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30/03/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS 


Vol. 2

LIVRO XI

CAPÍTULO VIII

Com o compreender a existência e a natureza do repouso de Deus no sétimo dia, depois de seis de trabalho.

Que Deus descansou de todos os seus trabalhos ao sétimo dia e que o santificou — é facto que não deve ser compreendido puerilmente no sentido de que Deus se fatigou com o trabalho. A palavra

falou e as coisas se fizeram. [i]

deve ser entendida com o um a palavra inteligível e eterna, não sonora nem temporal. Mas o repouso de Deus significa o repouso dos que nele descansam, com o a alegria de uma casa significa a alegria dos que nela se alegram, mesmo que não seja a casa, mas um outro objecto que torne alegres. Quanto mais se a própria casa pela sua beleza torna felizes os que nela habitam! Neste caso chama-se alegre, não por essa figura de linguagem em que o continente é tom ado pelo conteúdo (como se diz: o teatro aplaudiu, os prados mugem, quando num os espectadores aplaudem e nos outros mugem os bois), — mas pela figura em que se toma o efeito pela causa (como se diz: uma carta alegre, para significar a alegria que ela comunica aos leitores). É por isso que com muita propriedade, quando a autoridade profética nos conta que Deus descansou, se quer significar o repouso dos que descansam n’Ele, a quem Ele próprio faz descansar. Refere-se também aos homens a quem se dirige e para quem foi escrita a profecia: esta promete-lhes, a eles também, o repouso eterno em Deus depois das boas obras que Deus opera neles e por eles, se antes, nesta vida, se aproximaram, por assim dizer, d’Ele pela fé. Este repouso é ainda figurado pelo do sabbat prescrito pela lei ao antigo Povo de Deus. Mas disto é minha intenção tratar mais pormenorizadamente no seu lugar
próprio.

CAPÍTULO IX

Segundo os testemunhos divinos, que pensar da criação dos anjos?

E agora — já que empreendi falar da origem da Cidade Santa, e, em primeiro lugar, do que toca aos santos anjos que dela formam uma parte considerável e tanto mais feliz quanto ela jam ais foi peregrina — vou, com a ajuda de Deus e na medida em que me parecer necessário, explicar os testemunhos divinos referentes ao assunto.

Quando falam da criação do Mundo as Sagradas Escrituras não referem claramente se os anjos foram criados, nem por que ordem. Mas, se não foram esquecidos, é a palavra Céu, na passagem em que está escrito

no princípio fez Deus o Céu e a Terra,[ii]

ou antes a luz, de que acabo de falar, que os designa. Aliás, eu não creio que eles tenham sido omitidos porque, está escrito, no sétimo dia Deus descansou de todos os seus trabalhos. Mas o livro começa assim:

No princípio fez Deus o Céu e a Terra

de maneira que, parece, Deus mais nada fez antes do Céu e da Terra. Se, então, começou pelo Céu e pela Terra; se a Terra, a primeira coisa- que fez, era, com o a seguir refere a Escritura, invisível e desorganizada; se, por falta de luz, as trevas se estendiam sobre o abismo, isto é, sobre a confusão da massa indistinta de terra e água (porque sem luz não pode haver senão trevas); se, finalmente, foram criadas e organizadas todas as coisas que se descrevem como acabadas em seis dias — como é que os anjos iam ser omitidos entre as obras de Deus que descansou ao sétimo dia?

Não há dúvida de que os anjos são obra de Deus. Embora isso não esteja claramente expresso, não foi, porém, omitido. Testemunha-o com toda a clareza, noutro lugar, a Escritura Sagrada. No hino dos três homens na fornalha, depois de ter dito:

Todas as obras do Senhor bendizei ao Senhor,[iii]

nomeia também os anjos entre as suas obras — e canta-se no Salmo:

Louvai ao Senhor no alto dos céus louvai-o nas alturas;
Louvai-os, vós, todos os seus anjos louvai-o todas as
suas Virtudes;
Louvai-o, Sol e Lua louvai-o, luz e todas as estrelas;
Louvai-o, vós, céus dos céus, e as águas que estão
acima dos céus louvem o nome do Senhor;
Porque ele falou e as coisas se fizeram;
Ele ordenou e as coisas foram criadas.[iv]

Ainda aqui o declara abertamente a palavra divina: os anjos foram feitos por Deus pois que, depois de os ter nomeado entre as outras realidades celestes, a todos encerra nestas palavras:

Ele falou e as coisas se fizeram.[v]

Quem ousará, então, sustentar que os anjos foram feitos depois de todas as obras enumeradas no decurso dos seis dias? Mas se alguém chegar a este ponto de insensatez, tão vã opinião ficará refutada pela autoridade da mesma Escritura onde Deus diz:

Quando os astros foram feitos, todos os meus anjos me louvaram com a sua poderosa voz.[vi]

Portanto, os anjos já existiam quando foram criados os astros. Ora estes foram-no ao quarto dia. Diremos, então, que foram criados ao terceiro? Claro que não. Sabemos muito bem o que nesse dia foi feito: a terra foi separada das águas, cada um destes elementos recebeu as espécies que lhes convinham e a terra produziu tudo o que nela cria raízes. Seria, porventura, no segundo? Também não. Nesse dia foi feito o firmam ente entre as águas do alto e de baixo, dando-se-lhe o nome de Céu; e no firmamento foram criados os astros ao quarto dia. É, pois, claro que se eles se encontram entre as obras que Deus fez em seis
dias, os anjos são essa luz que recebeu o nome de dia; e foi para marcar a unidade que se não disse o primeiro dia, mas sim um dia. Porque o segundo, o terceiro e os seguintes não são outros, mas o mesmo dia único repetido para constituir o número seis ou sete, em vista de um conhecimento senário ou septenário — o senário relativo às obras que Deus fez e o septenário relativo ao repouso de Deus.

Quando, relam ente, Deus disse:
Faça-se a luz e a luz fez-se.[vii]

— se é justo ver nesta luz a criação dos anjos, é porque certamente eles foram feitos participantes da luz eterna que é a sabedoria imutável do próprio Deus por quem tudo foi feito e a quem chamam os o Filho único de Deus. Assim, eles foram iluminados por esta luz que os criou e desde então eles tornaram -se luz e chamaram-se dia por causa da sua participação na luz e dia imutável que é o Verbo de Deus por quem eles e todas as coisas foram criadas. Porque

a verdadeira luz que ilumina todo o homem que vem a este mundo [viii]

ilumina também todo o anjo puro para que seja luz não em si próprio, mas em Deus. E se o anjo se afasta de Deus, torna-se impuro, com o são todos os espíritos chamados impuros que já não são luz no Senhor, mas eles próprios trevas, privados da participação da eterna luz. O mal, com efeito, não é um a natureza: a perda do bem é que recebe o nome do mal.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Salmo CXLVII, 5,
[ii] Gen., I, 1.
[iii] Dan. III,57.
[iv] Salmo CXLVIII, 1-3.
[v] Ib.
[vi] Job XXXVII, 7.
[vii] Gen., I, 2.
[viii] Jo I, 9.

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