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19/05/2017

Leitura Espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRQ XIV

CAPÍTULO V

Tolera-se melhor a teoria dos platónicos do que a dos maniqueus acerca da natureza do corpo e da alma. Mas também se deve rejeitá-la por atribuir à natureza da carne
a causa de todos os vícios.

Não há, portanto, necessidade de, com injúria para o Criador, acusar dos nossos vícios e pecados a natureza da carne que, no seu género e na sua ordem, é boa. O que não é bom é deixar o Criador — que é bom — e viver em conformidade com o criado — bom também —, quer se opte por viver em conformidade com a carne, em conformidade com a alma ou em conformidade com o homem todo, formado de alma e de carne (tanto se pode designá-lo só com o nome de alma como com o nome de carne). Realmente, quem considera a natureza humana como o bem supremo e acusa a natureza da carne como um mal, — não há dúvida de que aprecia isto com a vacuidade humana e não com a verdade divina. E certo que os platónicos não são tão insensatos com o os maniqueus que detestam os corpos terrenos com o se fossem maus por natureza; afirmam, de facto, que todos os elementos deste mundo visível e tangível e as suas qualidades tem Deus por autor; todavia, entendem que estes órgãos feitos de terra e estes membros, que têm que morrer, impressionam as almas ao ponto de nelas fazerem nascer as doenças que são os desejos e os tem ores quer do prazer quer da tristeza. Estas quatro «perturbações» como lhes ama Cícero, ou «paixões», segundo muitos traduzem do 8rego, compreendem todas as más propensões dos costumes humanos. Mas se assim é, porque é que, em Vergílio, Eneias ao saber, nos infernos, de seu pai, que as almas voltarão aos seus corpos, exclama admirado desta opinião:

Ó pai, dever-se-á pensar que daqui as almas sobem ao Céu.
E de novo voltarão aos pesados corpos?
Donde vem a esses infortunados um tão funesto desejo de luz?[i]

Será então sob a influência destes órgãos de terra e destes membros que têm de morrer que as almas, cuja pureza é tão vigorosamente proclamada, sentirão ainda um tão funesto desejo? Não diz que estão purificadas de todas as suas máculas corpóreas quando começam a desejar o regresso aos corpos? Donde se conclui: mesmo que se
verificasse — o que é total ente infundado — que as almas indo e vindo em alternativa incessante, passariam da purificação à contam inacção, seria falso afirmar que todas as agitações culpáveis e viciosas da alma têm a sua origem nos corpos terrestres. Porque, segundo os próprios plató­nicos, este «desejo funesto», com o diz o ilustre poeta, vem tão pouco do corpo que aparece na alma purificada de toda a mácula corporal, liberta de todo o corpo para a obrigar a reentrar no corpo. Desta forma, segundo a sua própria confissão, não é só sob a influência da carne que a alma experimenta o desejo, o temor, o prazer, a dor — é também dela própria que pode proceder a agitação destes
impulsos.

CAPÍTULO VI

Valor da vontade humana por cujo juízo são tidos por bons ou maus os afectos da alma.

O que, porém, interessa é saber com o é a vontade do homem: porque, se ela é perversa, perversos serão os seus movimentos; mas se é recta, não serão culpáveis, mas serão até louváveis. E que a vontade está em todos os movimentos, ou melhor, todos eles mais não são que vontades. Realmente, que é o desejo ou a alegria senão a vontade que consente no que queremos? Que é o temor ou a tristeza senão a vontade que nos desvia do que recusamos? Chama-se desejo quando no desejo estamos de acordo com o que queremos. Também quando a nossa recusa recai sobre o que não desejaríamos experimentar, esta forma de vontade chama-se medo; e, quando recai sobre o que experimentam os a nosso pesar, esta forma de vontade é a tristeza. Em suma: a vontade do homem é atraída ou repelida conforme a diversidade dos objectos que procura ou evita e assim se muda ou transforma nestes diferentes afectos. Por isso o homem que vive, não em conformidade com o homem, mas em conformidade com Deus, tem de amar a Deus. E como ninguém é m au por natureza, mas por vício, o que vive em conformidade com Deus deve ter para com os maus um perfeito ódio, sem, todavia, odiar o homem por causa do vício nem amar o vício por causa do homem: deve apenas odiar o vício e amar o homem. Assim, uma vez curado o vício, tudo o que ele deve amar permanecerá e nada permanecerá do que deve odiar.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Vergílio, Eneida, VI, 799-721.

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