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26/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 2

LIVRO XIV

CAPÍTULO XIV

A soberba do transgressor foi mais grave do que a transgressão.

Mas pior e mais condenável é a soberba que até nos pecados manifestos procura a escapatória duma justificação. Foi assim que procederam os primeiros homens, dos quais a mulher disse:

serpente enganou-me e eu comi.[i]

e o homem disse:

A mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi.[ii]

Em momento nenhum se ouve aqui um pedido de perdão, em momento nenhum se ouve uma solicitação de remédio. Embora não neguem como Caim o que cometeram, todavia, a soberba procura lançar sobre o outro o mal que fez — sobre a serpente a soberba da mulher, sobre a mulher a soberba do homem. Mas a justificação é antes uma acusação quando é manifesta a violação do mandamento divino. Nem deixaram de a cometer — a mulher porque a cometeu enganada pela serpente e o homem por a mulher lho pedir, como se se devesse preferir fosse o que fosse a Deus em quem se deve crer, a quem se deve obedecer.


CAPÍTULO XV

Justiça da sanção infligida aos primeiros homens devido à sua desobediência.

Deus legislador — que o tinha criado, que o tinha feito à sua imagem, que o tinha posto a presidir a todos os restantes seres animados, que o tinha colocado no Paraíso, que o tinha cumulado de saúde e de todos os bens, que não o tinha sobrecarregado com preceitos numerosos, pesados ou difíceis mas apenas com um tão simples e tão breve para garantir uma salutar obediência (com o qual lembrava a esta criatura — de quem mais não esperava que um serviço livre — que Ele é que era o Senhor) — este Deus foi desprezado pelo homem. A consequência foi uma justa condenação. E essa condenação foi tal que o homem, — que mesmo na sua carne seria espiritual caso guardasse o mandamento — tornou carnal o próprio espírito e ele, que, devido à sua soberba, em si mesmo tinha posto as suas complacências, a si mesmo foi entregue pela justiça de Deus. Em vez, porém, de se tornar senhor de si pró­prio e de adquirir a liberdade que desejava, entrou em discórdia consigo mesmo e sofreu uma dura e miserável servidão às ordens daquele a quem, ao pecar, obedecera. De livre vontade morreu no seu espírito — contra vontade morreu no seu corpo. Desertou da vida eterna e foi condenado à morte eterna — a não ser que desta seja libertado pela graça.

Se alguém considera excessiva ou injusta esta condenação, com certeza que não sabe apreciar quão grande fora a iniquidade ao pecar quando tão grande era a facilidade de não pecar. Assim com o com justiça se proclama a grande obediência de Abraão, porque era tão difícil a ordem de matar o filho — assim a desobediência no Paraíso foi tanto maior quanto menor era a dificuldade em obedecer. E assim como a obediência do segundo Adão foi tanto mais admirável porque se fez obediente até à morte — assim a desobediência do primeiro Adão foi tanto mais detestável porque se fez desobediente até à morte. Quando a pena decretada para a desobediência era grande e fácil a ordem do Criador — quem poderá descrever suficientemente a gravidade do mal que houve ao desobedecer numa coisa tão fácil a uma ordem de uma tão grande potestade e sob a ameaça de tamanho castigo?

Enfim e para o dizer em poucas palavras — que pena foi imposta neste pecado à desobediência senão a desobediência? Realmente, que mais é a miséria do homem do que desobediência dele próprio a ele próprio? Porque ele não quis o que podia, já não pode o que quer. Claro que no Paraíso nem tudo podia antes do pecado, mas o que não podia não queria: podia, portanto, tudo o que queria. Agora, porém, como vemos nos seus descendentes

o homem tomou-se semelhante ao vazio,[iii]

como o testemunha a Sagrada Escritura. Quem poderá, efectivamente, enumerar tudo o que ele quer e não pode, ao desobedecer a si próprio, à sua vontade, à sua própria alma e até à sua própria carne que lhe é inferior? Na verdade, é contra vontade que muitas vezes o espírito se perturba, a carne dói, envelhece e morre. Sofremos tantas coisas que não seríamos forçados a sofrer se a nossa natureza obedecesse à nossa vontade de todas as formas e em todas as suas partes. Também a carne sofre de algo que a não deixa obedecer. Que interessa saber porque é que a nossa carne (que nos fora submissa por mercê da justiça de Deus Soberano a quem não quisemos servir como súbditos) se nos torna molesta quando nos não obedece, se nós, quando não obedecemos a Deus, é a nós e não a Deus que nos tornamos molestos? Deus não necessita do nosso serviço como nós necessitamos do serviço do corpo. Por isso ' castigo nosso o que recebemos e não castigo d’Ele o que fazemos.

Quanto às dores que se dizem da carne, são elas da alma que as sente na carne e procedem da carne. Na verdade, que é que pode sofrer ou desejar a carne por si só, sem a alma? O que se diz desejar ou sofrer a carne — é o próprio homem, como já expusemos, ou algo da alma que recebe da carne uma impressão penosa (dela lhe provém o sofrimento), ou agradável (dela nascendo o prazer). Mas a dor da carne mais não é que um a repugnância da alma proveniente da carne, uma espécie de discordância com a paixão corporal — como a dor da alma chamada tristeza é uma discordância com o que nos acontece contra vontade. Mas a tristeza é, na maior parte das vezes, precedida pelo medo que, também ele, está na alma e não na carne, ao passo que a dor da carne jamais é precedida por medo algum da carne, que o corpo experimentaria antes da dor.

O prazer, porém, é precedido de uma certa apetência sentida na carne como desejo seu — tais como a fome, a sede e isso a que, nos órgãos genitais, geralmente se chama libido, embora este seja o nome genérico de todo o desejo. Na verdade, conforme os antigos a definiram, a cólera mais não é que um desejo (libido) de vingança — embora, por vezes, sem se experimentar o menor sentimento de vingança, o homem se irrite contra objectos inanimados: irritado atira com o estilete ou quebra a pena porque escreveu mal. Esta cólera tão disparatada é uma espécie de desejo (libido) de vingança e, nem sei como hei-de dizer, como que um a sombra de retribuição: que sofra o mal quem o mal pratica. Há, portanto, um desejo (libido) e vingança a que se chama ira, um desejo de ter dinheiro que se chama avareza, um desejo de vencer de qualquer maneira que se chama obstinação, um desejo de glória a que se chama jactância. São muitos e variados os desejos (libidines) — alguns deles têm nome próprio, outros não. Quem é que, na verdade, poderá facilmente dizer que nome tem o desejo de dominar que as guerras civis testemunham ter tamanho valor na alma dos tiranos?


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Gén., III, 13.
[ii] Gén., III, 12.
[iii] Salmo CXLIII, 4.

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