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16/12/2017

Leitura espiritual

A PAZ NA FAMÍLIA

AS CORDAS DO CORAÇÃO

MAIS CORDAS DESAFINADAS

Existem outras cordas malsoantes do orgulho. Seria difícil lembrá-las todas. Mas, para ficarmos prevenidos e tentarmos melhorar, talvez seja útil examinar ainda mais três ou quatro delas.
Uma corda, um defeito muito aparentado com a crítica, é a mania de fiscalizar, partindo da base de que sempre existe “coelho no mato”. O paradigma pitoresco desse espírito de suspeita é a figura lendária do marido que, todos os dias, ao chegar a casa, aplica uma homérica surra na mulher e nos filhos, e esclarece depois: “Não sei o que eles fizeram, mas eles sabem...”
Há pais que parecem estar sempre a fazer uma auditoria na mulher e nos filhos, com um bloco de multas e o Código Penal na mão. A alguns deles, costumo chamá-los, brincando, “Catão, o Censor” [i].
E o mesmo se poderia dizer de certas mães, que mostram uma eterna desconfiança para com os filhos. Interrogam policialmente a todos sobre todas as coisas; vasculham gavetas, papéis e armários à procura de “algo errado”; não acreditam no que eles dizem; fazem complicadas pesquisas telefónicas para se certificar de que estiveram mesmo lá onde disseram que iam; perguntam mil vezes a mesma coisa, para ver se os apanham em contradição. Em consequência, os filhos exasperam-se, ficam fora de casa o mais que podem e acabam caindo na teia de aranha das mentiras, provocadas pela desconfiança dos pais.
Quando essa desconfiança se dá entre marido e mulher, e degenera na doença mortal dos ciúmes, então a paz familiar está à beira do naufrágio. O lar torna-se uma câmara de gás, cada vez mais venenoso e asfixiante. O homem ou a mulher que se torturam, e torturam o cônjuge, com a máquina mortífera dos ciúmes, deveriam compreender que só têm duas saídas para esse beco letal: ou reconhecem que o ciúme é fruto de um requintado orgulho (o da pessoa que se sente como uma divindade nunca suficientemente adorada); ou aceitam o facto de que estão doentes, e vão-se tratar com um bom especialista.
O que não é possível é dizer “Eu sou ciumento” e continuar a transformar o lar num inferno.
Também é manifestação clara de orgulho a mania de ter razão.
Como é desagradável conviver com uma pessoa que, por princípio, não aceita que a contradigam, ainda que o façam serenamente e com bons argumentos; que não é capaz de ceder – até mesmo quando já não tem mais o que retrucar –, mas sente a necessidade de dizer a última palavra, porque não quer dar o braço a torcer. “Eu tenho razão, e pronto!”
É tão bom ceder! Só é preciso ter um pouco de humildade, ungida com um pouco de caridade.
São Josemaria Escrivá aconselhava sempre aos casais – e a todas as pessoas de boa vontade – a não discutir. “Da discussão – escrevia – não costuma sair a luz,
porque é apagada pela paixão” [ii].
E punha um minúsculo exemplo prático, com palavras semelhantes a estas: – Para que discutir com a mulher, que afirma que a prima Fulana tem trinta anos, teimando em dizer que “já tem trinta e dois”? É melhor ceder, e não atear uma discussão por uma insignificância. Que importância têm dois ou três anos a mais ou a menos?
Às vezes, para ajudar algum obstinado discutidor a abaixar as armas, costumo dizer-lhe:
“Você já pensou que ninguém vai para o Céu pelo facto de «ter tido razão» nas discussões? No dia do Juízo, ninguém vai perguntar-lhe se, na vida, você «teve razão». Pelo contrário, vão perguntar-lhe se soube compreender os outros, se soube perdoar, aparar arestas e espinhos no convívio e evitar conflitos por minúcias tolas”.
Por último, para não fazer uma enumeração interminável de cordas do orgulho, vou lembrar algo que me dizia recentemente um velho amigo, e que me deixou pensativo e comovido.
Eu vinha meditando sobre o que agora estou a escrever, e ocorreu-me perguntar a esse amigo (pai de uma família unida e exemplar, que acabava de celebrar as Bodas de Ouro do seu felicíssimo casamento): “Fulano, qual acha que é o segredo da paz familiar?”
Confesso que esperava umas palavras um tanto românticas. Por isso, surpreendeu-me a resposta: “Eu diria que o segredo da paz na família é a educação”.
Reconheci, depois, que há nessa resposta uma enorme dose de sabedoria cristã, acrisolada pela experiência. A grosseria, com efeito, não resulta só da deficiência de formação de berço. É sempre um acto de orgulho, porque constitui uma falta de respeito para com a pessoa rudemente tratada, um rebaixamento, uma humilhação.
Na terceira parte desta obra, ao falar dos bons caminhos que levam à paz, deveremos mencionar o respeito – feito de humildade, compreensão e grandeza de coração –, como base indispensável para o amor e, portanto, para a harmonia e a paz. Mas, por ora, vamos deixar este assunto por aqui.

SEGUNDO PORÃO: O EGOÍSMO COMODISTA

HISTÓRIA TRISTE DE CHUPIM

Rubem Braga tem uma crónica deliciosa, intitulada História triste de Tupim.
Vamos começar este novo item com uma crónica nada deliciosa, que poderíamos chamar História triste de chupim.
Na casa onde moro, há um pedacinho de jardim na frente e um quintal nos fundos. O ano inteiro é visitada por pássaros os mais diversos, que enchem o quintal de cores e alegria.
Na primavera, fervilham: lá faz ninho o sabiá, cria a corruíra e se multiplica a rolinha. Mas, ano após ano, uma sombra escura desce sobre esse pequenino paraíso alegre.
Um dia qualquer, observa-se bicando o chão, com ar distraído e olhar sorrateiro, um casal de chupins, pretos como o azeviche. Por mais que disfarcem, ninguém se ilude sobre os seus propósitos. Estão a espiar a ingenuidade com que o tico-tico prepara, laboriosamente, o seu ninho. Aproveitando um descuido dos inocentes passarinhos, a fêmea do chupim depositará no ninho deles um ou dois de seus ovos, e desaparecerá, lavando as mãos – ou o bico – dos trabalhos aborrecidos de ter que construir um ninho, chocar os ovos e alimentar os filhotes.
Só quer vida livre, e os tico-ticos que aguentem o tranco!
Mas isso não é o pior. Correm os dias e nascem as crias. No ninho, começam a conviver pequenos tico-ticos e o ainda pequenino chupim. A mãe tico-tico, numa azáfama incansável, vai levando comida para aqueles quatro ou cinco biquinhos abertos. Passam-se mais uns dias, e o filhote de chupim já cresceu. Logo vai crescendo mais, ocupa quase todo o ninho, lá mal cabem todos. Até que, numa manhã, descobre-se com o coração cortado o gordo filhote de chupim refestelado no ninho e, no chão, mortos ou agonizantes, os filhos legítimos do tico-tico, que foram sendo empurrados para fora porque o chupim precisava do espaço inteiro do ninho.
A imagem do chupim não é nada obscura, parece-me, quando aplicada aos conflitos do lar.
Porque o chupim é um símbolo claríssimo do egoísmo na vida familiar. Em casa e fora dela, se as pessoas não dominam a tendência para o egoísmo e o comodismo que todos trazemos dentro, esses defeitos vão crescendo cada vez mais e, gordos como o chupim, acabam por repelir ou machucar seriamente os outros.
Convençamo-nos de que não é só com a agressão, a ofensa, a irritação, a crítica e a prepotência que se criam conflitos familiares. Muitos, muitíssimos deles, são fruto da hipertrofia do comodismo egoísta.
Na sua Carta às famílias, São João Paulo II convida-nos a perguntar-nos se o egoísmo que, como diz, “se esconde inclusive no amor”, não acaba por ser “mais forte do que este amor” [iii].
Vamos agora fazer-nos essa pergunta, ao mesmo tempo que procuramos identificar manifestações de egoísmo e comodismo que não raro grassam na vida familiar.

(cont)

FRANCISCO FAUS [iv]




[i] Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.), personalidade pública de Roma que recebeu o apelido de censorius pelo rigor inflexível com que criticou o relaxamento de costumes, devido à influência grega.
[ii] Josemaría Escrivá, Caminho, 8a. ed., Quadrante, 1995, n. 25.
[iii] São João Paulo II, Carta às famílias, n. 7.
[iv] Francisco Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, os títulos:
O valor das dificuldades; O homem bom;  Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens; A língua; A paciência; A voz da consciência.

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