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08/01/2018

Leitura espiritual

Jesus Cristo o Santo de Deus

CAPÍTULO II

JESUS CRISTO, O HOMEM NOVO

1.   O dogma de Cristo «Verdadeiro homem» no actual momento cultural

Após o contacto com a cultura da época e por causa de certas heresias provenientes dela, todo o interesse pelo Cristo «homem» deslocou-se do problema da novidade, ou santidade, de tal humanidade, para o da sua verdade ou plenitude ontológica.
Tudo foi concentrado na ideia da assunção de uma humanidade por parte do Verbo.
O facto fundamental é que Cristo assume, ou torna-se, o que nós somos, além de não pôr o homem em questão, ainda o toma tal como é.
Somente assim se vê a possibilidade, para o homem, de ser salvo na sua totalidade.
«O Homem não teria sido salvo na sua totalidade se Cristo não tivesse assumido o homem na sua totalidade» [i].
Cristo devia ter um corpo para que o nosso corpo fosse resgatado, deveria ter uma alma para que a nossa alma fosse resgatada e deveria ter uma vontade livre para que a nossa liberdade também fosse resgatada.

A Igreja, então, soube extrair da Revelação o antídoto que era necessário para a doença do momento. O problema é que há já muito tempo que se alterou completamente a situação cultural e o tipo de ameaça à fé, e ainda não foi alterada adequadamente a resposta conveniente.
De facto, ao observarmos atentamente notamos que toda a problemática hodierna acerca da humanidade de Cristo (pelo menos quando se trata de definir a própria pessoa de Cristo, isto é, nas discussões cristológicas) continua a girar à volta de um problema antigo e que já não existe.
Hoje já ninguém nega que Jesus tenha sido um homem, como diziam os docetistas. Pelo contrário, assiste-se a um fenómeno estranho e inquietante: a «verdadeira» humanidade de Cristo é afirmada em tácita alternativa à Sua divindade como uma espécie de contrapeso. É como uma corrida generalizada para ver quem é mais audaz em afirmar a «plena» humanidade de Jesus de Nazaré.
O facto de ser plenamente e integralmente homem – lê-se num autor contemporâneo – comportava em Jesus, além do sofrimento, da angústia, da tentação e da dúvida, também «a possibilidade de cometer erros» [ii].
Esta é uma afirmação absolutamente nova na tradição cristã.

Assim, o dogma de Jesus «verdadeiro homem» tornou-se ou numa verdade aceite que não incomoda e não inquieta ninguém, ou, pior ainda, uma verdade perigosa que serve para legitimar, em vez de contestar, o pensamento mundano. Afirmar a plena humanidade de Cristo é hoje como que arrombar uma porta escancarada.

Os sinais desta tendência notam-se tanto aos níveis mais elevados da teologia como nos mais populares da mentalidade comum e dos mass media.
Para alguns, na expressão «verdadeiro homem», tudo o que o adjectivo «verdadeiro» significa é o grau mais elevado de humanidade que existe em Cristo, a excelência ou a exemplaridade da Sua humanidade, à qual os crentes chamam a Sua «divindade».
Partindo de um conceito humano de homem e empolando a Sua «verdadeira» humanidade, chega-se assim a tornar supérflua ou a negar a divindade de Cristo. O conceito moderno e mundano de homem requer de facto uma total e absoluta autonomia, para o que Deus e o homem são incompatíveis e colidem um com o outro; «onde nasce Deus morre o homem».

Estas ideias são de autores que tentam delinear um «Jesus para os ateus» [iii]
Mas há também algumas tentativas de cristologias modernas que conduzem a uma tendência análoga, ainda que de outra forma.
Alguém, ao afirmar a humanidade de Cristo, foi mais além que o próprio Concílio de Calcedónia, atribuindo a Cristo não só uma carne, uma alma e uma vontade humanas, mas também uma personalidade humana, com a consequente e inevitável necessidade, ou afirmar que não é Deus ou de afirmar que é «duas pessoas», não «uma só pessoa».
Fala-se neste sentido de uma «transcendência humana» de Cristo, segundo a qual Cristo transcenderia a história, não como Deus, mas como homem.
Fala-se também de um «humanismo» cristológico integral. [iv]
A insistência sobre a humanidade, como se vê, dissipa-se.

A tendência verifica-se ainda a outros níveis de mentalidade por aí difundida. O filme «A última tentação de Cristo», extraído do romance de Nikos Kasantkis (um ortodoxo excomungado pela sua Igreja por causa deste romance, mostra um Jesus que procura desesperadamente, em toda Sua vida, esquivar-se às exigências da vontade do Pai e que depois, na cruz, é como que hipnotizado por imagens de pecado. Trata-se de um exemplo extremo e grosseiro da tal mentalidade, mas que é bastante elucidativo.
Em defesa do filme houve também alguns teólogos que opinaram:
«Se Jesus era verdadeiro homem, porque nos havemos de nos escandalizar com tudo isto? O homem real é assim mesmo».
Houve também quem tivesse comentado o filme positivamente dizendo que assim sentia mais próximo de si as suas próprias experiências aquele Cristo que tem as suas mesmas dúvidas, as suas mesmas incertezas, as suas mesmas rebeliões.
Repete-se, de certo modo, aquilo que acontecia no tempo do paganismo: não estando dispostos a repudiar os seus vícios, como o adultério e o furto, que fizeram os pagãos? – perguntava Santo Agostinho -. Atribuíram nos seus mitos estes vícios também aos seus deuses para assim se sentirem desculpados ao cometê-los. [v]
Como se pode censurar o homem por coisas que nem a divindade consegue evitar?

A causa de tudo isto é que a afirmação da plena divindade de Cristo cai hoje num terreno cultural que é exactamente o oposto do antigo, quando se deu forma ao dogma de Cristo «verdadeiro homem».
Os Padres viviam numa cultura marcada pelo espiritualismo e pelo desprezo (pelo menos a nível teórico) da matéria. Nós vivemos numa cultura marcada pelo materialismo e pela exaltação da matéria e do corpo.
Qual é o desafio e contestação que a cultura moderna lança à Fé, acerca do homem?
Não é certamente o preconceito anticósmico e maniqueísta do homem «desligado do mundo», mas sim o princípio da radical mundanidade do homem.
O discurso até nem versa muito sobre a natureza do homem, ou sobre o homem como entidade, mas sim e sobretudo sobre o homem como projecto.
Duas famosas declarações escritas neste novo contexto revelam com toda a crueza este ideal do homem «terrestre» e do homem «dono de si mesmo»:
«Se Deus existisse o homem não seria nada.
Deus não existe…
Não existe o Céu.
Não existe o Inferno.
Nada mais existe além da terra». [vi]
«Nada existe no Céu, nem o Bem nem o Mal, nem alguém que me possa dar ordens… Sou um homem, e todos os homens devem procurar o seu próprio caminho» [vii].

Existe nos nossos dias uma espécie de docetismo de sinal contrário. Não é já a matéria que é «projecção», sombra ou imagem ilusória do mundo divino e espiritual, como acontecia na visão platónica, mas, ao contrário, é o mundo divino que é a projecção e imagem do homem histórico. É Deus que é visto como imagem do homem, não o homem como imagem de Deus. É a ideologia do mundanismo radical que, e ainda bem, não é a única existente e seguida nos nossos dias, mas é decerto perigosa e está muito difundida.
Se Tertuliano dizia:
«Ocupemo-nos com a Humanidade do Salvador porque a Sua divindade não nos oferece dúvidas», hoje nós deveremos dizer, no novo contexto cultural:
«Voltemos e depressa a prestara tenção à divindade de Cristo já que a Sua humanidade está mais que segura. Descubramos aquilo que Cristo tem de diferente de nós porque o Ele tem de comum connosco é assunto pacífico e seguro. Descubramos, ao lado de Cristo homem «verdeiro», o Cristo homem «novo!».

Que fazer pelo dogma cristológico nesta situação nova que se criou?
A história do pensamento humano e da própria revelação bíblica está cheia de exemplos e de afirmações feitas para responder aos problemas específicos de cada momento, afirmações essas que depois são retomadas e adaptadas para responder às novas e diversas instâncias, ou para fazer frente às novas e diversas heresias. Poderemos facilmente demonstrar como isso sucede também no tocante ao dogma da unidade de Cristo.
A fórmula que fala de Cristo «único e idêntico» (unus et idem», elaborada por Stº Ireneu contra os gnósticos [viii] foi imediatamente seguida por S. Cirilo de Alexandria e pelo Concílio de Calcedónia, num sentido bem diferente, no qual o único e idêntico sujeito era a pessoa preexistente do Verbo que Se faz carne.
O dogma é uma «estrutura aberta» que, por isso, se pode sempre aplicar a novos contextos mantendo a sua identidade fundamental e permanecendo assim perenemente vivo e operante. É preciso somente permitir-lhe que possa agir, centrando-o bem nessa nova situação.
De facto, o dogma não se palica mecanicamente e do mesmo modo em todas as situações que se vão manifestando ao longo dos séculos. Para isso é necessário por vezes coloca-lo em contacto com a sua base que é a Sagrada Escritura.

O dogma tem um valor exemplar; convida-nos a fazer hoje aquilo que os Padres fizeram na sua época. Eles recorreram aos dados bíblicos para extrair a parte necessária para responder às necessidades do momento e defender as matérias da fé que naquele tempo eram objecto de discussão, deixando de lado tudo aquilo que era consensual. Tendo que defender o facto de que Jesus era homem, para eles bastava, por exemplo, tomar nota quase somente da Encarnação, que é o momento em que o Verbo Se fez homem. Se, a dado momento, o facto mais importante não é afirmar que «Jesus é homem», mas clarificar «que tipo de homem é Jesus», é evidente que então não basta somente tomar nota da encarnação, mas será preciso também recordar o mistério pascal e tornar nota não só do nascimento de Cristo, mas também da Sua vida e da Sua morte.

Com esta ideia, voltamos sempre a questionar o Novo Testamento acerca da humanidade do Salvador. Veremos que esse facto não leva a menosprezar a importância do dogma da «perfeita» humanidade de Cristo definido em Calcedónia, mas a descobrir nele novas riquezas e implicações.

(cont)

rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.





[i] Orígenes, Diálogo com Heráclites, 7 (SCh 67, p. 71
[ii] H. Küng, Ser cristão, Milão 1976, 9. 509
[iii] Cfr. M. Machovec, Jesus para os ateus, Assis, 1973
[iv] Cfr. Schoonenberg, Um Deus de Homens, Brescia 1971, p. 102ss
[v] Cfr. Santo Agostinho, Confissões, I 16,25
[vi] J. P. Sartre, «O Diabo e o Bom Deus», in Teatro, Milão 1950
[vii] J. P. Sartre, As Moscas, Paris 1943, pp. 134sss
[viii] Stº Ireneu, Ad. Haer., III, 16,8-9

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