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16/03/2018

Leitura espiritual

RESUMOS DA FÉ CRISTÃ

TEMA 6 A Criação



1. O acto criador

1.1. «A criação é obra comum da Santíssima Trindade» [i]

«Por quem tudo foi feito»

A literatura sapiencial do Antigo Testamento apresenta o mundo como fruto da sabedoria de Deus [ii].
«O mundo não é fruto duma qualquer necessidade, dum destino cego ou do acaso» [iii], mas tem uma inteligibilidade que a razão humana, participando na luz do Entendimento divino, pode captar, não sem esforço e num espírito de humildade e de respeito perante o Criador e a Sua obra [iv].

Este desenvolvimento chega à sua expressão plena no Novo Testamento; ao identificar o Filho, Jesus Cristo, com o Logos [v], afirma que a sabedoria de Deus é uma Pessoa, o Verbo encarnado, por quem tudo foi feito [vi].

São Paulo formula esta relação do criado com Cristo, esclarecendo que todas as coisas foram criadas n’Ele, por Ele e para Ele [vii].
Há, pois, uma razão criadora na origem do cosmos [viii], [ix].

O cristianismo tem desde o início uma grande confiança na capacidade da razão humana para conhecer e uma enorme segurança em que jamais a razão – científica, filosófica, etc. – poderá chegar a conclusões contrárias à fé, pois ambas provêm de uma mesma origem.

Não é infrequente encontrarem-se pessoas que colocam falsas disjuntivas, como por exemplo, entre criação e evolução.

Na realidade, uma adequada epistemologia não só distingue os âmbitos próprios das ciências naturais e da fé, mas, além disso, reconhece na filosofia um elemento necessário de mediação, pois as ciências, com o seu método e objecto próprios, não cobrem a totalidade do âmbito da razão humana e a fé, que se refere ao próprio mundo de que falam as ciências; necessita de categorias filosóficas [x] para se formular e entrar em diálogo com a racionalidade humana.

É, pois, lógico que desde o início, a Igreja procurasse o diálogo com a razão, uma razão consciente do seu carácter criado, pois não se deu a si própria a existência, nem dispõe, completamente, do seu futuro; uma razão aberta ao que a transcende, ou seja, à Razão originária.
 Paradoxalmente, uma razão fechada sobre si, que crê poder encontrar dentro de si a resposta às suas questões mais profundas, acaba por afirmar o sem-sentido da existência e por não reconhecer a inteligibilidade do real (niilismo, irracionalismo, etc.).

«Senhor que dá a vida»

«Acreditamos que ele [o mundo] procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participantes do Seu Ser, da Sua sabedoria e da Sua bondade: “porque Vós criastes todas as coisas e, pela vossa vontade, elas receberam a existência e foram criadas” [xi] [...].

“O Senhor é bom para com todos e a sua misericórdia estende-se a todas as criaturas” [xii]» [xiii].

Como consequência, «saída da bondade divina, a criação partilha dessa bondade (“E Deus viu que isto era bom [...] muito bom”: [xiv].

Porque a criação é querida por Deus como um dom orientado para o homem, como herança que lhe é destinada e confiada» [xv].

Este carácter de bondade e de dom livre permite descobrir na criação a actuação do Espírito - que «pairava sobre as águas» [xvi] - a Pessoa Dom na Trindade, Amor subsistente entre o Pai e o Filho.

A Igreja confessa a sua fé na obra criadora do Espírito Santo, dador de vida e fonte de todo o bem [xvii].

A afirmação cristã da liberdade divina criadora permite superar as estreitezas de outras visões que, pondo uma necessidade em Deus, acabam por defender o fatalismo ou determinismo.
Não há nada, nem “dentro” nem “fora” de Deus, que o obrigue a criar.
Qual é, então, o fim que O move?
Que pretendeu ao criar-nos?

1.2. «O mundo foi criado para a glória de Deus» [xviii]

Deus criou tudo «não para aumentar a Sua glória, mas para a manifestar e comunicar» [xix].

O Concílio Vaticano I [xx] afirma que «na sua bondade e pela sua força omnipotente, não para aumentar a sua felicidade, nem para adquirir a sua perfeição, mas para a manifestar pelos bens que concede às suas criaturas, Deus, no Seu libérrimo desígnio, criou do nada, simultaneamente, e desde o princípio do tempo uma e outra criatura – a espiritual e a corporal» [xxi].

«A glória de Deus está em que se realize esta manifestação e esta comunicação da sua bondade, em ordem às quais o mundo foi criado. Fazer de nós “filhos adoptivos por Jesus Cristo.

Assim aprouve à sua vontade, para que fosse enaltecida a glória da sua graça” [xxii]:
“Porque a glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus” [xxiii]» [xxiv].

Longe de uma dialéctica de princípios contrapostos – como ocorre no dualismo de traço maniqueu e, também, no idealismo monista hegeliano – afirmar a glória de Deus como fim da criação não implica uma negação do homem, mas um pressuposto indispensável para a sua realização.
O optimismo cristão mergulha as suas raízes na exaltação conjunta de Deus e do homem: «o homem é grande só se Deus é grande» [xxv].

Trata-se de um optimismo e de uma lógica que afirmam a absoluta prioridade do bem, mas que, nem por isso, são cegos perante a presença do mal no mundo e na história.

1.3. Conservação e providência. O mal

A criação não se reduz aos começos.
«Depois da criação, Deus não abandona a criatura a si mesma. Não só lhe dá o ser e o existir, mas a cada instante a mantém no ser, lhe dá o agir e a conduz ao seu termo» [xxvi].

A Sagrada Escritura compara esta actuação de Deus na história com a acção criadora [xxvii].

A literatura sapiencial explicita a acção de Deus que mantém na existência as suas criaturas.
«E como poderia subsistir algo se não o quisésseis ou conservar-se aquilo que Vós não tivésseis chamado?» [xxviii].

São Paulo vai mais longe e atribui esta acção conservadora a Cristo: «Ele é antes de todas as coisas e todas as coisas subsistem por Ele» [xxix].

O Deus cristão não é um relojoeiro ou um arquitecto que, após ter realizado a sua obra, se desinteressasse dela.
Estas imagens são próprias duma concepção deísta, segundo a qual Deus não se imiscui nos assuntos deste mundo.
Mas isto supõe uma distorção do autêntico Deus criador, pois separam drasticamente a criação da conservação e do governo divino do mundo [xxx].

A noção de conservação “faz de ponte” entre a acção criadora e o governo divino do mundo (providência).
Deus não só cria o mundo e o mantém na existência, mas além disso «conduz as suas criaturas para a perfeição última, à qual Ele as chamou» [xxxi].

A Sagrada Escritura apresenta a soberania absoluta de Deus e testemunha constantemente o seu cuidado paterno, tanto nas coisas mais pequenas como nos grandes acontecimentos da história [xxxii].
Neste contexto, Jesus revela-Se como a providência “encarnada” de Deus, que atende, como Bom Pastor, as necessidades materiais e espirituais dos homens [xxxiii] e ensina-nos a abandonarmo-nos ao seu cuidado [xxxiv].

Se Deus cria, mantém e dirige tudo com bondade, donde provém o mal?
«A esta questão, tão premente quanto inevitável, tão dolorosa como misteriosa, não é possível dar uma resposta rápida e satisfatória. É o conjunto da fé cristã que constitui a resposta a esta questão [...]. Não há nenhum pormenor da mensagem cristã que não seja, em parte, resposta ao problema do mal» [xxxv].

A criação não ficou acabada no princípio, mas Deus fê-la in statu viae, ou seja, dirigida a uma perfeição última ainda por alcançar.
Para a realização dos Seus desígnios, Deus serve-se do concurso das criaturas e concede aos homens uma participação na sua providência, respeitando a sua liberdade mesmo que façam o mal [xxxvi].

O realmente surpreendente é que Deus «na sua omnipotente providência pode tirar um bem das consequências de um mal» [xxxvii].

É misteriosa, mas é uma enorme verdade que «todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus» [xxxviii], [xxxix].

A experiência do mal parece manifestar uma tensão entre a omnipotência e a bondade divinas na sua actuação na história. Aquela recebe resposta, certamente misteriosa, no evento da Cruz de Cristo, que revela o “modo de ser” de Deus e é, portanto, fonte de sabedoria para o homem (sapientia crucis).

(cont)

Santiago Sanz

Notas:




[i] Catecismo, 292
[ii] cf. Sb 9, 9
[iii] Catecismo, 295
[iv] cf. Jb 42, 3; cf. Catecismo, 299
[v] cf. Jo 1, 1 ss
[vi] Jo 1, 3
[vii] Col 1, 16-17
[viii] cf. Catecismo, 284
[ix] Este ponto aparece com frequência nos ensinamentos de Bento XVI, por exemplo, Homilia em Regensburg, 12-IX-2006; Discurso em Verona, 19-X-2006; Encontro com o clero da diocese de Roma, 22-II-2007; etc
[x] Tanto o racionalismo cientificista como o fideísmo acientífico necessitam de uma correcção da filosofia. Além disso, há-de evitar-se também a falsa apologética de quem vê forçadas concordâncias, procurando nos dados que a ciência traz uma verificação empírica ou uma demonstração das verdades de fé, quando, na realidade, como dissemos, se trata de dados que pertencem a métodos e disciplinas distintas.
[xi] Ap 4, 11
[xii] Sl 145, 9
[xiii] Catecismo, 295
[xiv] Gn 1, 4.10.12.18.21.31
[xv] Catecismo, 299
[xvi] Gn 1, 2
[xvii] cf. João Paulo II, Carta Encíclica Dominum et Vivificantem, 18-V-1986, 10.
[xviii] Concílio Vaticano I
[xix] São Boaventura, Sent., 2, 1, 2, 2, 1
[xx] 1870)
[xxi] DS 3002; cf. Catecismo, 293
[xxii] Ef 1, 5-6
[xxiii] Santo Ireneu de Lião, Adversus haereses, 4, 20, 7
[xxiv] Catecismo, 294
[xxv] Bento XVI, Homilia, 15-VIII-2005.
[xxvi] Catecismo, 301
[xxvii] cf. Is 44, 24; 45, 8; 51, 13
[xxviii] Sb 11, 25
[xxix] Cl 1, 17
[xxx] O deísmo implica um erro na noção metafísica de criação, pois esta, enquanto doação de ser, leva consigo uma dependência ontológica por parte da criatura, que não é separável da sua continuação no tempo. Ambas constituem um mesmo acto, mesmo quando possamos distingui-las conceptualmente: «a conservação das coisas por Deus não se dá por alguma acção nova, mas pela continuação da acção que dá o ser, que é certamente uma acção sem movimento e sem tempo» (São Tomás, Summa Theologiae, I, q. 104, a. 1, ad 3).
[xxxi] Compêndio, 55
[xxxii] cf. Catecismo, 303
[xxxiii] Jo 10, 11.14-15; Mt 14, 13-14, etc.
[xxxiv] Mt 6, 31-33
[xxxv] Catecismo, 309
[xxxvi] cf. Catecismo, 302, 307, 311
[xxxvii] Catecismo, 312
[xxxviii] Rm 8, 28
[xxxix] Em continuidade com a experiência de tantos santos da história da Igreja, esta expressão paulina encontrava-se frequentemente nos lábios de São Josemaria, que vivia e animava assim a viver numa gozosa aceitação da vontade divina (cf. São Josemaria, Sulco, 127; Via Sacra, IX, 4; Amigos de Deus, 119). Por outro lado, o último livro de João Paulo II, Memória e Identidade, constitui uma profunda reflexão sobre a actuação da providência divina na história dos homens, segundo aquela outra asserção de São Paulo: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21).

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