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29/10/2018

Leitura espiritual


O HOMEM BOM

AS FONTES DA BONDADE

Contudo, seria um engano pueril imaginar que esse quadro de virtudes é um dom inato, como um privilégio que a fortuna reservasse apenas a alguns eleitos. Ninguém nasce bom. O homem “naturalmente bom” de Rousseau é simplesmente um mito, que a vida, a cada passo, se encarrega de desmentir.
Certamente todos nós possuímos tendências temperamentais que nos inclinam mais facilmente para determinadas atitudes positivas: há homens naturalmente calmos, outros que são temperamentalmente mais afáveis e prestativos, outros ainda que sentem uma especial facilidade para transmitir-nos bom humor...
Mas não há ninguém que possa atingir o conjunto das virtudes que constituem a bondade se se deixa levar apenas pelas suas inclinações naturais.
Ao lado de tendências positivas, em todo o homem coexiste um molho de tendências negativas.
Não é em vão que todos trazemos na alma as marcas hereditárias do pecado original, que nos inclinam para o mal.
Já dizia Tertuliano, o escritor africano do século II, que “o cristão não nasce, faz-se”.
A bondade não brota espontaneamente, como uma planta silvestre, mas forja-se na alma como o ferro trabalhado na fornalha.
Santo Agostinho, evocando reminiscências de infância, registrava que o espontâneo, no homem – desde os inícios da vida –, é o egoísmo: um egoísmo que às vezes aparece escancarado e cru, e outras, mascarado de bons sentimentos e de brandura emocional. Já o considerávamos antes, e é oportuno tê-lo em conta de novo para compreendermos melhor de onde é que surge a bondade.
Qual é, enfim, a forja da bondade? Desde já podemos adiantar a resposta:
a bondade é sempre resultante da graça de Deus e da luta, do esforço do homem.
É nestes dois pontos que devem ser procuradas as suas fontes.
Num dos primeiros perfis biográficos de Mons. Josemaría Escrivá, recolhem-se palavras do jornalista italiano Giuseppe Corigliano que, num artigo publicado em Il Giorno de Milão, reflectia sobre a bondade desse homem de Deus, sobre “a sua grande compreensão para com todas as situações humanas, a sua grande capacidade de amar e aquele garbo e simpatia que tornavam agradabilíssimo o seu trato.
Conhecendo-o melhor – concluía –, intuía-se que aquela grande capacidade de tratar tão intimamente todas as pessoas era fruto da sua grande intimidade com Deus.
Mais do que com palavras, ensinava com os factos que quem possui uma fé autêntica é mais humano, conserva maior capacidade para compreender a vida e as coisas belas e justas deste mundo” [1]
Lembrávamos antes que o encontro com um homem realmente bom produz em nós, já de início, um sentimento de surpresa.
Ficamos intrigados, tentando achar resposta para uma série de perguntas que a sua bondade suscita: de onde lhe vem essa paciência e afabilidade, unida a uma firme coerência de ideais?
De onde tira as forças para não se deixar abalar, desanimar ou corromper pelo ambiente que o cerca?
Qual a razão da alegria com que pratica a renúncia e se sacrifica pelos outros com um sorriso?
Que força interior o move?
A explicação desses enigmas sintetiza-se numa só palavra: Deus.
Só Deus é bom, [2] e os homens são bons na medida em que vivem com Deus e de Deus.
Por outras palavras, a bondade é comunicada à alma pela união com Deus através da fé e do amor. Quando um homem crê, e faz da fé princípio de vida, quando vai ganhando uma amorosa intimidade com Deus, quando se abre à graça divina, esse homem se “diviniza”, vai-se tornando semelhante a Deus [3]. E então atrai precisamente por isso, porque – mesmo carregando com inevitáveis imperfeições – é uma “transparência de Deus”.
Conta-se, na vida de São João Maria Vianney, o Cura d'Ars, que certa feita um homem descrente se uniu aos peregrinos que acorriam à cidadezinha de Ars, para ver e ouvir o santo sacerdote.
Movia-o a curiosidade, e estava com a ideia preconcebida de desmascarar o prestígio daquele que se lhe afigurava um embaidor de beatas.
Teve oportunidade de contemplar de perto o santo, e o simples facto de vê-lo, ouvi-lo e cruzar os seus olhos com os do pobre pároco revolveu-lhe profundamente a alma.
Quando lhe perguntaram a sua opinião sobre o “palerma” que fora observar como se fosse uma curiosidade de circo, só soube responder, com a voz embargada: “Vi Deus num homem”.
Este é o primeiro e principal segredo da bondade.
Poderíamos dizer que o homem bom é como um metal, fundido, purificado e modelado na forja de Deus.
A graça divina é o fogo dessa fornalha.
Mas a graça exige correspondência. De nada serviria se faltasse o esforço, o “martelar” sincero do homem por modificar os seus pensamentos, sentimentos e acções, e a luta por reformá-los, com decisão e empenho, de acordo com as exigências do amor de Deus.
Não há bondade sem luta.
Contando sempre, e em primeiro lugar, com o auxílio da graça, só se torna bom aquele que – por assim dizer – começa por ser “mau” consigo próprio, isto é, por combater decididamente, um a um, todos os desvios – hábitos, defeitos – que o egoísmo tende a enraizar no coração.
É preciso insistir neste ponto: não existe bondade se não há uma árdua peleja interior, uma constante mortificação, um “não” enérgico ao egoísmo.
Como lapidarmente diz Caminho, “onde não há mortificação, não há virtude”, não há bondade [4].
E é evidente, por outro lado, que esse combate não se restringe ao interior do homem.
Não são só as paixões egoístas que hostilizam os ideais da bondade, pois é preciso enfrentar também a pressão do ambiente, da mentalidade e dos costumes sociais que – como uma enxurrada envolvente – se opõem a cada passo aos ideais da bondade e às virtudes cristãs.
Por isso, o homem bom tem necessariamente que ser um forte, dotado de firme coragem para se manter fiel aos seus valores, mesmo que estes choquem com o ambiente e suscitem incompreensão.
Somente como resultado dessa luta fiel é que surge, do pobre barro humano, o que São Paulo chama a criatura nova [5], que se vai configurando conforme a imagem de quem o criou [6].
Quem se esforça por ser bom, acaba realizando em si mesmo – modelado pela graça de Deus – a mais pura definição do homem: imagem e semelhança de Deus [7].

E, por isso mesmo, acaba reflectindo na sua vida, como num espelho, a mais simples e bela definição de Deus:

Deus é amor [8].


Francisco Faus [i]



[1] (Salvador Bernal, Perfil do Fundador do Opus Dei, Quadrante, São Paulo, pág. 194).

[2] (Mc 10, 18)
[3] (cfr. 1 Jo 3, 2)
[4] (Josemaría Escrivá, Caminho, n. 180)
[5] (Ef 4, 24)
[6] (Col 3, 10)
[7] (Gen 1, 26)
[8] (1 Jo 4, 8)



[i] Francisco Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, entre outros, os títulos O valor das dificuldades, O homem bom, Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens, Maria, a mãe de Jesus, A voz da consciência e A paz na família.


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