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28/08/2018

Tratado das virtudes


Questão 67: Da duração das virtudes depois desta vida.

Art. 5 — Se algo da fé ou da esperança perdura na glória.

Parece que algo da fé ou da esperança perdura na glória.

1. — Pois, removido o próprio, fica o comum; assim, como se disse, removido o racional, permanece o vivo; e removido este, permanece o ente. Ora, a fé tem algo de comum com a beatitude, o conhecimento; e algo de próprio — o enigma, pois, a fé é um conhecimento enigmático. Logo, removido o seu enigma, resta-lhe ainda o conhecimento.

2. Demais. — A fé é um lume espiritual da alma, conforme a Escritura (Ef 1, 18): Os olhos iluminados do vosso coração para o conhecimento de Deus; ora aqui se trata do lume imperfeito, por comparação com a luz da glória, de que fala o salmista (Sl 35, 19): No teu lume veremos o lume. Ora, o lume imperfeito perdura, com a superveniência do perfeito; assim, a candeia não se extingue quando o sol nasce. Logo, parece que também o lume da fé pode coexistir com o da glória.

3. Demais. — A substância de um hábito não desaparece com a eliminação da matéria; assim, podemos conservar o hábito da liberalidade, mesmo depois que perdemos o dinheiro, se bem não a possamos exercer em acto. Ora, o objecto da fé é a Verdade primária não vista. Logo, removido aquilo pelo que vemos essa Verdade, ainda pode permanecer o hábito da fé.

Mas, em contrário, a fé é um hábito simples. Ora, o simples ou há-de desaparecer totalmente ou totalmente subsistir. Logo, como a fé não subsiste totalmente, mas desaparecerá, segundo se disse [2], conclui-se que desaparecerá totalmente.


 
SOLUÇÃO. — Alguns disseram que a esperança desaparece totalmente; mas, a fé desaparece em parte — quanto ao enigma; e subsiste em parte — quanto à substância do conhecimento. Ora, se esta opinião exprime que a fé subsiste una, não numérica, mas genericamente, é muito verdadeira. Pois, a fé convém com a visão da pátria num mesmo género, que é o conhecimento; mas, a esperança não convém genericamente com a felicidade, pois ela está para o gozo da beatitude como o movimento para o repouso final.

Se ela porém, significa que o conhecimento da fé subsistirá no céu numericamente o mesmo, isto é absolutamente impossível. Pois, removida a diferença de uma espécie, a substância genérica não permanece numericamente a mesma. Assim, removida a diferença constitutiva da brancura, não permanece a substância da cor numericamente a mesma, de modo que uma mesma cor, numericamente, fosse, ora, a brancura e, ora, a negrura. Porquanto, o género não está para a diferença como a matéria, para a forma, de modo que subsiste a substância genérica, numericamente a mesma, depois de removida a diferença; assim como, removida a forma, a substância da matéria permanece numericamente a mesma. Ora, o género e a diferença não são partes da espécie; mas assim como a espécie significa um todo material, i. é, o composto da matéria e da forma, assim também a diferença significa um todo; e o mesmo se dá com o género; mas, ao passo que este denomina o todo, enquanto sendo como que a matéria, a diferença o denomina enquanto sendo como que a forma; e por fim a espécie, enquanto uma e outra. Assim, no homem, a natureza sensitiva é como a matéria da intelectiva, pois se chama animal ao que tem natureza sensitiva; racional ao que tem a intelectiva e homem, ao que as tem a ambas. E, assim, o mesmo todo é expresso por esses três elementos, mas, não, do mesmo modo. Donde consta com clareza, que, a diferença, não designando senão o género, depois de removida a diferença à substância genérica não pode permanecer a mesma; assim, a animalidade não permanece a mesma se for diferente a alma constitutiva do animal. Por onde, não é possível que o conhecimento, numericamente o mesmo, que antes fora enigmático, venha a ser, depois, a visão plena. Donde se conclui com clareza que nada do que há na fé, numérica ou especificamente o mesmo, subsiste na pátria celeste, senão só o que for genericamente o mesmo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Removido o racional, já um vivente não é numericamente o mesmo, mas só genericamente, como do sobredito resulta.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A imperfeição da luz da candeia não se opõe à perfeição da luz do sol, porque uma e outra não recai sobre o mesmo sujeito. Ao passo que a imperfeição da fé e a perfeição da glória entre si se opõem, e recaem sobre o mesmo sujeito; e, portanto não podem coexistir, assim como não o pode a claridade do ar e a sua obscuridade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Quem perde o dinheiro não perde a possibilidade de tornar a ganhá-lo, e portanto pode subsistir convenientemente o hábito da liberalidade. Mas no estado da glória, não só desaparece actualmente o objecto da fé, que é o invisível, mas também na sua possibilidade, por causa da perene beatitude. Seria pois inútil à subsistência de tal hábito.

(Revisão da versão portuguesa por AMA)



[1] (II Sent., dist. XXXI. q. 2, a. 1, qª3).
[2] Q. 67, a. 3.

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