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22/10/2018

Leitura espiritual

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LEGENDA MAIOR 

Vida de São Francisco de Assis

CAPITULO 5

Austeridade de vida e como as criaturas lhe proporcionavam consolo

1. Francisco, o homem de Deus, via que por seu exemplo muitíssimos se sentiam encorajados a levar a cruz de Cristo com grande fervor e com isso também ele se sentia animado, como bom guia do exército de Cristo, a conquistar vitoriosamente as culminâncias da virtude. A fim de realizar aquelas palavras do Apóstolo: “Os que são de Cristo crucificaram sua carne com seus vícios e concupiscências” (GI 5,24), e levar no próprio corpo a armadura da cruz, refreava os estímulos dos sentidos com uma disciplina tão rigorosa que a muito custo admitia o necessário para seu sustento.
Dizia que é difícil satisfazer as exigências do corpo sem se abrir mão das baixas tendências dos sentidos. Por essa razão, a contragosto e raramente, aceitava alimentação cozida e. neste caso, ou lhe acrescentava cinzas ou a mergulhava na água para torná-la insípida. E que diremos do vinho se a própria água ele a bebia tão escassamente, ainda que abrasado de sede?
Facilmente encontrava meios de tornar mais penosa a sua abstinência em que todos os dias fazia progresso; pois, embora houvesse chegado ao cume da perfeição, procurava, contudo como se fosse um principiante, castigar com novas mortificações as revoltas da carne. Mas quando saía pelo mundo, conformava-se, no tocante à comida, com aqueles que o hospedavam em suas casas, seguindo nisso o conselho do Evangelho; mas logo que voltava ao retiro, entregava-se de novo aos costumeiros rigores de sua abstinência.
Desse modo agia com austeridade consigo mesmo, mas suave e caridosamente com o próximo, e conformando-se em tudo ao Evangelho de Cristo, não só jejuando, mas também comendo, a todos edificava com seu exemplo. Era a terra nua que quase sempre servia de leito a seu pobre corpo fatigado.
Muitas vezes dormia sentado, usando uma pedra ou um tronco como travesseiro, enquanto o único manto andrajoso lhe cobria o corpo.
E assim servia ao Senhor no frio e na nudez.

2. Alguém lhe perguntou certa vez como podia proteger-se contra o rigor do inverno com agasalhos tão pobres e ele respondeu cheio de estranho fervor de espírito: “Se tivéssemos internamente esse fogo que é o desejo da pátria celeste, não
teríamos dificuldade em suportar o frio externo”.
Tinha horror de roupas caras e preferia as grosseiras, acrescentando que João Baptista foi louvado por Cristo por causa das suas roupas rudes.
Se a roupa que recebesse parecia muito macia, costumava coser-lhe por dentro pedaços de cordas grosseiras porque, dizia ele, é nos palácios dos ricos que devemos procurar os que usam roupas finas e não nas choupanas dos pobres.
Sabia por experiência própria que os demónios ficavam aterrorizados ao verem pessoas vestidas com roupas rudes, ao passo que vestes ricas ou macias lhes davam coragem para atacarem mais afoitamente.
Certa noite, usou um travesseiro de penas, contrariamente aos seus costumes, porque estava com dor de cabeça e sofria dos olhos; mas um demónio entrou no travesseiro e não lhe deu descanso até de manhã, impedindo-o de se entregar à oração.
Finalmente ele chamou um irmão e disse-lhe que levasse embora aquele travesseiro. Ao deixar o quarto com o travesseiro, o irmão ficou sem forças e com os membros paralisados. Então Francisco, que viu em espírito o que estava acontecendo, com uma palavra restituiu ao irmão o vigor do corpo e da alma.

3. Francisco vigiava constantemente sobre si mesmo, tomando todo cuidado em conservar puros a sua alma e o seu corpo; no início da sua conversão, em pleno inverno, às vezes, mergulhava num fosso cheio de água gelada para reprimir os desordenados movimentos da concupiscência e preservar ilesa dos ardores do torpe deleite a cândida veste de seu pudor virginal. Um homem espiritual, afirmava ele, suporta muito mais facilmente o frio que congela o corpo do que o ardor do mais leve desejo carnal que domine seu espírito.

4. Uma noite, enquanto orava num cubículo do eremitério de Sarteano, o antigo inimigo chamou-o por três vezes:
“Francisco, Francisco, Francisco!”
E tendo perguntado o que queria, o demónio acrescentou maliciosamente: “Não existe pecador algum no mundo com quem Deus não use de misericórdia, se ele se converter. Mas aquele que se mata com as suas penitências, jamais encontrará misericórdia”.
O homem de Deus logo percebeu, por revelação divina, o engano do inimigo que tentava chamá-lo de volta à tibieza, como logo a seguir ficou demonstrado pelo que aconteceu.
De facto Francisco sentiu arder dentro de si uma grave tentação sensual, alimentada pelo sopro daquele que tem um “hálito ardente como brasas” (Jo 41,12). Mal a notou e já se despojou das suas vestes e começou a disciplinar-se com todo rigor.
“Eia, irmão burro, assim te convém permanecer, assim te convém estar e sofrer os açoites que bem mereces.
O hábito religioso serve para a decência e leva em si o carácter da santidade; por essa razão não deve apropriar-se dele um homem luxurioso.
Pois bem, se pretendes evitar o castigo, anda, pois, para onde te apraza”.
Movido então de um grande fervor de espírito, saiu da cela e foi a um campo que ficava bem próximo e aí, nu como estava, revirou-se num grande monte de neve para sufocar assim os ardores da concupiscência. Em seguida, formou sete bolas ou figuras de neve de diversos tamanhos, e diante delas falava a si mesmo:
“Tens aqui, neste bloco maior, a tua mulher; esses quatro são dois filhos e duas filhas; os outros dois são um servo e uma serva, que precisas para os trabalhos da casa. Apressa-te, pois, a vesti-los porque estão morrendo de frio. Mas se as muitas preocupações que te dão te aborrecem, procura desprender-te deles e consagra-te fielmente a teu único Deus e Senhor”.
O tentador, vencido, bateu em retirada imediatamente e o santo voltou à sua cela, vitorioso.
O frio externo que ele se impusera como castigo tinha tão bem apagado o fogo interior da concupiscência que se livrou dele para sempre. Um dos irmãos, que estava em oração naquela hora, testemunhou todo o espectáculo graças a um esplêndido luar que havia; o homem de Deus, informado desse facto, contou-lhe o drama da sua tentação, mas proibiu-lhe que falasse dele a quem quer que fosse, enquanto vivesse.
5. Ensinava que não basta só mortificar as paixões da carne e refrear os seus estímulos, mas também guardar com suma vigilância os outros sentidos, através dos quais a morte entra na alma. Recomendava muito evitar-se com todo empenho a familiaridade e as conversas com as mulheres, porque para muitos elas são ocasião de ruína.
Pois, afirmava ele, “é o que perde os mais fracos e enfraquece os mais fortes; conseguir evitar o contágio das mulheres para quem com elas se entretém é tão difícil quanto ‘caminhar no fogo e não queimar os pés’, como diz a Escritura (cf. Pr 6,27). A não ser que se trate de um indivíduo de virtude muito provada”. Ele mesmo desviava os olhos para não perder tempo com vaidades, de tal forma que não conhecia mulher alguma pelas feições, como ele próprio assegurou certa vez a um companheiro.
Julgava perigoso permitir que a fantasia retivesse a imagem delas capaz de fazer renascer o fogo numa carne já dominada ou de manchar a alvura de uma alma inocente. Chegava mesmo a declarar que falar a uma mulher era frivolidade, salvo confissão ou breve aconselhamento, de acordo com as necessidades de sua alma e as exigências das boas maneiras:
“De que assuntos poderia um religioso tratar com uma mulher a não ser o caso de ela lhe pedir devotamente a penitência ou algum conselho para melhorar sua vida?
Quem se sente muito seguro de si, não toma o devido cuidado com o inimigo, e o demónio quando pode pegar um homem por um fio de cabelo transforma este numa grossa amarra com que o arrasta sem dificuldade ao abismo”.

6. Quanto à preguiça, sentina de todos os maus pensamentos, ensinava que se há de fugir dela com o maior cuidado e mostrava por seu exemplo que é preciso dominar a carne preguiçosa e rebelde mediante contínuas disciplinas e frutuosas fadigas. Por isso chamava o corpo de “irmão burro”, indicando assim que é necessário carregá-lo de trabalho e de fardos, puni-lo com chicotadas e ser sustentado com alimento ordinário e escasso. Por isso quando via algum ocioso e vagabundo, desses que pretendem viver às expensas do suor dos outros, chamava-o de “Irmão Mosca”, porque este, nada fazendo de bom e usando mal dos benefícios recebidos, chega a se converter em objecto de abominação para todos.
Por isso, em certa ocasião assim se expressava: “Quero que meus irmãos trabalhem e se ocupem em algum trabalho honesto, para que não se entreguem à ociosidade e venham a cair por palavra ou pensamento em algo que seja ilícito ou pecaminoso”.
Queria que seus irmãos observassem o silêncio indicado no Evangelho, quer dizer, que em todas as circunstâncias evitassem com todo cuidado qualquer palavra ociosa, de que no dia do juízo deverão prestar contas (cf. Mt 12,36).
Levado por esse sentimento, toda vez que encontrava um religioso viciado pelo apetite desenfreado de falar, repreendia-o duramente, dizendo que o calar com modéstia protege a pureza do coração e não é virtude de menor importância, se é verdade, como diz a Escritura, que “a morte e a vida se encontram em poder da língua” (Pr 18,21), não tanto por razão do gosto quanto pela excessiva loquacidade.

São Boaventura

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por AMA)

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