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23/04/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS


Vol. 2

LIVRO XII

CAPÍTULO III

Dos inimigos de Deus que o são, não por natureza, mas por vontade contrária. Esta, quando prejudica, uma natureza boa — porque o vício, se não prejudica, é porque não existe.

Na Escritura dizem-se inimigos de Deus os que, não por natureza, mas por seus vícios, se levantam contra a sua autoridade. Eles não podem prejudicar Deus, mas a si próprios. São seus inimigos pela vontade de lhe resistirem e não pelo poder de O atingirem. Deus é imutável e absolutamente incorruptível. Por isso o vício, que faz erguerem-se contra Deus aqueles a quem chamamos seus inimigos, é um mal não para Deus, mas para os próprios. E isto pela simples razão de que o vício corrompe neles o bem da natureza. Não é, pois, a natureza, mas sim o vício que é contrário a Deus porque o que é contrário ao bem é o mal. Quem negará, porém, que Deus é sumamente bom? Portanto, o vício é contrário a Deus como o mal o é ao bem.

Mas um a natureza viciada é também um bem — e a este bem é contrário o vício, claro está. Porém, ao passo que ele se opõe a Deus unicamente como o mal ao bem, para a natureza que vicia não é apenas um mal, mas algo de prejudicial. Na realidade, nenhum mal prejudica a Deus, mas todo o mal prejudica as naturezas mutáveis e corruptíveis que são, apesar disso, boas, como o demonstram os próprios vícios. Se não fossem boas, os vícios não poderiam prejudicar. Que prejuízo, com efeito, lhes farão senão o de lhes tirarem a integridade, a beleza, a saúde, a virtude e todos os bens naturais que o vício costuma destruir ou diminuir? Se nada houvesse, o vício, nada de bom retirando, já não causaria prejuízo e, portanto, já não seria um vício, pois não pode ser vício sem prejudicar. Segue-se daí que, apesar da sua impotência para causar prejuízo ao bem imutável, o vício a nada pode causar prejuízo senão ao bem, porque não está senão onde causa prejuízo. Isto mesmo também pode ser assim formulado: tanto é impossível ao vício estar no Bem Supremo com o não estar em algum outro bem. Os bens podem estar sós em qualquer parte; os males, não podem estar sós em parte alguma. É que, mesmo as próprias naturezas, que a sua má vontade viciou desde a origem, só são más enquanto viciadas, mas boas enquanto naturezas. E quando uma natureza viciosa é castigada, além de ser uma natureza, tem isto de bom: não é impune. Efectivamente, isto é justo e tudo o que é justo é, sem dúvida, um bem. Na verdade, ninguém é punido pelas suas faltas naturais, mas pelas suas faltas voluntárias. O próprio vício que o progresso de um longo hábito arreigou fortemente como uma natureza, teve a sua origem na vontade. Estamos agora a falar dos vícios duma natureza dotada de espírito que capta a luz inteligível, com que pode distinguir o justo do injusto.

CAPÍTULO IV

As naturezas carentes de razão e de vida não destoam, no seu género e na sua ordem, da beleza do universo.

Seria ridículo julgar condenáveis os defeitos dos animais, das árvores e de outras coisas mutáveis e mortas, totalmente desprovidas de inteligência, de sensibilidade ou de vida e cuja natureza corruptível se desagrega. Essas criaturas receberam por vontade do Criador uma medida de perfeição tal que, ao desaparecerem e ao sucederem-se realizam plenamente a sua pequena parte de beleza temporal, concedida, no seu género, às partes deste mundo. Os seres terrestres não tinham que ser idênticos aos celestes, nem tinham de faltar no Universo só porque estes são melhores. Quando, portanto, nos lugares apropriados a tais seres, uns nascem da morte dos outros e os mais débeis sucumbem perante os mais fortes, contribuindo os vencidos para o aperfeiçoamento dos vencedores — é isto a ordem das coisas transitórias. Se a beleza desta ordem não nos agrada, é porque, inseridos no mundo como partes, em razão da nossa condição mortal, não podemos perceber o conjunto a que os pormenores que nos ofendem se ajustam com toda a harmonia e proporção. Daí que, quanto mais ineptos formos para contemplarmos a obra de Deus, com tanta maior razão se nos impõe a fé na providência do Criador, não aconteça que caiamos na temeridade, humana e insensata, de criticarmos seja no que for a obra de tão grande artista. De resto, bem considerados, os defeitos das coisas terrestres, involuntários e não passíveis de penas, dão testemunho a favor das próprias naturezas que, todas elas, são obra de Deus Criador, e isto pela mesma razão: porque, também nelas, o que nos desagrada ver o vício arrebatar é o que nos agrada na sua natureza. A não ser que estas naturezas se tornem nocivas ao homem — o que é frequente — e lhe desagradem, não como naturezas, mas como contrárias ao seu interesse, com o aqueles animais cuja abundância castigou a soberba dos egípcios. Pelo mesmo motivo se poderia censurar o Sol, pois alguns delinquentes ou devedores insolventes, são, por ordem dos juízes, expostos ao Sol.
É, pois, a natureza, considerada em si mesma e não segundo as suas vantagens ou os seus prejuízos a nosso respeito, que glorifica o seu Criador. Mesmo a natureza do fogo eterno é, sem a menor dúvida, louvável, em bora seja destinada aos suplícios dos ímpios condenados. Efectivamente, que há de mais belo que o fogo chamejante, vigoroso, resplandecente? Que há de mais útil para aquecer, para curar, para cozer? E, todavia, nada mais molesto do que ele quando queima. Portanto, o mesmo elemento, nocivo em certos casos, torna-se utilíssimo quando convenientemente utilizado. Quem será capaz, no mundo inteiro, de, com palavras, enumerar as suas vantagens? Não devem ser ouvidos os que no fogo louvam a luz e detestam o calor. E que estes não o apreciam na sua natureza, mas nas suas vantagens ou inconvenientes. Querem ver — mas não querem arder. Pouco atendem a que esta luz que tanto lhes agrada não convém aos olhos enfermos
e os prejudica, ao passo que o seu calor, que lhes desagrada, convém a certos animais e lhes dá vida e saúde.


CAPÍTULO V

Seja louvado o Criador na forma e na medida de todas as naturezas.

Todas as naturezas, pelo facto de existirem, têm a sua medida, a sua forma e um a certa harmonia consigo mesmas, e, portanto, são boas. Enquanto se mantiverem onde, segundo a ordem na natureza, se devem manter — conservam o ser tal qual com o o receberam. As que não o receberam para sempre, transformam -se em melhores ou piores, conforme as necessidades e os movimentos das coisas às quais a lei do Criador as submete e, como apraz à divina providência, tendem para o fim que o plano de governação do universo lhes assinala. Mas esta tão grande corrupção que impele as naturezas mutáveis e mortais à sua destruição, há-de reduzir o que era ao não ser, mas de forma que não impeça que daí surjam, como consequência, novos seres que devem continuar a existir. Porque assim são estas coisas, — Deus, Ser Supremo, e por isso autor de toda a essência limitada no seu ser, (não pode Ele ser igual ao que criado foi do nada, nem de forma alguma pudera existir se não tivesse sido feito por Ele) — não poderá ser censurado por defeitos em que possamos tropeçar nas naturezas e deve ser honrado pela contemplação de todas as naturezas.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)


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