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02/06/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XIV

CAPÍTULO XXVI

Devemos crer que a felicidade dos que viviam no Paraíso podia realizar o dever de procriar sem a vergonha do desejo.

O homem vivia, portanto, no Paraíso como queria enquanto queria o que Deus ordenara. Vivia gozando de Deus de cujo bem era feita a sua bondade. Vivia sem qualquer privação, estando em seu poder viver sempre assim. Havia alimento para que não passasse fome, havia bebida para que não passasse sede, havia a árvore da vida para que a velhice o não dissolvesse. Nenhum a corrupção no corpo ou do corpo procedente produzia doença alguma aos seus sentidos. Nenhuma doença interna, nenhum acidente exterior havia a temer. Na carne a saúde plena, na alma a total tranquilidade. No Paraíso, assim como não havia calor nem frio, assim também quem lá morava estava livre de qualquer atentado que o desejo ou o medo causassem à sua boa vontade. Nenhuma tristeza, nenhuma vã alegria havia lá. Perpetuava-se, vinda de Deus, uma alegria verdadeira em que ardia

uma caridade nascida de um coração puro, duma consciência recta e duma fé sincera [i].

Havia também uma sociedade sincera dos cônjuges entre si garantida pelo amor honesto, a alma e o corpo levaram uma vida de mútua concórdia e o mandamento era observado sem esforço. O tédio não molestava o ocioso nem contra vontade se era molestado pelo sono.


Estamos muito longe de pensar que, em tão grande abundância de bens e com tal felicidade dos homens, a prole se não podia gerar sem a morbidez libidinosa. Pelo contrário: os membros genitais obedeceriam ao arbítrio da vontade tal com o os demais, e o marido ter-se-ia introduzido nas entranhas da esposa sem o aguilhão arrebatador da paixão libidinosa, na tranquilidade da alma e sem corrupção alguma da integridade do corpo. Embora isto se não possa demonstrar pela experiência, não é caso para se não crer, pois estas partes do corpo não seriam excitadas por um alvorotado ardor, mas utilizadas, conforme as necessidades, por um poder que a si mesmo se domina (spontanea potestas). E então poderia assim o sémen viril penetrar no útero da esposa mantendo-se a integridade do órgão genital feminino, — tal como presentemente o fluxo do sangue menstrual pode sair do útero de uma virgem sem prejuízo para a sua integridade. De facto, é pela mesma via que um se introduz e o outro sai. No parto as entranhas da mulher dilatar-se-iam, não com os gemidos da dor, mas com o impulso da maturidade. Do mesmo modo para fecundar e para conceber não seria o apetite libidinoso, mas o uso voluntário que uniria as duas naturezas.

Falamos de assuntos que agora causam vergonha e por isso, embora procurem os conceber o que poderiam ter sido antes de causarem vergonha, todavia, é mais conveniente que esta nossa exposição se refreie pelo pudor que nos retrai do que seja ajudada pela nossa débil eloquência. Nem mesmo os que poderiam experimentá-lo, experimentaram o que estou a dizer (porque, tendo-se antecipado o pecado, mereceram o exílio do Paraíso antes de se unirem em tranquilo alvedrio na obra da propagação).  Como é que, então, um tal assunto poderia sugerir aos nossos sentidos humanos outra coisa que não seja o exercí­cio dum a turbulenta paixão em vez do exercício de uma tranquila vontade? Daí que o pudor impeça quem fala, embora não faltem argumentos a quem pensa.

Porém, a Deus omnipotente — Criador supremo e supremamente bom de todas as naturezas, que ajuda a recompensar as boas vontades, que abandona e condena as más vontades, que ordena umas e outras — não faltou plano para tirar eleitos mesmo do género humano condenado, para preencher o número, fixado na sua sabedoria, dos cidadãos da sua cidade. Distingue-os dos outros pela sua graça e não pelos seus méritos — já que toda a massa estava condenada na sua raiz corrompida — mostrando não só aos libertados de si próprios, mas também aos não libertados, que graças lhes dispensava. Bem sabe cada um que não é por seus méritos, mas por gratuita bondade que é arrancado ao mal quando se vê desembaraçado da sociedade dos homens de cujo justo castigo deveria partilhar. Porque é que não haveria Deus de criar aqueles que previu viriam a pecar, se, na verdade, neles e por eles podia mostrar

não só o que é que merecia a sua culpa,
mas também o que é que lhes concederia a sua graça

e, ainda que, sob tal criador e ordenador, a perversa desordem dos delinquentes não seria capaz de perturbar a recta ordem das coisas?


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] I Tim., I, 5.

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