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03/04/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS


Vol. 2

LIVRO X

CAPÍTULO XVIII

Contra os que negam, a propósito dos milagres cumpridos para a instrução do povo de Deus, que se deva crer nos livros da Igreja.

Haverá alguém que diga que esses milagres são falsos, que nunca se realizaram, que mais não são que escritos com mentiras? Se alguém pretende com isto dizer que, em tais assuntos, absolutamente nenhum escrito é digno de crença, também pode dizer que nenhum deus cuidou dos mortais. Com efeito, que esses deuses não conseguiram convencer os homens a prestarem-lhes culto senão operando obras maravilhosas, atesta-o a história das nações cujos deuses souberam manifestar-se mais prodigiosos do que úteis. Por isso, nesta obra, de que já temos em mãos o décimo livro, não procuram os refutar os que negam todo
o poder divino ou sustentam que este se não ocupa das coisas humanas; dirigimo-nos aos que antepõem os seus deuses ao nosso Deus, fundador da santa e gloriosíssima Cidade, ignorando que o mesmo é fundador invisível e imutável deste Mundo visível e mutável e dispensador veríssimo desta vida feliz que vem dele e não das coisas
que criou.

Diz, com efeito, o seu fidelíssimo profeta:

Para mim o estar unido a Deus é que é bom '.

Discute-se entre os filósofos qual o último bem para a aquisição do qual devem tender todos os nossos deveres, profeta não disse: «para mim é bom abundar em riquezas distinguido pela púrpura e pelo ceptro ou sobressair pelo diadema»; nem, com o se não envergonharam de dizer alguns filósofos: «o meu bem é o prazer do corpo»; ou melhor, com o parece que disseram os melhores: «o meu bem é a virtude da minha alma». O que ele disse, foi:

Para mim o estar unido a Deus é que é bom '.

Quem isto lhe ensinara foi Aquele que é o único digno das honras do sacrifício, com o os seus santos anjos nos advertiram, confirmando-o com milagres. Por isso, Ele próprio se tornara sacrifício d’Aquele cujo fogo inteligível o tinha arrebatado e abrasado e para Quem o impelia o santo desejo de um incorpóreo abraço.

Se, pois, os adoradores duma multidão de deuses (seja qual for a opinião que deles tenham ) acreditam nos milagres feitos por esses deuses ou dão crédito à história das coisas profanas ou aos livros mágicos, ou, o que lhes parece mais honesto, aos livros teúrgicos — porque se recusam a crer nos factos testemunhados pelas Escrituras cuja autoridade é tanto maior quanto mais acima de todos está Aquele unicamente a Quem elas prescrevem que se ofereçam sacrifícios?

CAPÍTULO XIX

Motivo por que se deve, segundo a verdadeira religião, oferecer um sacrifício visível ao único Deus invisível e verdadeiro.

Julgam alguns que esses sacrifícios visíveis convêm aos outros deuses, mas que ao Deus invisível, maior e melhor, convêm sacrifícios invisíveis, maiores e melhores, tais como as homenagens de uma alma pura e de um a boa vontade. Não há dúvida que estes ignoram que os sacrifí­cios visíveis são sinais dos invisíveis, com o as palavras pronunciadas são sinais das coisas.

Por isso é que, assim como nas nossas preces e nos nossos louvores dirigimos os sinais das nossas palavras àquele a quem oferecem os em nosso coração as próprias realidades que significamos, — assim também, ao oferecermos um sacrifício, sabemos que o sacrifício visível não deve ser oferecido senão Àquele para quem nós devemos ser, no nosso coração, o sacrifício invisível. E então que os anjos e as virtudes superiores, cuja bondade e piedade mais aumentam o seu poderio, nos concedem os seus favores e partilham da nossa alegria. E se a eles mesmos quisermos oferecê-los, eles não os aceitam de bom agrado e, quando são enviados aos homens de forma que se note a sua presença, negam-se terminantemente a aceitá-los. Há disto exemplos nas Sagradas Escrituras: alguns julgaram que deviam prestar aos anjos pela adoração e pelo sacrifício a honra que apenas a Deus é devida; foram disso impedidos por admoestação deles, que ordenaram os tributassem apenas Aquele a quem sabem serem devidos.

Os santos homens de Deus imitaram os santos anjos: Paulo e Barnabé, em Licaónia, por terem realizado uma cura miraculosa, foram tomados por deuses. Os licaónicos quiseram imolar-lhes vítimas. Mas na sua humilde piedade repeliram essa honra e anunciaram-lhes o Deus em Quem deviam acreditar. E, se os espíritos embusteiros orgulhosamente os exigem para si próprios, é unicamente porque sabem que eles são devidos ao verdadeiro Deus. Porque, na verdade, não é no fedor dos cadáveres que se comprazem, como pensam alguns e o diz Porfírio, mas sim nas honras divinas. Aliás, desses fedores têm eles grande abundância por toda a parte e, se mais quisessem, eles próprios a si mesmo os poderiam fornecer. Portanto, os espíritos que se arrogam a divindade deleitam-se, não com o fumo dos corpos mas com a alma do suplicante sobre a qual dominarão depois de o terem enganado e escravizado; e, assim, vedam -lhe o caminho que conduz ao verdadeiro Deus para que ele, homem, não seja sacrifício de Deus, quando sacrifica em honra de outrem em vez de sacrificar a Deus.

CAPÍTULO XX

Do verdadeiro e supremo sacrifício cumprido pelo próprio Mediador de Deus e dos homens.

Por isso o verdadeiro Mediador, que, ao tomar a forma de escravo, se tornou mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus-Cristo, sob a forma de Deus, aceita o sacrifício com o Pai, com o qual é um só Deus; mas, sob a forma de escravo, preferiu ser sacrifício a aceitá-lo, para que ninguém aproveitasse esta oportunidade para sacrificar a qualquer criatura. É por isto que Ele é sacerdote: é Ele quem oferece, é Ele a oblação. Desta realidade quis que seja sacramento quotidiano o sacrifício da Igreja que, sendo corpo da mesma cabeça, aprendeu a oferecer-se a si própria por intermédio d’Ele. Sinais variados e múltiplos deste verdadeiro sacrifício eram os antigos sacrifícios dos santos, sendo eles figura deste único sacrifício, como se, por muitas palavras, se expressasse uma só realidade para ser bem ponderada sem causar enfado. Comeste supremo e autêntico sacrifício cessaram todos os falsos sacrifícios.

CAPÍTULO XXI

Do grau de poder concedido aos demónios tendo em vista a glorificação, pela paciência dos seus sofrimentos, dos santos que venceram os espíritos aéreos, não os apaziguando, mas permanecendo fiéis a Deus.

Em tempos limitados e previamente fixados foi mesmo permitido aos demónios um poder que lhes permite incitar os homens que eles dominam e neles fomentar tiranicamente ódios contra a Cidade de Deus. Aceitam os sacrifícios de quem lhos oferece; reclamam-nos de quem já a isso está disposto; chegam a extorqui-los violentamente pela perseguição daqueles que a isso se recusam. Todavia, a sua conduta, longe de ser nociva à Igreja, é-lhe antes proveitosa porque completa o número de mártires; e a estes a Cidade de Deus tem-nos por cidadãos tanto mais gloriosos e ilustres quanto mais valentemente lutaram até ao sangue contra o pecado da impiedade.

Se a linguagem habitual da Igreja o permitisse, chamar-lhes-íamos, com mais propriedade, os nossos heróis. De facto, este nome, diz-se, provém de Juno, porque Juno em Grego chama-se “IIpa — donde não sei qual dos seus filhos, segundo as fábulas dos gregos, teria tomado o nome Herói. O sentido místico desta fábula era o de que a Juno tinha sido atribuído o domínio do ar, morada, como eles pretendem, dos demónios e dos heróis, e designam por este nome as almas dos defuntos decerto mérito. Mas é num sentido contrário que os nossos mártires seriam amados heróis se, como disse, o permitisse o uso da linguagem eclesiástica: não porque vivessem no ar na companhia dos demónios, mas porque venceram os próprios demónios, potências do ar, e neles a própria Juno — seja qual for o seu significado — tão justamente apresentada pelos poetas como inimiga da virtude e ciosa dos homens fortes que aspiram ao Céu. Mas de novo Vergílio sucumbe perante ela e cede desastradamente, depois do que ela diz na Eneida:

Por Eneias sou vencida.[i]

O próprio Eneias recebe de Heleno este conselho como que religioso:

Oferece de boa vontade os teus votos a Juno e com súplices oferendas vence a poderosa soberana [ii].

Segundo esta opinião, que não emite como sua mas como vinda de outros, Porfírio diz que deus bom ou bom génio não virá a um homem se o mau não for antes apaziguado: como se as divindades más fossem mais fortes do que as boas — pois que as más impedem a assistência das boas; elas não deixam o lugar senão depois de terem sido apaziguadas e, contra a sua oposição, as boas não podem ser úteis; mas as más podem causar mal sem que as boas lhes possam resistir!

Não é este o caminho da verdadeira e verdadeiramente santa religião; não foi assim que os nossos mártires triunfaram de Juno, isto é, das potências aéreas invejosas das virtudes dos santos. Os nossos heróis, se nos é permitido usar deste nom e, triunfaram de Hera por virtudes divinas e de forma nenhuma por «súplices oferendas». Cipião foi mais a propósito cognominado «O Africano» ao triunfar da África pelo seu valor do que se tivesse aplacado os seus inimigos com dávidas para o pouparem.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Vergílio, Eneida, VII, 310.
[ii] Vergílio, Eneida, III, 438-439.

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