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08/03/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 2

LIVRO IX

CAPÍTULO VIII

Definição, dada pelo platónico Apuleio, dos deuses celestes, demónios aéreos e homens terrestres.

Mas quê? Merecerá alguma atenção a definição que ele dá dos demónios (cujos termos a todos se aplicam) em que diz:

Os demónios são quanto ao género, seres animados; passí­veis, quanto ao ânimo; quanto à mente, racionais; aéreos, quanto ao corpo; quanto ao tempo, eternos
[i].

Nestas cinco propriedades, nada, absolutamente nada, referiu em que os demónios parecessem ter de comum exclusivamente com os homens bons algum a coisa que não tivessem em comum com os maus. Efectivamente, descreve um pouco mais pormenorizadamente, no seu lugar próprio, homens, deles falando com o de seres ínfimos e terrestres, depois de ter falado dos deuses do Céu; e, uma vez evocados os dois extremos, inferior e superior, trata em último lugar dos demónios, que ocupam o meio. Escreve ele:

Portanto, os homens, orgulhosos pela razão, poderosos pela pala­vra, dotados de alma imortal, de membros votados à morte, de espírito ágil e inquieto, de corpos pesados e débeis, de costumes dissemelhantes e erros parecidos, de audá­cia obstinada e de esperança firme, de actividade estéril e de fortuna instável, individualmente mortais, todos, porém, no seu género, perpétuos porque se sucedem na renovação das gerações, de existência fugitiva, de tardia sabedoria, de morte rápida, de vida lastimosa —, habitam na terra [ii].

Ao mencionar tantas coisas que se referem à maior parte dos homens, acaso se calou acerca desse pormenor que sabia pertencer a um pequeno número — a tardia sabedoria? Se o tivesse omitido, a sua descrição do género humano, apesar de tão atento cuidado, ficaria na verdade incompleta. Pois bem — quando põe em relevo a excelência dos deuses, frisou bem que ela consistia nessa beatitude a que os homens pretendem chegar por meio da sabedoria. Por conseguinte, se a sua intenção fosse a de dar a entender que há bons demónios, teria juntado à sua descrição algum a propriedade donde parecesse que eles possuem, em comum com os deuses, um a certa beatitude, ou, com os homens, algum a sabedoria. Ora ele não lhes pôs em relevo qualquer destas boas qualidades que permitem distinguir os bons dos maus. E, embora se tenha abstido de fazer ressaltar demasiado livremente a sua malícia, fê-lo, não para os não ofender a eles, mas antes para não ofender os seus adoradores, a quem se dirigia. Todavia permitiu que os seus leitores precavidos compreendessem o que deviam pensar desses demónios: assim, aos deuses, no seu entender
todos bons e felizes, pô-los absolutamente a salvo das paixões e, como ele mesmo confessa, das tempestades que agitam os demónios, e só os relacionou pela eternidade dos corpos; todavia, em relação à  alma, declarou abertamente que os demónios se assemelham , não aos deuses, mas aos homens. E, mesmo esta semelhança, respeita não à sabedoria, bem de que os próprios homens podem participar, mas à perturbação das paixões que dominam os insensatos e os maus, que os sábios e os bons dominam, preferindo não as ter, a ter de as vencer.

Se Apuleio quisesse dar a entender que os demónios têm de com um com os deuses, não a eternidade do corpo, mas a da alma, não teria decerto excluído os homens deste com um privilégio porque, como platónico que é pensa sem dúvida que também os homens têm alma imortal. Por isso é que, ao descrever esta espécie de seres animados, ele diz que os homens são dotados

de alma imortal, de membros votados à morte
[iii].

Se, portanto, os homens não partilham da eternidade com os demónios porque têm um corpo mortal, é porque têm um corpo imortal que os demónios a possuem.


CAPÍTULO IX

Se o homem pode obter a amizade dos deuses por intercessão dos demónios.

De que raça são então esses mediadores entre os deuses e os homens, por intermédio dos quais poderão os homens aspirar à amizade com os deuses — se o que há de melhor nos seres animados, a alma, é o que neles, como nos homens, há de pior; e se o que há de pior nos seres animados, o corpo, é o que neles, como nos deuses, há de
melhor? Efectivamente, o ser animado ou animal é composto de alma e corpo. Destes dois, o melhor é, sem dúvida, a alma, mesmo que viciosa e doente seja ela, e perfeitamente são e vigoroso o corpo. E que a sua natureza é de ordem mais elevada; a mácula dos vícios não a faz descer abaixo do corpo. E assim como o ouro, que, mesmo impuro, tem maior valor do que a prata e o chumbo mais puros. Estes mediadores entre os deuses e os homens têm com o os deuses um corpo eterno e, com o os homens, uma alma viciosa — com o se a religião, pela qual pretendem que os homens se unem aos deuses por intermédio dos demónios, tivesse o seu fundamento mais no corpo do que na alma!

Enfim, que malícia, que castigo suspendeu estes falsos e falazes mediadores, como se, por assim dizer, estivessem de cabeça para baixo? É que a parte inferior do seu ser animado, isto é, o corpo, têm-na eles em comum com os seres superiores; mas a parte superior, isto é, a alma, têm-na em comum com os seres inferiores. Estão unidos aos deuses celestes pela parte que é escrava e, desgraçados, estão
unidos aos homens terrestres pela parte que domina. Realmente, o corpo é escravo, como diz Salústio:

Usamos do espírito preferentemente para mandar e do corpo
para servir
[iv],

e acrescenta:

Uma qualidade é comum a nós e aos deuses, e outra a nós e aos brutos
[v],

ao falar dos homens que têm, como os brutos, um corpo mortal. Mas estes, que os filósofos nos propuseram como mediadores entre nós e os deuses, bem podem dizer do seu corpo e da sua alma: esta é comum a nós e aos homens, e aquele é comum a nós e aos deuses. Com a diferença, como disse, de que estão ligados e suspensos às avessas,
tendo o corpo escravo comum com os deuses bem-aventurados e a alma suspensa, com os desgraçados dos homens, ou seja: exaltados pela parte inferior e rebaixados pela parte superior. Donde se conclui: ainda que alguém julgue que eles têm de comum com os deuses a eternidade, porque morte nenhuma poderá, como acontece nos seres terrestres, separar o seu espírito do seu corpo, — mesmo assim não se pode considerar o seu corpo como veículo eterno de um corpo de seres dignos de honra, mas antes como eterno veículo de condenados.


CAPÍTULO X

Na opinião de Plotino, são menos desgraçados os homens num corpo mortal do que os demónios num corpo eterno.

Plotino é justamente louvado por ter, nos tempos mais recentes, compreendido Platão melhor que os seus outros discípulos. Diz ele, ao tratar das almas humanas:

O Pai, na sua misericórdia, preparava-lhes vínculos
(vincla) mortais
[vi] .
Assim, o facto de os homens terem um corpo mortal, pensou ele atri­buí-lo à misericórdia de um Deus-pai, que não quis mantê-los sempre na miséria desta vida. Desta misericórdia con­siderou indigna a iniquidade dos demónios, que, na miséria duma alma sujeita às paixões, receberam, não um corpo mortal como o dos homens, mas sim um corpo eterno. De certo que seriam mais felizes do que os homens se, como estes, tivessem um corpo mortal e, como
os deuses, uma alma bem-aventurada. E seriam iguais aos homens se, com uma alma atribulada, tivessem ao menos merecido, como eles, um corpo mortal — contanto que, evidentemente, pudessem repousar, pelo menos depois da morte, das suas tribulações. Mas eles, devido à miséria da sua alma, não são mais felizes do que os homens, e, devido à perpétua prisão que é o seu corpo, são até mais infelizes do que os homens. Ao afirmar que eles são eternos, quis dar a entender que eles não poderiam transformar-se em deuses, porque os demónios não são capazes de progredir na prática da piedade e da sabedoria.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Apuleio, De Deo Socratis, IV; ed. Thomas, p. 10.
[ii] Apuleio, De Deo Socratis, IV; ed. Thomas, p. 10.
[iii] Apuleio, De Deo Socratis, IV; ed. Thomas, p. 10.
[iv] Salústio, Catilim, I, 2.
[v] ld. Ib.
[vi] Plotino, Enéadas, IV, III, 12.

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