (Flp 4, 6-7).
115. Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros mandamentos, se ignora completamente o oitavo: «não levantar falsos testemunhos» e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como a língua descontrolada «é um mundo de iniquidade; (…) e, inflamada pelo Inferno, incendeia o curso da nossa existência» (Tg 3, 6).
116. A firmeza interior, que é obra da graça, impede de nos deixarmos arrastar pela violência que invade a vida social, porque a graça aplaca a vaidade e torna possível a mansidão do coração. O santo não gasta as suas energias a lamentar-se dos erros alheios, é capaz de guardar silêncio sobre os defeitos dos seus irmãos e evita a violência verbal que destrói e maltrata, porque não se julga digno de ser duro com os outros, mas considera-os superiores a si próprio (cf. Flp 2, 3).
117. Não nos faz bem olhar com altivez, assumir o papel de juízes sem piedade, considerar os outros como indignos e pretender continuamente dar lições. Esta é uma forma subtil de violência. [viii] São João da Cruz propunha outra coisa: «mostra-te sempre mais propenso a ser ensinado por todos do que a querer ensinar quem é inferior a todos». [ix] E acrescentava um conselho para afastar o demónio: «alegrando-te com o bem dos outros como se fosse teu e procurando sinceramente que estes sejam preferidos a ti em todas as coisas, assim vencerás o mal com o bem, afastarás o demónio para longe e alegrarás o coração. Procura exercitá-lo sobretudo com aqueles que te são menos simpáticos. E sabe que, se não te exercitares neste campo, não chegarás à verdadeira caridade nem tirarás proveito dela». [x]
118. A humildade só se pode enraizar no coração através das humilhações. Sem elas, não há humildade nem santidade. Se não fores capaz de suportar e oferecer a Deus algumas humilhações, não és humilde nem estás no caminho da santidade. A santidade que Deus dá à sua Igreja, vem através da humilhação do seu Filho: este é o caminho. A humilhação faz-te semelhante a Jesus, é parte ineludível da imitação de Jesus: «Cristo padeceu por vós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos» (1 Ped 2, 21). Ele, por sua vez, manifesta a humildade do Pai, que Se humilha para caminhar com o seu povo, que suporta as suas infidelidades e murmurações (cf. Ex 34, 6-9; Sab 11, 23 – 12, 2; Lc 6, 36). Por este motivo os Apóstolos, depois da humilhação, estavam «cheios de alegria, por terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do Nome de Jesus» (At 5, 41).
119. Não me refiro apenas às situações cruentas de martírio, mas às humilhações diárias daqueles que calam para salvar a sua família, ou evitam falar bem de si mesmos e preferem louvar os outros em vez de se gloriar, escolhem as tarefas menos vistosas e às vezes até preferem suportar algo de injusto para o oferecer ao Senhor: «se, fazendo o bem, sofreis com paciência, isso é uma coisa meritória diante de Deus» (1 Ped 2, 20). Não é caminhar com a cabeça inclinada, falar pouco ou escapar da sociedade. Às vezes uma pessoa, precisamente porque está liberta do egocentrismo, pode ter a coragem de discutir amavelmente, reclamar justiça ou defender os fracos diante dos poderosos, mesmo que isso traga consequências negativas para a sua imagem.
120. Não digo que a humilhação seja algo de agradável, porque isso seria masoquismo, mas que se trata dum caminho para imitar Jesus e crescer na união com Ele. Isto não é compreensível no plano natural, e o mundo ridiculariza semelhante proposta. É uma graça que precisamos de implorar: «Senhor, quando chegarem as humilhações, ajuda-me a sentir que estou seguindo atrás de Ti, no teu caminho».
121. Esta atitude pressupõe um coração pacificado por Cristo, liberto daquela agressividade que brota dum «ego» demasiado grande. A própria pacificação, que a graça realiza, permite-nos manter uma segurança interior e aguentar, perseverar no bem «ainda que atravesse vales tenebrosos» (Sal 23/22, 4) ou «ainda que um exército me cerque» (Sal 27/26, 3). Firmes no Senhor, a Rocha, podemos cantar: «deito-me em paz e logo adormeço, porque só Tu, Senhor, me fazes viver em segurança» (Sal 4, 9). Em suma, Cristo «é a nossa paz» (Ef 2,14) e veio «dirigir os nossos passos no caminho da paz» (Lc 1, 79). Ele fez saber a Santa Faustina Kowalska: «a humanidade não encontrará paz, enquanto não se dirigir com confiança à Minha Misericórdia».[xi]  Por isso, não caiamos na tentação de procurar a segurança interior no sucesso, nos prazeres vazios, na riqueza, no domínio sobre os outros ou na imagem social: «Dou-vos a minha paz. [Mas] não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou» (Jo 14, 27).


(cont)
(revisão da versão portuguesa por AMA)




[i] Francisco, Bula Misericordiae Vultus (11 de abril de 2015), 9: AAS 107 (2015), 405.
[ii] Ibid., 10: o. c., 406.
[iii] Idem, Exort. ap. pós-sinodal Amoris laetitia (19 de março de 2016), 311: AAS108 (2016), 439.
[iv] Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 197: AAS 105 (2013), 1103.
[v] Cf. Summa Theologiae, II-II, q. 30, a. 4.
[vi] Ibid., ad 1.
[vii] Cristo en los Pobres (Madrid 1981), 37-38.
[viii] Há muitas formas de bulismo que, embora pareçam elegantes ou respeitosas e até mesmo muito espirituais, provocam muito sofrimento na auto-estima dos outros.
[ix] Cautelas, 13: Opere (Roma 41979), 1070.
[x] Ibid., 13: o. c., 1070.
[xi] A Misericórdia Divina na minha alma. Diário da Beata Irmã Faustina Kowalska (Cidade do Vaticano 1996), 132.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.