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02/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

CAPÍTULO XXII

Condição do único primeiro homem e, nele, de todo o género humano.

Explicada, o melhor que nos foi possível, essa dificí­lima questão da eternidade de um Deus que cria novos seres sem alteração da sua vontade mais fácil nos será compreender agora que era muito mais preferível multiplicar a humanidade com o Deus fez, isto é, fazendo-a provir de um só homem previam ente criado, do que fazendo-a provir de vários homens.

Quanto aos animais: uns solitários, digamos selvagens, isto é, que preferem viver sós, tais com o as águias, os milhanos, os leões, os lobos, e outros quejandos; outros gregários porque preferem viver congregados em grupo, tais como as pombas, os estorninhos, os corvos, as corças, etc. — nem para uns nem para outros determinou Deus a sua propagação a partir de um só: fez existir vários ao mesmo tempo. Ao homem, pelo contrário, deu uma natureza intermédia entre o anjo e o animal:

se se mantivesse submetido ao seu criador como a seu Senhor, observando com piedosa obediência os seus mandamentos, juntar-se-ia à sociedade dos anjos e conseguiria para sempre a beatitude eterna sem passar pela morte;
mas se, abusando da sua livre vontade pelo orgulho e a desobediência, ofendesse o Senhor seu Deus, deveria, condenado à morte, viver à maneira dos animais, escravo das paixões e votado, após a morte, a eterno suplício. Foi por isso que o criou único e só, não certamente para o deixar isolado de toda a sociedade humana, mas para pôr mais em relevo a seus olhos o vínculo de unidade e concórdia que esta sociedade deve manter, estando os homens ligados entre si pela identidade de natureza e pelos vínculos afectivos de parentesco. Nem sequer a própria mulher, destinada a unir-se ao varão, a quis criar como o criou ele, mas formou-a a partir dele, para que todo o género humano se propagasse a partir de um só homem.

CAPÍTULO XXIII

Deus previu o pecado do primeiro homem que criou e, simultaneamente, o numeroso povo de justos nascidos da sua raça que agregaria, por sua graça, à sociedade dos anjos.

Deus não ignorava que o homem viria a pecar e que, votado à morte, viria a gerar filhos destinados à morte. E estes mortais iriam progredir de tal maneira na fereza do crime que os animais destituídos de razão, falhos de vontade, nascidos de várias estirpes, — umas das águas, outras das terras—, viveriam entre si, nas suas espécies, com mais segurança e mais paz do que os homens cuja raça provinha de um só para assegurar a concórdia. Efectivamente, nem os leões, nem os dragões alguma vez desencadearam entre si guerras semelhantes às dos homens. Mas Deus previa também que um povo piedoso, chamado pela sua graça à adopção divina, desligado do pecado e justificado pelo Espírito Santo, seria associado aos santos anjos na paz eterna, quando a morte, sua última inimiga, fosse destruída. A este povo havia de ser útil a consideração de que Deus decidiu a criação do género humano a partir de um só homem para mostrar aos homens quanto apreciava a unidade na sua pluralidade.

CAPÍTULO XXIV

Natureza da alma humana criada à imagem de Deus.

Deus fez, pois, o homem à sua imagem. Efectivamente, criou nele um a alma apta pela razão e pela inteligência a elevar-se acima de todos os animais da terra, das águas e do ar, desprovidos de um espírito deste género.  Tendo, pois, formado o homem do pó da terra, insuflou-lhe essa alma de que acabo de falar, quer a tenha já feita quer fazendo-a pelo seu próprio sopro, querendo que o sopro que assim produzia (realmente, insuflar que mais é senão produzir um sopro?) fosse a própria alma do homem. Depois, com o Deus que é, fez-lhe, de um osso tirado do seu lado, um a esposa para o ajudar na geração. Isto não deve ser, aliás, imaginado conforme os nossos hábitos carnais, com o costumamos ver os artistas servirem-se dos membros do seu corpo para fabricarem a partir de um a qualquer matéria o produto próprio da sua arte. A mão de Deus é a potência de Deus, que produz invisivelmente seres visíveis. Mas isto mais parece uma fábula do que um a realidade para os que utilizam as obras vulgares de todos os dias como medida da capacidade criadora e da sabedoria de Deus, que sabe e pode criar, suponhamos, até a própria semente da vida sem sementes.

Quanto às origens da criação, as pessoas que as ignoram fazem delas ideias falsas. Como se não lhes parecessem ainda mais incríveis a concepção e o nascimento de um homem, se lhos tivessem contado antes de os conhecerem por experiência. Embora a maioria deles atribua estas maravilhas mais a diferentes forças materiais do que à obra da divina inteligência.


CAPÍTULO XXV

Poderá dizer-se que os anjos são criadores de alguma criatura por insignificante que seja?

Estes livros não se dirigem àqueles que se recusam a crer que a inteligência divina tenha feito e cuide deste Mundo. Alguns, crentes no seu Platão, não acreditam que tenha sido o próprio Deus Supremo o criador do Mundo, mas sim que outros deuses menores, por Ele criados, é que formaram, com sua permissão ou sob ordem sua, todos os seres vivos mortais, entre os quais o homem, parente desses deuses, conserva o primeiro lugar. Se esses se libertassem da superstição que os impele a justificarem as cerimó­nias e os sacrifícios que oferecem aos deuses como seus autores, sem dificuldade se veriam livres também da sua errónea opinião. Efectivamente, não é lícito acreditar nem afirmar, que o criador de toda a natureza, por mais insignificante e mortal que seja, possa ser outro que não Deus, mesmo antes de podermos compreender isto. Quanto aos anjos, a quem eles preferem chamar deuses, mesmo que lhes seja permitido ou ordenado que prestem a sua colaboração aos seres que nascem neste Mundo, não são mais criadores dos animais que os agricultores o são dos frutos da terra e das árvores, tão longe estão de se poderem chamar criadores dos animais como o está o agricultor a respeito dos frutos ou das árvores.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)


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