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09/06/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XV

CAPÍTULO VII

Motivo do crime e obstinação de Caim que nem a palavra de Deus desviou do seu premeditado crime.

…/2

Contudo, não o deixa sem uma recomendação santa justa e boa, dizendo:

Sossega: ele voltará para ti e tu o dominarás [i].

Trata-se do irmão? Nada disso. De quê, pois, senão do pecado? Efectivamente, foi depois de ter dito pecaste que Deus acrescenta sossega: ele voltará para ti e tu o dominarás.  Pode, realmente, ser assim entendido: esta conversão (volta) para o homem deve ser a conversão (volta) do pecado, de m aneira que o homem saiba que a mais ninguém senão a si próprio deve atribuir o pecado. Este é que é o remédio salutar da penitência, este é que é o pedido oportuno do perdão — que nas palavras para ti a sua volta (ad te enim conversio ejus) — não se subentende «será», mas «seja» à maneira de um preceito, e não de uma predição. Porque cada um domina o seu pecado quando não se põe à sua frente, defendendo-o, mas a si o submete fazendo penitência. De outra forma será escravo do seu domínio se lhe presta protecção quando o comete.

Mas o pecado também pode significar a própria concupiscência carnal de que fala o Apóstolo:

A came tem desejos contrários ao espírito [ii];

e entre os frutos da carne enumera a inveja que espicaçava Caim e o incitava à morte de seu irmão. Convém que se subentenda «será», ficando assim: «para ti será o seu regresso (conversio) e tu o dominarás». Realmente, quando se perturba essa parte carnal a que o Apóstolo chama pecado ao dizer:

Não sou eu que o faço, mas o pecado que habita em mim [iii].

(parte da alma a que os filósofos chamam viciosa, porque não devia arrastar o espírito, mas submeter-se ao seu império e ser afastada, pela razão, das obras ilícitas) e quando perturbada, impele a alma ao cometimento de uma acção má, se se acalmar e obedecer à palavra do Apóstolo:

Não ofereçais os vossos membros ao pecado como instrumentos de iniquidade [iv]

- ela volta, domada e vencida, para o espírito e submete-se à autoridade da razão.

Foi isto que Deus prescreveu ao que ardia nas chamas da inveja contra seu irmão e queria suprimir aquele que devia imitar. «Sossega», diz-lhe; retém a tua mão fora do crime; não reine o pecado no teu corpo mortal para te tom ar dócil aos seus desejos; não ofereças ao pecado teus membros como instrumentos de iniquidade — porque «para
ti será o seu regresso» se, em vez de largares as rédeas ao pecado, o refreares com a tua calma. E «então tu o dominarás», isto é, quando do exterior se lhe não permita agir, ele se acostuma, sob o poder do espírito que o dirige com benevolência, a já se não agitar interiormente.

No mesmo livro sagrado diz-se algo de semelhante da mulher quando, após o pecado, Deus, perguntando e julgando, proferiu as sentenças de condenação contra o demónio representado na serpente, contra a mulher e contra o seu marido em suas próprias pessoas. Efectivamente, disse-lhe:

Multiplicarei as tuas tristezas e o teu gemido. Darás à luz com dores os teus filhos [v];

e a seguir acrescentou:

Voltarás para teu marido e ele te dominará [vi].


O que se disse a Caim acerca do pecado, ou acerca da concupiscência viciosa da carne, diz-se nesta passagem acerca da mulher que pecou; donde se deve entender que o varão para com andar sua mulher deve assemelhar-se ao espírito que com anda a carne. E por isso que o Apóstolo diz:

O que ama sua mulher a si próprio se ama; pois nunca ninguém à sua própria carne tem ódio [vii].

Devemos, pois, sanar estes males como sendo nossos e não os condenar com o se alheios fossem. Mas Caim recebeu aquele preceito de Deus como prevaricador e, subjugado pela inveja, armou uma cilada e matou o irmão.

Tal foi o fundador da cidade terrestre. Deste modo figurou também os Judeus, por quem foi morto Cristo, pastor das ovelhas que são os homens, que Abel, o pastor de ovelhas, que eram os animais, prefigurou. É uma alegoria profética de que me abstenho agora de falar. Recordo-me de dela ter falado contra o maniqueu Fausto.



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)



[i] Ge., IV,6-7.
[ii] Gál., V, 17.
[iii] Rom., VII, 17.
[iv] Rom., VI, 13.
[v] Gen., III, 16.
[vi] Ibid.
[vii] Efés., V, 28-29.

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