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01/06/2017

Leitura espiritual


Vol. 2

LIVRO XIV

CAPÍTULO XXIV

Se os homens se tivessem conservado inocentes no Paraíso e com o mérito da obediência, teriam utilizado os órgãos genitais na procriação dos filhos com o os demais órgãos ao arbítrio da vontade.

Por conseguinte, o varão semearia e a mulher receberia a prole, sendo os órgãos genitais movidos, quando e como fosse necessário, sob o impulso da vontade e não pela excitação libidinosa. Efectivamente, nós movemos à vontade não somente os membros constituídos por ossos compactos — como os pés, as mãos, os dedos — mas também os que são flácidos, constituídos por carnes e nervos.  Quando queremos, movemo-los, agitando-os; alongamo-los, estendendo-os; encolhemo-los, dobrando-os; endurecemo-los, contraindo-os — tal qual como a vontade move, na medida em que lhe é possível, os que estão na boca e na face. Por fim os próprios pulmões, de todas as vísceras as mais moles a não ser a medula, encerrados por isso na cavidade do peito, obedecem com o os foles das forjas ou dos órgãos, para aspirarem ou expirarem o ar, emitirem ou modelarem a voz à vontade do que sopra ou respira, fala, grita ou canta. Não refiro a faculdade natural que alguns animais têm de mexer a pele de que está revestido todo o seu corpo só no sítio em que sentem alguma coisa 4ue têm que repelir —   pelo tremor da pele afugentam as moscas que nela pousam e até os espinhos que nela se espetam. Lá porque o homem não tem este poder, será o Criador não o poderia conceder aos animais como aprouvesse? Da mesma maneira pôde, portanto, também o homem manter nos seus membros inferiores a obediência que tinha perdido pela sua desobediência. Nem, na verdade, era difícil para Deus criá-lo de tal forma que, o que agora na sua carne é movido pela paixão libidinosa fosse então movido pela sua vontade.

Conhecemos, de facto, certos homens que têm uma constituição muito diferente da dos outros e admirável pela sua raridade. Fazem à vontade com o seu corpo actos que os outros não podem fazer, sendo difícil àqueles que deles ouvem falar neles acreditarem. Há os que mexem as orelhas, quer uma de cada vez quer as duas ao mesmo tempo. Outros, sem mexerem a cabeça, puxam toda a cabeleira para a frente ou levam-na para trás quando lhes apetece. Alguns, depois de terem engolido, da mais incrí­vel forma, as coisas mais variadas, com um a ligeira contracção do estômago retiram-nas intactas a seu bel-prazer como se fosse dum saco. H á outros que imitam e reproduzem tão bem as vozes das aves, dos animais e de vários homens que, se não fossem vistos, deles se não distinguiriam. Alguns emitem por baixo, sem a menor ponta de fedor, sons tão cadenciados que até parece que cantam por essa parte. Eu próprio vi um homem que suava quando lhe apetecia. E sabe-se que alguns choram, chegando a derramar abundantes lágrimas, quando querem. E ainda muito mais incrível é este facto a que recentemente assistiram alguns irmãos: houve, numa paróquia da Igreja de Calama, um certo presbítero chamado Restituto que, quando queria, (e a pedido dos que desejavam presenciar essa maravilha) perante os fingidos prantos de qualquer homem, perdia os sentidos e ficava de tal m aneira semelhante a um morto, que, se o picassem, nada sentiria, e, às vezes, só sentia as dores de um a queimadura depois, na ferida. O seu corpo ficava imóvel, não devido à resistência que opunha, mas devido à insensibilidade, como se verificava num morto, pela falta de respiração. Mas, contava ele depois, se falassem com clareza, ouvia, como que ao longe, as vozes humanas. Pois, se ainda agora, levam uma vida tão cheia de misérias na carne corruptível, tão maravilhosamente o corpo obedece à vontade em alguns e muitos movimentos e impulsos fora do com um — por que motivo não havemos de crer que, antes do pecado de desobediência e do castigo da corruptibilidade, podiam os membros humanos estar submetidos à vontade humana para, sem resquícios da libido, propagar a prole? O homem foi a si mesmo abandonado porque abandonou Deus e em si mesmo pôs as suas complacências. Recusa-se a obedecer a Deus e por isso não pôde a si próprio obedecer. Daí a sua mais evidente desgraça: o homem já não vive com o quer. Julgar-se-ia feliz se vivesse com o quer. Mas nem isso seria, se vivesse vergonhosamente.

CAPÍTULO XXV

A verdadeira felicidade não se alcança na vida temporal.

Mas se pensarmos bem, ninguém, a não ser o homem feliz, vive como quer. E ninguém é feliz a não ser o justo. Mas mesmo o justo não vive com o quer, enquanto não chegar aonde não se possa morrer, nem errar, nem sofrer e lhe esteja assegurado que sempre assim será. É isto o que a natureza deseja e ela só será plena é perfeitamente feliz, se obtiver o que deseja. Mas, presentemente, qual é o homem que pode viver com o quer, quando o próprio viver não está no seu poder? Quer, realmente, viver e é coagido a morrer. Como vive então como quer quem não vive enquanto quer? E, se quiser morrer, — como pode viver como quer quem viver não quer? E, se quiser morrer, não porque não queira viver, mas para viver melhor depois da morte, — então ainda não vive como quer; mas viverá como quer quando, pela morte, chegar ao que quer. Mas vá! Que viva como quer porque se violentou e a si mesmo impôs não querer o que não pode e querer o que pode (como diz Terêncio:

Pois que não podes jazer o que queres,
Procura querer o que possas [i]

acaso será feliz porque pacientemente é infeliz? Vida feliz se não se ama não se tem. Mas se se ama e se tem a vida feliz, necessariamente que se ama, acima de tudo o mais, a vida feliz — porque é por causa dela que se tem de amar tudo o que se ama. Mas se se ama a vida tanto quanto ela é digna de ser amada (pois não é feliz quem não ama a vida feliz com o ela é digna de ser amada), é impossível que quem assim a ama a não deseje eterna. Portanto, a vida, quando for eterna, então é que será feliz.



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)



[i] Terêncio, Andria, II, 1, 305.

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