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30/01/2018

Leitura espiritual

CAPÍTULO V
  
O SUBLIME CONHECIMENTO DE CRISTO


3.   «A fé termina nas coisas»

Revitalizar o dogma que fala de Jesus como “uma pessoa” significa passar da consideração da essência da pessoa para a sua existência, isto é, aperceber-se que Jesus Ressuscitado é uma pessoa viva que está à minha frente, que me chama pelo nome, do mesmo modo que chamou Saulo.
É preciso que, também no âmbito da fé, levemos a efeito o programa, tão querido do filósofo Husserl e de toda a fenomenologia, de se “ir às coisas”; é preciso ultrapassar os conceitos, as palavras, os enunciações de fé, para atingir as realidades da fé tais como elas são.
Neste caso a realidade da fé é Cristo Jesus ressuscitado e vivente.
“A fé não acaba nos enunciados, mas sim nas coisas”, disse S. Tomás [i] .
Não nos podemos contentar com o acreditar na fórmula “uma pessoa”, devemos atingir essa pessoa e, em certo sentido, tocar-lhe.

Existe um conhecimento que é experiência, isto é, o de alguém que provou e tocou,
Dela fala S. Paulo quando diz: «Para que eu O possa conhecer a Ele…»
Aqui a palavra “conhecer” é muito evidente, pois segundo a linguagem bíblica significa “possuir”.
Não conhecer através de conceitos, mas de modo directo e imediato.
Falando de Jesus ressuscitado, Stº Agostinho diz:
«Se alguém O não puder tocar quando está sobre a terra, que, de entre os mortais, poderá tocar-Lhe, quando estiver no Céu? Pois bem, esse toque [ii] representa a fé! Toca em Cristo aquele que crê em Cristo [iii]»
Sucede, no conhecimento de fé, que, às vezes por instantes o nosso espírito fica “deslumbrado pelo esplendor da verdade como se fosse um relâmpago” e, então, estabelece-se “uma espécie de contacto espiritual” (quidam spirittatis contactus) com a realidade em que se crê [iv].

Não se trata de uma coisa que está longe de ti; não está nem no céu nem para além do mar, mas no teu próprio coração e falta somente sabê-la reconhecer.
Houve porventura um momento da tua vida em que Cristo se apresentou ao teu olhar interior em toda a Sua majestade, doçura e beleza, e em que, como o Apóstolo, te sentiste também tu «conquistado por Cristo»? [v]
Terá sido um momento, talvez breve, em que o mistério de Jesus e do Seu corpo místico te fascinou de tal maneira que desejaste “dissolver-te para estares com Cristo” e conhecê-Lo como Ele é?
Terá sido um momento – talvez nos teus anos de juventude – em que, por um instante, te foi manifestada claramente a “verdade” de Cristo, tanto que, por ela, poderias ter resistido ao mundo inteiro?
A verdade das profecias, a verdade dos evangelhos, a verdade de tudo quanto diz respeito a Cristo?
Pois foi esse o sublime conhecimento de Cristo, operado em ti pelo Espírito Santo.

A fé termina assim verdadeiramente nas “coisas”.
Tanto o Oriente como o Ocidente concordam em afirmar este tipo de conhecimento que atinge a realidade final.
«o nosso conhecimento das coisas – diz Cabasillas – é duplo: aquele que se pode adquirir ouvindo, e o que se ganha por experiência directa.
No primeiro não tocamos a coisa, mas vêmo-la nas palavras como numa imagem, embora não seja uma imagem exacta da sua forma.
De facto, entre as coisas existentes, não é possível encontrar uma única que seja em tudo semelhante a outra e que, sendo usada como modelo, seja suficiente para o conhecimento da primeira.
Conhecer por experiência, pelo contrário, significa atingir a coisa em si: então aqui a forma imprime-se na alma e suscita o desejo como um vestígio proporcionado à sua beleza,
Mas quando somos privados da ideia própria do objecto e recebemos dele uma imagem débil e obscura, extraída das suas relações com os outros objectos, o nosso desejo torna-se proporcional a esta imagem, e então não o amamos como devemos e não temos por ele os mesmos sentimentos que ele poderia suscitar, porque não lhe saboreámos a forma.
Do mesmo modo que as formas diversas das diferentes essências, imprimindo-se na alma, a configuram de maneira diferente, assim sucede com o amor.
Portanto, quando o amor do Salvador não deixa vislumbrar em nós nada de extraordinário e para além da natureza, é sinal evidente que encontrámos somente vozes que falam d’Ele; mas como é possível conhecer bem por este meio Aquele a Quem nada se assemelha, Aquele que nada tem de comum com os outros, ao Qual nada pode ser comparado e a nada pode comparar-Se?
Como conhecer a Sua beleza e amá-lO de modo digno da Sua beleza?
Aqueles aos quais foi dado um tal ardor que fora levados para fora da própria natureza e induzidos a desejar e a poder realizar obras maiores do que as dos homens vulgares podem conceber, esses foram feridos directamente pelo Esposo, foi Ele que lhes infundiu no olhar um raio da Sua beleza: o tamanho de ferida indica a flecha, o ardor revela aquele que feriu» [vi].

Quando o amor do Salvador não deixa vislumbrar em nós nada de extraordinário, é sinal que encontrámos somente vozes que falam d’Ele, Não a Ele!

Mas como poeremos restituir à nossa fé, tornada árida pelas fórmulas, este realismo que foi a fonte da Sua força nos Padres e nos Santos?
As fórmulas, os conceitos, as palavras ganharam tanta importância que se transformaram frequentemente num tremendo “isolador” que encobre as realidades e impede que elas nos sacudam.
Do mesmo modo que, na Eucaristia, os sinais visíveis – o pão e o vinho - se desfazem de si, se põem de lado, por assim dizer, e se reduzem a meros sinais, para dar lugar à realidade do Corpo e do Sangue de Cristo que devem transmitir, assim também, ao falarem de Deus, as palavras devem ser sinais humildes, preocupadas em afirmar as realidades e as verdades vivas que contém e depois pôr-se de lado.
Só assim as palavras de Cristo podem revelar-se por aquilo que são, isto é, «Espírito e vida» [vii].


(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.





[i] S. Tomás de Aquino, S. Th. II, ad 2 e, q. 1, a. 2
[ii] Cfr. Jo 20,17
[iii] Stº Agostinho, Sermo 243,1-2 (PI. 38,1144
[iv] Stº Agostinho, Sermo 52,6-16 (PI. 38,360
[v] Fl 3,12
[vi] N. Cabsillas, Vida em Cristo, II, 8 (PG 150,552 ss
[vii] Cfr. Jo 6,63

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