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12/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 2

LIVRO XIII

CAPÍTULO XXII

Depois da ressurreição os corpos dos santos serão espiritualizados, sem que a carne se transforme em espírito.

Depois da ressurreição os corpos dos justos de mais nenhuma árvore terão necessidade para não morrerem de doença ou de extrema velhice, nem de qualquer alimento corporal com que satisfaçam a necessidade de comer ou de beber. Estarão revestidos de um seguro e inviolável privilégio de imortalidade de forma que só comerão se quiserem, mas não serão a isso constrangidos. Isso também os anjos o fizeram, aparecendo sob uma forma visível e palpável — não porque tivessem fome mas porque o puderam e quiseram para se adaptarem aos homens, humanizando o seu ministério (porque não é de crer que, quando os homens lhes dispensavam hospitalidade, só na aparência é que comiam), embora tenha parecido àqueles que ignoravam a sua qualidade de anjos que eles comiam, como nós, por necessidade. Daí o que disse o anjo no livro de Tobias:

Víeis-me comer, mas era com os vossos olhos que me víeis,[i]


isto é, «julgáveis que eu tomava o alimento por necessidade de refazer o corpo como vós fazeis». Talvez para os anjos haja um a explicação mais aceitável. Mas a nossa fé cristã não duvida, acerca do Salvador, de que Ele, mesmo depois da ressurreição comeu e bebeu com os seus discípulos, em carne de certo espiritual, mas verdadeira carne. Na verdade, o que a tais corpos será tirado, não é a faculdade, mas a necessidade de beber e de comer. Segue-se disto que
eles serão espirituais, não porque deixarão de ser corpos, mas porque subsistirão graças à vida do espírito.

CAPÍTULO XXIII

Que se deve entender por corpo animal e corpo espiritual; e quais são os que morrem em Adão e os que são vivificados em Cristo.

Assim como se chama «corpos animais» aos corpos que ainda não têm o «espírito vivificante», mas têm uma «alma vivente» (sem, contudo, serem almas nos corpos) — assim também aos corpos ressuscitados se chama «corpos espirituais». Longe de nós, porém, crermos que sejam espíritos! Serão corpos com uma substância de carne, mas que não sofrerão, graças ao espírito vivificante, a menor corrupção ou o entorpecimento da carne. O homem já não será então terrestre, mas celeste, não porque o seu corpo, feito da terra, deixe de ser o mesmo, mas porque um dom celeste o tornará apto a habitar mesmo no Céu, sem mudar de natureza, mas sim de qualidade. Mas o primeiro homem terrestre, porque tirado da terra, foi criado com «alma vivente» e não com «espírito vivificante» — o que lhe estava reservado com o prémio da sua obediência. O seu corpo tinha necessidade de com ida e de bebida para não sofrer de fome e de sede. Estava garantido contra uma morte fatal, não por absoluta e indissolúvel imortalidade, mas pela árvore da vida que também o mantinha na flor da juventude; mas não há dúvida de que não era um corpo espiritual, mas animal, sem, contudo, estar destinado a morte se o homem, pecando, não tivesse incorrido na condenação de que Deus o tinha ameaçado. Sem que lhe fossem negados os alimentos fora do Paraíso, ficou, porém, privado da árvore da vida e entregue ao tempo e à velhice, para acabar os dias de uma vida que, se não tivesse pecado, podia ser perpétua no Paraíso, embora com corpo animal, até que, graças ao prémio da obediência, chegasse a ser espiritual.

É por isso que — mesmo considerando esta morte manifesta que separa a alma do corpo como referida também nestas palavras que Deus proferiu:

No dia em que dele comerdes, é de morte que haveis de morrer,[ii]

— não deve parecer absurdo que esta separação do corpo não tenha tido lugar no próprio dia em que comeram do alimento proibido e mortífero. E certo que, desde esse dia, a sua natureza se deteriorou e ficou viciada e, pela justíssima privação da árvore da vida, surgiu neles a fatalidade da morte corporal com a qual nós nascemos. E por isso que o Apóstolo não diz «o corpo deve morrer por causa do pecado», mas diz:

Realmente, o corpo morreu por causa do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça.[iii]

E acrescenta:

Se o Espírito daquele que ressuscitou Cristo dos mortos habita em vós, o que ressuscitou Cristo dos mortos vivificará também os vossos corpos mortais pelo seu Espírito que habita em vós [iv]

O corpo estará, portanto, então, com um «espírito vivificante», ao passo que agora está com uma «alma vivente»; e, todavia, o Apóstolo chama-lhe já morto porque já está sujeito à fatalidade da morte. Mas outrora estava com uma «alma vivente» sem estar com um «espírito vivificante» e, contudo, não seria correcto chamar-lhe «morto» porque só o pecado poderia sujeitá-lo à fatalidade da morte. Assim, ao dizer:

Adão, onde estás?[v]

Deus referiu-se à morte da alma — a morte que surge quando ele a abandona; e ao dizer:

És terra e voltarás à terra,[vi]

referiu-se à morte do corpo — a morte que se verifica quando a alma o deixa. Por isso é de crer que nada disse da morte «segunda», que quis que se mantivesse secreta para a anunciar no Novo Testamento, no qual ela é abertamente anunciada. Era preciso, antes de tudo, que a «primeira morte», com um a todos, fosse revelada como proveniente do pecado que se tornou a todos com um pelo facto de um só; mas a «segunda morte» não é com um a todos pois dela se exceptuam aqueles

que, segundo decisão sua, (Deus) chamou, previu e predestinou a,[vii] 

como diz o Apóstolo,

tornarem-se conformes com a imagem de seu Filho, para que este Filho fosse o primogénito de muitos irmãos.[viii]

A todos estes, preservou a graça de Deus, pelo Mediador, da segunda morte. Com o diz o Apóstolo, foi num corpo animal que o primeiro homem foi feito. Querendo, de facto, distinguir o corpo animal, que temos agora, do corpo espiritual, que teremos na ressurreição, diz:

Foi semeado na corrupção, ressuscitará na incorruptibilidade;
foi semeado na ignomínia, ressuscitará na glória
foi semeado na debilidade, ressuscitará na pujança;
foi semeado corpo animal, ressuscitará corpo espiritual.[ix]

Para o provar declara:

Se há um corpo animal, também haverá um corpo espiritual .[x]

e para mostrar o que é um corpo animal, acrescenta:

Assim está escrito: o primeiro homem Adão foi feito numa alma vivente.[xi]

Quis, portanto, mostrar desta forma o que é o corpo animal, embora do primeiro homem, chamado Adão, quando pelo sopro de Deus uma alma lhe foi criada, a Escritura não tenha dito: «Ele foi feito num corpo animal» mas

O homem foi feito numa alma vivente.[xii]

Portanto, com o que está escrito:

O homem foi feito numa alma vivente,[xiii]

quis o Apóstolo designar o corpo animal do homem. Como se há-de entender o «espiritual», declara-o, dizendo:

O novo Adão em espírito vivificante,[xiv]

designando, sem sombra de dúvida, Cristo, que, ressuscitado dos mortos, já não morrerá mais. Até que acaba por dizer:

O primeiro não é o espiritual mas o que é animal; depois é que vem o corpo espiritual.[xv]

Mostra aqui muito mais claramente que pretendeu designar o corpo animal ao falar do primeiro homem feito em alma vivente, e o corpo espiritual ao dizer:

O novo Adão em espírito vivificante.[xvi]

Em primeiro lugar há, efectivamente, o corpo animal — o do primeiro Adão — posto que não destinado a morrer, salvo se pecasse; e é também o que nós temos agora, degradado e viciado na sua natureza ao ponto de ficar sujeito, após o pecado, à fatalidade da morte. (Foi tal corpo que o próprio Cristo se dignou assumir primeiro por nós, não por imposição da fatalidade, mas por poder da vontade). Em seguida vem o corpo espiritual, como aconteceu já, primeiro em Cristo, nossa cabeça, e como continuará a acontecer nos seus membros na ressurreição derradeira dos mortos.

Depois o Apóstolo estabelece a evidentíssima diferença entre estes dois homens ao dizer:

O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo vem do céu. Tal o terrestre, tais também os terrestres; tal o celeste, tais também os celestes. E da mesma forma que nós revestimos a imagem do terrestre, revistamos também a imagem daquele que vem do céu.[xvii]

O que o Apóstolo assim afirma é o que agora se opera em nós, conforme o sacramento da regeneração, como diz algures:

Todos vós que em Cristo fostes baptizados, de Cristo vos revestistes.[xviii]

mas a realidade terá lugar quando o que em nós há de animal ao nascermos, se torne espiritual ao ressuscitarmos. Para usarmos das suas próprias palavras,

é na esperança que somos salvos.[xix]

Vestimo-nos da imagem do homem terrestre pela transmissão da prevaricação e da morte que a geração nos proporciona. Mas revestimos a imagem do homem celeste pela graça do perdão e da vida perpétua que nos subministra a regeneração através do único Mediador de Deus e dos homens — o homem Jesus Cristo. E a Este que o Apóstolo quer designar por «homem celeste», porque veio do Céu para revestir um corpo de mortalidade terrena que revestiria de imortalidade celeste. Também chama «celestes» aos outros homens, mas é porque eles se tornam seus membros pela graça, para formarem com ele um só Cristo, com o a cabeça e o corpo. E o que ele ainda mais claramente expõe na mesma epístola:

Por um homem veio a morte e por um homem veio a ressurreição dos mortos. Assim como todos morrem em Adão, assim todos serão vivificados em Cristo.[xx]

Sê-lo-ão doravante num corpo espiritual que estará «num espírito vivificante»; não porque todos os que morrem em Adão hão-de ser membros de Cristo (realmente um grande número deles será ferido eternamente de segunda morte) — mas porque a repetição da palavra «todos» (omnes) quer dizer que, assim com o ninguém morre em seu corpo mortal senão em Adão, assim também ninguém é vivificado no corpo espiritual senão por Cristo.

Longe de nós, pois, o pensamento de que na ressurreição teremos um corpo idêntico ao do primeiro homem antes do pecado. Nem o dito:

Tal o terrestre, tais também os terrestres. [xxi]

se deve entender do estado produzido pelo pecado. Realmente, não se deve pensar que, antes do pecado, o corpo do homem era espiritual e que, devido ao pecado, se transformou em corpo animal. De facto, pensar assim seria prestar pouca atenção às palavras de tão grande mestre (doctor) que declara:

Se há um corpo animal, também haverá um corpo espiritual;[xxii]

Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito numa alma vivente.[xxiii]

Porventura aconteceu isto depois do pecado, sendo para esta primeira condição do homem que o bem-aventurado Paulo apela, com o testem unho da lei, para explicar o corpo animal?

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Tobias, XII, 19.
[ii] Gén. II, 17.
[iii] Rom., VIII, 10.
[iv] Rom., VIII, 11.
[v] Gén., III, 9.
[vi] Gén., III, 19.
[vii] Rom., VIII, 28-29.
[viii] Ibid.
[ix] I Corínt., XV, 42-44.
[x] I Corínt., XV, 45.
[xi] Ibd.
[xii] Ibid.
[xiii] Ibid.
[xiv] Ibid.
[xv] I Corint., XV, 46.
[xvi] I Corínt., XV, 45.
[xvii] I Corínt., XV, 47-49.
[xviii] Gál., III, 27.
[xix] Rom., VIII, 24.
[xx] I Corínt., XV, 21-22.
[xxi] I Corínt., XV, 47-49.
[xxii] I Corínt., XV, 42-44.
[xxiii] Ibid.

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