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10/06/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XV

CAPÍTULO VIII

Qual seria a razão por que, nos primórdios do género humano, Caim fundou uma cidade.

Parece-me que agora deve ser defendida a história, não se vá julgar indigna de fé a Escritura que relata ter sido construída um a cidade por um homem só, no tempo em que, parece, não havia na terra mais que uns quatro homens, ou melhor três depois que o irmão matou o irmão, ou seja: o primeiro homem, pai de todos, o próprio Caim e seu Filho Henoc do qual a cidade tomou o nome. Mas aqueles a quem isto espanta mal reparam que o escritor desta história sagrada não tinha necessidade de nomear todos os homens que então podia haver, mas apenas os que o plano do seu trabalho postulava. A intenção desse escritor, por intermédio do qual operava o Espírito Santo, foi chegar, por uma série determinada de gerações provenientes de um só homem, até Abraão e depois, por sua descendência, até ao povo de Deus. Neste, segregado dos demais povos, estariam prefiguradas e anunciadas todas as coisas futuras previstas pelo Espírito Santo acerca da cidade cujo reino será eterno, bem como acerca de Cristo seu fundador e seu rei. Mas não convinha deixar de talar da outra sociedade dos homens, a que nós chamamos «Cidade Terrestre», pelo menos na medida em que era preciso evocá-la para que brilhe, por comparação com a sua adversária, a Cidade de Deus.

Quando a Sagrada Escritura menciona o número de anos que aqueles homens viveram, a propósito de cada um conclui assim: «gerou filhos e filhas, e o total dos dias vividos» por este ou por aquele «foi de» tantos anos, e «depois morreu». Lá porque não nomeia os filhos e filhas temos nós que entender que, através de tantos anos como os que se viviam naquela primeira fase deste século, não puderam nascer muitíssimos homens que, reunidos, fundariam inúmeras cidades? Mas pertence a Deus, inspirador destas narrativas, repartir e distinguir desde a origem as duas sociedades com as suas próprias gerações:

— duma parte as dos homens, isto é, dos que vivem como aos homens apraz;

— doutra parte as dos filhos de Deus, isto é, dos homens que vivem como a Deus apraz.

Estas gerações refere-as a Escritura até ao Dilúvio. E refere então a separação e a confusão das duas cidades:

a separação, ao mencionar à parte as suas gerações, provenientes umas de Caim, o fratricida, e as outras de seu irmão Set, também nascido de Adão em vez do que
foi morto pelo irmão;

— a confusão, quando os bons se inclinaram para pior e se tornaram todos tais que foram destruídos pelo Dilúvio, à excepção de um justo chamado Noé, com sua esposa, seus três filhos e suas três noras — oito pessoas que foram dignas de escapar na arca ao extermínio dos mortais.


Pelo facto de estar escrito:

Caim conheceu a sua mulher que concebeu e deu à luz Henoc; e ele fundou uma cidade a que pôs o nome de seu filho Henoc [i],

não se segue que se deva julgar que foi este o seu primeiro filho. Nem também se deve pensar, só porque se diz que conheceu sua mulher, que foi então a primeira vez que com ela se uniu. O mesmo se disse de Adão, o pai de todos, não somente quando foi concebido Caim que parece ter sido o primogénito, mas também, mais tarde, pela mesma Escritura foi dito:

A dão conheceu Eva sua mulher que concebeu e deu à luz um filho a quem pôs o nome de Set [ii].

por aqui se vê que a Escritura costuma exprimir-se desta maneira, embora nem sempre, quando faz alusão à concepção de homens, e não apenas quando os sexos se conjugam pela primeira vez. Nem ainda é argumento convincente para termos Henoc como primogénito de seu pai o facto de a cidade ter recebido o seu nome. Não é despropositado que seu pai, tendo embora outros filhos, possa ter tido algum motivo para amá-lo mais do que aos outros. Também Judá não foi o primogénito e dele receberam o nome a Judeia e os Judeus. Mas, mesmo que esse tenha sido o primeiro filho que nasceu ao fundador da dita cidade, nem por isso se deve pensar que o pai pôs o nome dele à cidade então fundada quando ele nasceu, porque com um só homem não se podia fundar uma cidade que outra coisa não é que uma multidão de homens reunidos por um vínculo de sociedade. Mas, quando a família daquele homem se tornou tão numerosa que adquiriu a importância de um povo, tornou-se então possível fundar uma cidade e dar-lhe o nome do seu primogénito. Tão longa foi, de facto, a vida desses homens que, daqueles de quem se fala e se referiu o número de anos, o que, antes do Dilúvio, menos tempo viveu, chegou à idade de setecentos e cinquenta e três anos. Muitos ultrapassaram mesmo os novecentos anos, embora nenhum tenha chegado aos mil. Quem poderá então duvidar de que, durante a vida de um só homem tenha podido o género humano multiplicar-se de tal forma a haver com que constituir não uma só mas muitas cidades? Isto pode com toda a facilidade conjecturar-se do facto do crescimento do povo hebreu que, proveniente apenas de Abraão, em pouco mais de quatrocentos anos, se multiplicou de tal forma que à saída do Egipto já contava seiscentos mil jovens capazes de com bater, — e não falamos do povo dos Idumeus que não pertence ao povo de Israel, mas descende de seu irmão Esaú, neto de Abraão, nem de outros povos também da estirpe de Abraão, mas não provenientes de sua mulher Sara.




(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Gen., IV, 17.
[ii] Gen., IV, 25.

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