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29/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XIV

CAPÍTULO XX

Acerca da absurda torpeza dos cínicos.

Não terão compreendido isto os filósofos «caninos», isto é, os cínicos
[i]  quando divulgaram, contra o pudor humano, uma doutrina realmente canina, isto é, imunda e impudente? — Dizem eles: já que é lícito o que se faz com a esposa, não haja vergonha de fazê-lo às claras nem há que evitá-lo na rua ou na praça. O pudor natural levou, porém, de vencida esta errónea opinião. Embora se diga que Diógenes por jactância o fez, julgando que assim a sua seita se tornaria mais célebre se fixasse na memória dos homens a sua mais notável impudência, — posteriormente os cínicos deixaram -se disso. Teve mais força o pudor para envergonhar os homens diante dos homens do que o erro para convencer os homens a pretenderem ser semelhantes aos cães. Sou mesmo de opinião que ele ou os seus discípulos, a quem se atribui esta ignomínia, imitaram antes, aos olhos das pessoas que ignoravam o que se passava debaixo do manto, os movimentos dos que estão mantendo relações sexuais, mas não foram capazes de realizar essa ignomínia sob os olhares reprovadores dos homens. Não se envergonhavam, pois, os filósofos de aparentar o desejo de realizarem o acto sexual precisamente quando o próprio desejo sexual (libido) se envergonhava de se manifestar.

Sabemos que ainda agora há filósofos cínicos: uns envolvem-se num m anto, outros trazem também um cajado. Todavia, nenhum deles se atreve a fazer o que acima disse. Se se atrevessem seriam cobertos, não digo das pedras que lhes atirariam, mas com certeza da saliva dos que sobre eles cuspiriam. E que, sem sombra de dúvida, a natureza humana envergonha-se desta paixão. Pois a desobediência que submete apenas aos seus movimentos os órgãos genitais do corpo e os subtrai ao poder da vontade mostra bem qual foi a retribuição daquela primeira desobediência do homem. E isto devia manifestar-se principalmente naquela parte por que se propaga a própria natureza que se mudou para pior com o dito primeiro e grande pecado. Da sua vinculação ninguém escapa a não ser que, com a graça de Deus, se expie em cada um o que foi cometido para perdição com um quando em um só éramos, mas que a justiça de Deus já vingou.

CAPÍTULO XXI

Bênção da fecunda multiplicação humana, concedida antes do pecado. O pecado não a aboliu mas acresceu-lhe a doença da paixão.

Está muito longe de nós o pensamento de que aqueles esposos colocados no Paraíso teriam de realizar, mediante esta paixão libidinosa (libido), de que viriam a envergonhar-se tapando as regiões pudendas, aquilo que Deus prometeu na sua bênção:

Crescei e multiplicai-vos e enchei a terra [ii].

É que, de facto, foi depois do pecado que esta paixão nasceu. Foi depois do pecado que a natureza — sem perder o pudor, mas perdendo o poder a que o corpo obedecia em todas as suas partes — a sentiu, lhe prestou atenção, dela se envergonhou e se tapou. Mas a bênção das núpcias para que os casados crescessem, se multiplicassem e enchessem a Terra foi mantida mesmo nos delinquentes; todavia, foi concedida antes de delinquirem para que se ficasse a saber que a procriação dos filhos pertencia à glória do casamento e não ao castigo do pecado. Mas agora os homens, ignorando certam ente a felicidade que existiu no Paraíso, julgam que só puderam gerar-se filhos mediante aquilo que agora experimentam, isto é, mediante a concupiscência (libido), de que, como notamos, a própria honestidade o casamento se envergonha. Outros há que não aceitam e com deslealdade mofam das Sagradas Escrituras onde se lê que, depois do pecado, se envergonharam da sua nudez e taparam as regiões pudendas. Outros ainda, embora as aceitem e respeitem, têm dito:

Crescei e multiplicai-vos [iii],

com o não significativo da fecundidade carnal, porque também da alma se diz algo semelhante:

Multiplicar-me-ás na minha alma na virtude [iv];

e, no que se segue no Génesis:

Enchei a terra e dominai-a [v],

entendem eles por terra a carne que a alma enche da sua presença e domina principalmente quando é fecunda em virtudes. Mas os frutos carnais não poderiam nascer, como agora também não podem, sem a volúpia (libido) que apareceu depois do pecado, se fez notar, se sentiu confundida e se ocultou. Esses frutos não poderiam ter existido no Paraíso, mas fora dele, com o aconteceu. Efectivamente» foi depois de terem sido expulsos de lá que os primeiros homens se uniram para gerarem filhos e os criarem.




(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] A escola cínica teve por fundador Antístenes, discípulo de Sócrates. O seu principal Corifeu foi, porém, Diógenes. Seguiam e ensinavam um ideal de simplicidade, carência de necessidades, liberdade interior e regresso à natureza e professavam o mais puro monoteísmo. Devido, porém, a certas extravagâncias em que caíram e à mordacidade da sua linguagem, começaram a ser conhecidos por cínicos' (caninos), pois que «ladravam» como cães.
[ii] Gen., I, 28.
[iii] Ibid
[iv] Salmo CXXXVII, 4.
[v] Gen., I, 28.

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