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10/01/2019

Leitura espiritual


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
GAUDETE ET EXSULTATE
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE A CHAMADA À SANTIDADE
NO MUNDO ACTUAL
Capítulo III
À LUZ DO MESTRE
«Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus»

87. Esta bem-aventurança faz-nos pensar nas numerosas situações de guerra que perduram. Da nossa parte, é muito comum sermos causa de conflitos ou, pelo menos, de incompreensões. Por exemplo, quando ouço qualquer coisa sobre alguém e vou ter com outro e lho digo; e até faço uma segunda versão um pouco mais ampla e espalho-a. E, se o dano que consigo fazer é maior, até parece que me causa maior satisfação. O mundo das murmurações, feito por pessoas que se dedicam a criticar e destruir, não constrói a paz. Pelo contrário, tais pessoas são inimigas da paz e, de modo nenhum, bem-aventuradas. [i]
88. Os pacíficos são fonte de paz, constroem paz e amizade social. Àqueles que cuidam de semear a paz por todo o lado, Jesus faz-lhes uma promessa maravilhosa: «serão chamados filhos de Deus» (Mt 5, 9). Aos discípulos, pedia-lhes que, ao chegar a uma casa, dissessem: «a paz esteja nesta casa!» (Lc 10, 5). A Palavra de Deus exorta cada crente a procurar, juntamente «com todos», a paz (cf. 2 Tim 2, 22), pois «é com a paz que uma colheita de justiça é semeada pelos obreiros da paz» (Tg 3, 18). E na nossa comunidade, se alguma vez tivermos dúvidas acerca do que se deve fazer, «procuremos aquilo que leva à paz» (Rm 14, 19), porque a unidade é superior ao conflito. [ii]
89. Não é fácil construir esta paz evangélica que não exclui ninguém; antes, integra mesmo aqueles que são um pouco estranhos, as pessoas difíceis e complicadas, os que reclamam atenção, aqueles que são diferentes, aqueles que são muito fustigados pela vida, aqueles que cultivam outros interesses. É difícil, requerendo uma grande abertura da mente e do coração, uma vez que não se trata de «um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz» [iii] nem de «um projecto de poucos para poucos». [iv] Também não pretende ignorar ou dissimular os conflitos, mas «aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo». [v] Trata-se de ser artesãos da paz, porque construir a paz é uma arte que requer serenidade, criatividade, sensibilidade e destreza.
Semear a paz ao nosso redor: isto é santidade.
90. O próprio Jesus sublinha que este caminho vai contracorrente, a ponto de nos transformar em pessoas que questionam a sociedade com a sua vida, pessoas que incomodam. Jesus lembra as inúmeras pessoas que foram, e são, perseguidas simplesmente por ter lutado pela justiça, ter vivido os seus compromissos com Deus e com os outros. Se não queremos afundar numa obscura mediocridade, não pretendamos uma vida cómoda, porque, «quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la» (Mt 16, 25).
91. Para viver o Evangelho, não podemos esperar que tudo à nossa volta seja favorável, porque muitas vezes as ambições de poder e os interesses mundanos jogam contra nós. São João Paulo II declarava «alienada a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização [do] dom [de si mesmo] e a constituição [da] solidariedade inter-humana». [vi] Numa tal sociedade alienada, enredada numa trama política, mediática, económica, cultural e mesmo religiosa, que estorva o autêntico desenvolvimento humano e social, torna-se difícil viver as bem-aventuranças, podendo até a sua vivência ser mal vista, suspeita, ridicularizada.
92. A cruz, especialmente as fadigas e os sofrimentos que suportamos para viver o mandamento do amor e o caminho da justiça, é fonte de amadurecimento e santificação. Lembremo-nos disto: quando o Novo Testamento fala dos sofrimentos que é preciso suportar pelo Evangelho, refere-se precisamente às perseguições (cf. At 5, 41; Flp 1, 29; Col 1, 24; 2 Tm 1, 12; 1 Ped 2, 20; 4, 14-16; Ap 2, 10).
93. Fala-se, porém, das perseguições inevitáveis, não daquelas que nós próprios podemos provocar com um modo errado de tratar os outros. Um santo não é uma pessoa excêntrica, distante, que se torna insuportável pela sua vaidade, negativismo e ressentimento. Não eram assim os Apóstolos de Cristo. O livro dos Atos refere, com insistência, que eles gozavam da simpatia «de todo o povo» (2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13), enquanto algumas autoridades os assediavam e perseguiam (cf. 4, 1- 3; 5, 17-18).
94. As perseguições não são uma realidade do passado, porque hoje também as sofremos quer de forma cruenta, como tantos mártires contemporâneos, quer duma maneira mais subtil, através de calúnias e falsidades. Jesus diz que haverá felicidade, quando, «mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa» (Mt 5, 11). Outras vezes, trata-se de zombarias que tentam desfigurar a nossa fé e fazer-nos passar por pessoas ridículas.
Abraçar diariamente o caminho do Evangelho mesmo que nos acarrete problemas: isto é santidade.
95. No capítulo 25 do Evangelho de Mateus (vv. 31-46), Jesus volta a deter-se numa destas bem-aventuranças: a que declara felizes os misericordiosos. Se andamos à procura da santidade que agrada a Deus, neste texto encontramos precisamente uma regra de comportamento com base na qual seremos julgados: «Tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber, era peregrino e recolhestes-Me, estava nu e destes-Me que vestir, adoeci e visitastes-Me, estive na prisão e fostes ter comigo» (25, 35-36).
96. Deste modo, ser santo não significa revirar os olhos num suposto êxtase. Dizia São João Paulo II que, «se verdadeiramente partimos da contemplação de Cristo, devemos saber vê-Lo sobretudo no rosto daqueles com quem Ele mesmo Se quis identificar». [vii] O texto de Mateus 25, 35-36 «não é um mero convite à caridade, mas uma página de cristologia que projecta um feixe de luz sobre o mistério de Cristo». [viii] Neste apelo a reconhecê-Lo nos pobres e atribulados, revela-se o próprio coração de Cristo, os seus sentimentos e as suas opções mais profundas, com os quais se procura configurar todo o santo.
97. Perante a força destas solicitações de Jesus, é meu dever pedir aos cristãos que as aceitem e recebam com sincera abertura, sine glossa, isto é, sem comentários, especulações e desculpas que lhes tirem força. O Senhor deixou-nos bem claro que a santidade não se pode compreender nem viver prescindindo destas suas exigências, porque a misericórdia é o «coração pulsante do Evangelho». [ix]
98. Quando encontro uma pessoa a dormir ao relento, numa noite fria, posso sentir que este vulto seja um imprevisto que me detém, um delinquente ocioso, um obstáculo no meu caminho, um aguilhão molesto para a minha consciência, um problema que os políticos devem resolver e talvez até um monte de lixo que suja o espaço público. Ou então posso reagir a partir da fé e da caridade e reconhecer nele um ser humano com a mesma dignidade que eu, uma criatura infinitamente amada pelo Pai, uma imagem de Deus, um irmão redimido por Jesus Cristo. Isto é ser cristão! Ou poder-se-á porventura entender a santidade prescindindo deste reconhecimento vivo da dignidade de todo o ser humano? [x]
99. Para os cristãos, isto supõe uma saudável e permanente insatisfação. Embora dar alívio a uma única pessoa já justificasse todos os nossos esforços, para nós isso não é suficiente. Com clareza o afirmaram os Bispos do Canadá ao mostrar como nos ensinamentos bíblicos sobre o Jubileu, por exemplo, não se trata apenas de fazer algumas acções boas, mas de procurar uma mudança social: «para que fossem libertadas também as gerações futuras, o objectivo proposto era claramente o restabelecimento de sistemas sociais e económicos justos, a fim de que não pudesse haver mais exclusão». [xi]
100. Às vezes, infelizmente, as ideologias levam-nos a dois erros nocivos. Por um lado, o erro dos cristãos que separam estas exigências do Evangelho do seu relacionamento pessoal com o Senhor, da união interior com Ele, da graça. Assim transforma-se o cristianismo numa espécie de ONG, privando-o daquela espiritualidade irradiante que, tão bem, viveram e manifestaram São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo, Santa Teresa de Calcutá e muitos outros. A estes grandes santos, nem a oração, nem o amor de Deus, nem a leitura do Evangelho diminuíram a paixão e a eficácia da sua dedicação ao próximo; antes pelo contrário...
101. Mas é nocivo e ideológico também o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista; ou então relativizam-no como se houvesse outras coisas mais importantes, como se interessasse apenas uma determinada ética ou um arrazoado que eles defendem. A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte. [xii] Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente.
102. Muitas vezes ouve-se dizer que, face ao relativismo e aos limites do mundo actual, seria um tema marginal, por exemplo, a situação dos migrantes. Alguns católicos afirmam que é um tema secundário relativamente aos temas «sérios» da bioética. Que fale assim um político preocupado com os seus sucessos, talvez se possa chegar a compreender; mas não um cristão, cuja única atitude condigna é colocar-se na pele do irmão que arrisca a vida para dar um futuro aos seus filhos. Poderemos nós reconhecer que é precisamente isto o que nos exige Jesus quando diz que a Ele mesmo recebemos em cada forasteiro (cf. Mt 25, 35)? São Bento assumira-o sem reservas e, embora isto pudesse «complicar» a vida dos monges, estabeleceu que todos os hóspedes que se apresentassem no mosteiro fossem acolhidos «como Cristo», [xiii] manifestando-o mesmo com gestos de adoração, [xiv] e que os pobres e peregrinos fossem tratados «com o máximo cuidado e solicitude». [xv]
103. Algo de semelhante propõe o Antigo Testamento, quando diz: «não usarás de violência contra o estrangeiro residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egipto» (Ex 22, 20). «O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros na terra do Egito» (Lv 19, 34). Por isso, não se trata da invenção de um Papa nem dum delírio passageiro. Também nós, no contexto actual, somos chamados a viver o caminho de iluminação espiritual que nos apresentava o profeta Isaías quando, interrogando-se sobre o que agrada a Deus, respondia: é «repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não desprezar o teu irmão. Então, a tua luz surgirá como a aurora» (58, 7-8).

(cont)
(revisão da versão portuguesa por AMA)




[i] A difamação e a calúnia são comparáveis a um ato terrorista: atira-se a bomba, destrói e o terrorista segue o seu caminho feliz e tranquilo. Isto é muito diferente da nobreza de quem se aproxima para falar face a face, com sinceridade serena, pensando no bem do outro.
[ii] Nalgumas ocasiões, pode ser necessário falar sobre as dificuldades dum irmão. Nestes casos, porém, pode acontecer que se transmita uma interpretação em vez do facto objetivo. A paixão deforma a realidade concreta do facto, transforma-o numa interpretação e acaba-se por transmitir esta interpretação cheia de subjetividade. Deste modo, destrói-se a realidade e não se respeita a verdade do outro.
[iii] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 218: AAS 105 (2013), 1110.
[iv] Ibid., 239: o. c., 1116.
[v] Ibid., 227: o. c., 1112.
[vi] Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 41: AAS 83 (1991), 844-845.
[vii] Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de janeiro de 2001), 49: AAS 93 (2001), 302.
[viii] Ibid., 49: o. c., 302.
[ix] Francisco, Bula Misericordiae Vultus (11 de abril de 2015), 12: AAS 107 (2015), 407.
[x] Lembremos a reação do bom samaritano à vista do homem que os salteadores deixaram meio morto na beira da estrada (cf.Lc 10, 30-37).
[xi] Conferência Canadiana dos Bispos Católicos - Comissão de Assuntos Sociais, Carta aberta aos membros do Parlamento The Common Good or Exclusion: a Choice for Canadians (1 de fevereiro de 2001), 9.
[xii] A V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, atendo-se ao magistério constante da Igreja, ensinou que o ser humano «é sempre sagrado, desde a sua conceção, em todas as etapas da existência, até à sua morte natural e depois da morte», e que a sua vida deve ser cuidada «desde a conceção, em todas as suas etapas, até à morte natural» [ Documento de Aparecida(29 de junho de 2007), 388;464].
[xiii] Regra, 53, 1: PL 66, 749.
[xiv] Cf. ibid., 53, 7: o. c., 750.
[xv] Ibid., 53, 15: o. c., 751.

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