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29/04/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS 


Vol. 2

LIVRO XII

CAPÍTULO XVI

…/2

Mas se isto eu responder, alguém me dirá: Como é então que os anjos não são coeternos ao Criador, se, como Ele, sempre existiram? Com o é que se podem mesmo chamar criados, se se consideram com o tendo existido sempre? Que responder a isto? Será que se deve dizer: Existiram sempre porque existiram desde todos os tempos, tendo sido feitos com o tempo ou tendo os tempos sido feitos com eles — e, contudo, foram criados? Porque não se pode negar que os próprios tempos foram criados e, todavia, ninguém duvida de que o tempo existiu desde todo o tempo. Efectivamente, se em todo o tempo não houve tempo, havia então tempo em que tempo nenhum havia. Quem seria tão tolo para dizer uma coisa destas? Realmente, podemos dizer com correcção: «houve tempo em que Roma não existia»; houve tempo em que não existia Jerusalém»; «houve tempo em que não existia Abraão»; «houve tempo em que não havia homens»; e por aí fora. Enfim, se não foi com o princípio do tempo, mas após um certo tempo que o Mundo foi feito, poder-se-á dizer: «havia um tempo em que o Mundo não existia». Mas dizer «havia um tempo quando nenhum tempo havia» é tão
absurdo como dizer «havia um homem quando nenhum homem havia» ou então «este Mundo existia quando este Mundo não existia». Se se trata de dois homens distintos poderemos dizer: «este existia quando esse outro não existia». Da mesma maneira poderemos dizer: «este tempo existia quando esse outro não existia»; mas será a mais rem atada tolice dizer: «havia um tempo quando nenhum tempo havia».

Se, portanto, falamos de um tempo criado, posto que tenha existido sempre porque existiu desde todo o tempo, — nem por isso podemos concluir que, se os anjos sempre existiram, não foram criados. Porque se eles existiram sempre é porque existiram desde todo o tempo; e se existiram desde todo o tempo, é porque sem eles não poderia haver tempo algum. Onde, na verdade, não houver criatura alguma, cujos movimentos sucessivos determinam o tempo, não poderá haver aí tempo. Assim, por mais que tenham existido, nem por isso são eternos como o Criador. Este sempre existiu num a imutável eternidade ao passo que eles foram feitos. Mas se se diz que eles existiram sempre é porque existiram «desde os tempos» — eles sem os quais nenhum tempo é possível; mas o tempo, porque flui em razão da sua mutabilidade, não pode ser coeterno à imutável eternidade. Por isso, embora a imortalidade dos anjos não flua no tempo e não seja passada como se já não existisse, nem futura como se ainda não existisse, — o seu movimento, pelo qual se origina o tempo, vai, todavia, passando do futuro para o passado. E é por isso que os anjos não podem ser coeternos ao Criador de quem se não pode afirmar que n’Ele há movimento com o se tivesse algum a coisa que foi mas que já não é, ou alguma coisa que será mas que ainda não é.

E por isso que, se Deus foi sempre Senhor, teve sempre alguma criatura submetida ao seu domínio. Esta criatura não foi por Ele gerada — foi por Ele feita a partir do nada. Ela não lhe é, portanto, coeterna. Porque Ele existia antes dela, embora nenhum tempo tenha existido sem ela, precedendo-a, não por uma duração fugitiva, mas por uma permanente eternidade. Mas se eu der esta resposta aos que perguntam: «como é possível que Deus seja sempre criador, sempre Senhor, se não houve sempre uma criatura que lhe esteve sempre submetida»; ou então: «como é possível que um ser tenha sido criado e não seja coeterno ao seu criador se sempre existiu», — receio dar a impressão mais de afirmar o que não sei do que de ensinar o que sei. Por isso, volto de novo ao que o nosso Criador quis que soubéssemos. Aquelas coisas que Ele permitiu que os mais sábios conhecessem nesta vida ou que reservou aos perfeitos para seu conhecimento na outra vida — confesso que estão acima das minhas forças. Julguei, contudo, que devia tratar delas sem lhes dar uma solução segura, para mostrar aos que as lêem que se devem abster de problemas perigosos, que, longe de se julgarem aptos para tudo aprender, compreendam antes a necessidade de se submeterem às prescrições salutares do Apóstolo quando diz:

Em virtude da graça que recebi, digo, pois, a todos os que estão entre vós que não procurem saber mais do que convém saber, mas saibam com moderação conforme a medida da fé que Deus deu em partilha a cada um.[i]

Se, na verdade, a uma criança se der alimento proporcionada às suas forças, faz-se com que se torne capaz de tom ar mais à medida em que for crescendo; mas se exceder a sua capacidade, ela perecerá antes de crescer.


CAPÍTULO XVII

Como compreender a promessa de vida eterna feita por Deus aos homens antes dos tempos eternos.

Que séculos decorreram antes de o género humano ter sido criado — confesso que o ignoro. Contudo, não tenho a menor dúvida de que nada de criado é coeterno ao Criador. O Apóstolo fala mesmo de tempos eternos, não dos que hão-de vir mas, o que é mais de admirar, dos passados. Diz assim:

Na esperança de uma vida eterna, que Deus, que não mente, tinha prometido antes dos tempos eternos; mas ao chegar o momento manifestou a sua palavra.[ii]

Ei-lo, pois, afirmando no passado tempos eternos que, todavia, não são coeternos a Deus. Efectivamente, Deus existia antes dos tempos eternos e, além disso, prometeu a vida eterna dada a conhecer a seu tempo quando foi conveniente. E que era essa promessa senão o seu Verbo? Este é, na verdade, a vida eterna. E com o prometeu Ele isso, tratando-se de uma promessa aos homens que ainda não existiam antes dos tempos eternos, senão porque na sua eternidade e no seu Verbo, com ele coeterno, já estava predestinado e fixado o que a seu tempo havia de acontecer?


CAPÍTULO XVIII

O que uma fé sadia ensina acerca da imutável decisão e vontade de Deus, contra os raciocínios dos que pretendem submeter as obras de Deus a retornos eternamente repetidos através dos mesmos ciclos eternos de séculos.

Também não tenho a menor dúvida de que, antes de o primeiro homem ter sido criado, jamais houve homem algum, nem este primeiro homem voltou não sei quantas vezes nem sei em que ciclos, nem existiu outro qualquer com uma natureza semelhante.

Acerca deste ponto a minha fé não foi abalada pelos argumentos dos filósofos. Destes argumentos o que é considerado com o mais subtil é este: nenhum a ciência pode abarcar o infinito. Por conseguinte, dizem eles, todas as razões que Deus tem em si mesmo, para a criação dos seres finitos, são finitas. Aliás, não se pode admitir que a sua bondade tenha estado vez alguma ociosa. A sua actividade não pode começar no tempo, após um a eterna abstenção, com o se se arrependesse do seu repouso anterior sem princípio e que, em consequência disso, se decidisse a entregar-se à obra. E, pois, necessário, prosseguem eles,
que os mesmos seres voltem sempre e fluam, voltando sempre os mesmos, quer o Mundo se mantenha na sua mutabilidade, — sem, todavia, nunca ter deixado de ser, mas criado sem princípio temporal — , quer desapareça e renasça incessantemente por revoluções repetidas e destinadas a repetirem -se sem fim. Porque atribuir à obra de Deus um começo, equivale a crer que Deus de certo modo condenou a sua primitiva ociosidade eterna como inerte e preguiçosa e a si mesmo mui desagradável e que, por tal razão, mudou. Ao contrário, se se lhe atribui a criação sem fim das obras temporais, mas um a após outras, até chegar o dia da criação do homem que Ele nunca antes tinha feito — parecerá que agiu, não sob o efeito da ciência, incapaz, segundo eles, de abarcar o infinito, mas de improviso, como lhe vinha à mente, sob o impulso dum a inconstância fortuita. Mas, insistem eles, se se admitem estes ciclos que fazem repetir as mesmas coisas temporais, — quer num Mundo que permanece mutável, quer através de um incessante retorno cíclico de um Mundo que nasce e morre —, deixa-se de atribuir a Deus o ócio, principalmente duma duração tão prolongada que nem começo tem, e a temerária improvisação nas suas obras. Se não se dão retornos, não haverá em Deus ciência ou presciência capaz de abarcar todas as mudanças do Mundo na sua infinita variedade.

Se a nossa razão não pudesse refutá-las, deveria zombar a nossa fé destas objecções com que os ímpios procuram desviar do recto caminho a nossa piedosa simplicidade para rodopiarmos com eles nos seus ciclos. Mas são de sobejo, graças ao patrocínio do Senhor nosso Deus, as razões manifestadas para se quebrarem esses ciclos giratórios que a imaginação inventou. E no que mais erraram eles ao preferirem girar nos falsos ciclos a com prometerem -se no verdadeiro e recto caminho, foi nisto: medem pela sua inteligência humana, mutável e limitada, a inteligência divina absolutamente imutável, capaz de abarcar a infinidade e de enumerar os inúmeros seres sem mudar de pensamento. Acontece o que diz o Apóstolo:

Realmente, ao compararem-se a si próprios, a si próprios se não compreendem.[iii]

Para eles, de facto, todo o novo projecto que lhes vem à cabeça constitui um novo desígnio que executam (porque o seu espírito é mutável). Assim, não é a Deus (pois não o podem pensar) mas é a eles próprios que põem em lugar d’Ele nos seus pensamentos; e não é Deus, mas eles pró­prios, que eles comparam não a Deus, mas a si. A nós, não nos é lícito crer que seja afectado duma forma quando repousa e de outra forma quando opera. Nem sequer se pode dizer que Ele seja afectado como se surgisse na sua natureza algo de novo. Efectivamente, o que é afectado é passivo, e tudo o que é passivo é mutável. Nem se pense, pois, ao falar-se na inacção de Deus em preguiça, em inércia ou indolência — nem, ao falar-se da sua actividade, se pense em trabalho, esforço ou diligência. Deus sabe actuar repousando — e repousar actuando. A sua obra nova pode aplicar um plano que não é novo, mas eterno. Não é arrependendo-se dum a abstenção anterior que Ele começou a fazer o que nunca tinha feito. Se Ele primeiro se absteve e depois actuou (não sei como poderá um homem compreendê-lo), estas palavras primeiro e depois aplicam-se indubitavelmente aos seres que antes não existiam e existiram depois; mas n’Ele nenhum a vontade subsequente modificou ou suprimiu um a vontade precedente, mas com um a e mesma eterna e imutável vontade fez que na criação não existissem os seres que ainda não tinham existência e, depois, que existissem os que começaram a tê-la. Mostravam talvez assim, de uma maneira admirável, aos que são capazes de o compreender, que nenhuma necessidade tinha desses seres, mas criava-os por uma bondade gratuita pois que, enquanto permaneceu sem eles durante toda uma eternidade, nem por isso tinha sido menos feliz.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Rom., XII, 3.
[ii] Tito, I, 2-3.
[iii] II Corint., X, 12.

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