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23/03/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS


Vol. 2

LIVRO X

CAPÍTULO XXVI

Inconstância de Porfirio hesitando entre a confissão do verda­deiro Deus e o culto dos demó­nios.

Quanto a mim, não sei porque é que Porfirio se sentia envergonhado entre os seus amigos teurgos. Sabia de certo modo tudo isto, mas não se sentia com liberdade para o defender contra o culto dos múltiplos deuses. Disse que havia de facto anjos que, descendo do alto, ensinavam aos teurgos as coisas divinas; e que outros, estando na Terra, anunciavam as coisas do Pai, sua sublimidade e profundidade. Será que se pode acreditar que estes anjos, cujo ofício consiste em nos anunciar a vontade do Pai, queiram ver-nos submetidos a outros que não Àquele cuja vontade nos anunciam? Por isso mesmo o platónico nos aconselha com toda a razão que, em vez de os invocarmos, devemos imitá-los. Não devemos, portanto, ter receio de ofender estes seres imortais e bem-aventurados por não lhes oferecermos sacrifícios. Porque o que eles sabem não ser devido senão ao verdadeiro Deus, cuja posse constitui a sua felicidade, sem dúvida alguma não o desejam eles para si, nem em figura, nem na sua própria realidade expressa pelos sacramentos. Esta arrogância é própria dos demónios orgulhosos e infelizes dos quais estão muito longe os piedosos servi ores Deus que não procuram a sua felicidade senão na união com Ele. Para conseguirem este bem devem eles favorecer-nos com sincera benevolência, não arrogando o direito de a eles nos sujeitarem, mas anunciando-nos Aquele sob cuia autoridade nós lhes seremos associados na paz.


Porque receias então, ó filósofo, levantar livremente a voz contra estas potências ciosas das verdadeiras virtudes e dos dons do verdadeiro Deus? Já distinguiste os anjos que anunciam a vontade do Pai, daque­les que atraídos não sei porque artimanha descem até aos teurgos. Porque continuas ainda a honrá-los ao ponto de afirmares que eles anunciam coisas divinas? Que coisas divinas podem anunciar esses anjos que não anunciam a vontade do Pai? Outros não são eles senão esses espíritos que um invejoso amarrou com os seus sortilégios para os impedir de purificarem uma alma, sem que o homem de bem que, como dizes, deseja essa purificação, possa libertá-los das suas amarras e restituir-lhes o seu poder. Duvidas ainda que sejam malignos demónios ou finges talvez ignorar, com receio de ofender os teurgos que enganaram a tua curiosidade e que te transmitiram, como um grande benefício, essa ciência perniciosa e insensata? E ousas levantar até aos Céus, acima dos ares, esta inveja que não é um poder mas uma pestilência — não uma senhora mas, como confessas, uma escrava de invejosos — atreves-te a colocá-la entre os vossos deuses sidérios ou infamar os próprios astros com semelhantes opróbrios?


CAPÍTULO XXVII

A impiedade de Porfirio ultrapassa o erro de Apuleio.

Muito mais humano e suportável foi o erro do platónico Apuleio teu correligionário; este, ao tratar do culto dos deuses, confessou, por querer ou sem querer, que apenas os demónios colocados abaixo da esfera da Lua são agitados pelas enfermidades das paixões e pelas desordens da mente. Mas os deuses supremos do Céu que residem nos espaços etéreos, quer os visíveis que brilham tão claramente aos seus olhos (como o Sol, a Lua e os outros astros), quer os invisíveis que ele via em imaginação, põe ele toda a sua argumentação em preservá-los do menor contágio dessas perturbações.

Mas tu, não foi de Platão, foi de teus mestres caldeus que aprendeste a levantar os vícios humanos até às sublimidades do mundo, etéreas ou empíreas, e até aos celestes firmamentos, para que os vossos deuses pudessem anunciar aos teurgos as coisas divinas. Todavia, pela tua vida intelectual tu pões-te acima destas coisas divinas, não duvidando de que, na tua qualidade de filósofo, não tens necessidade das purificações da arte teúrgica. Todavia, impõe-nas aos outros, como que para pagares uma espécie de dívida para com os mestres, pois aos que não podem filosofar tratas de os arrastar para essas purificações que julgas inú­teis para ti, dotado de mais altas capacidades. Quer di­zer: todos os que estão afastados da virtude da filosofia, que é árdua e de poucos, na tua opinião devem buscar os teurgos para se fazerem purificar, não na sua alma intelectual, mas, o menos, na sua alma espiritual. E como aqueles que não gostam de filosofar são incomparavelmente em muito maior número, a maior parte é forçada a socorrer-se mais desses teus ilícitos segredos do que das escolas platónicas. Realmente, foi isto que te prometeram os imundos demónios, fingindo-se deuses etéreos de que te fizeste o pregador e o anjo: que as purificações pela parte teúrgica na alma espiritual não voltam com certeza ao Pai mas habitarão para lá das regiões aéreas entre os deuses etéreos.

É isto que a multidão dos homens, que Cristo veio libertar do domínio dos demónios, não ouve. E, na verdade, n ’Ele que encontram a mais misericordiosa das purificações — a da inteligência, a do espírito e a do corpo. Porque se Ele assumiu o homem todo, sem o pecado, foi para curar da peste do pecado tudo o que constitui o homem. Oxalá o tivesses tu conhecido e, para alcançares com mais segurança a salvação, te tivesses encomendado mais a Ele que à tua virtude humana, frágil
e débil, ou à tua funesta curiosidade. Realmente, não te teria enganado Aquele que os vossos oráculos, como tu mesmo escreveste, reconheceram como santo e imortal. D’Ele disse também o mais ilustre dos poetas — é certo que como poeta, pois o disse figuradamente de outra pessoa — mas que com toda a verdade referimos a Cristo:

Sob a tua chefia, se algum vestígio do nosso crime perdura,
ele será apagado e a Terra libertada do seu perpétuo terror.
[i]

Trata-se aqui do que, dada a fraqueza desta vida, pode subsistir se não de crimes, pelo menos de vestígios de crimes, mesmo entre os mais avançados na virtude da justiça e que só o Salvador designado nestes versos pode apagar. Que não fala em seu próprio nome, o próprio Vergílio o indica no quarto verso, creio eu, da sua égloga ao dizer:

Já chegou a última idade do oráculo de Cumas.[ii]

Daqui se conclui, sem receio, que quem isto disse foi a Sibila de Cumas.

Mas os teurgos, ou antes os demónios na aparência e figura de deuses, em vez de purificarem o espírito humano, sujam-no com a falsidade das suas visões e o enganoso ludíbrio das suas vãs formas. Com o poderão purificar o espírito humano eles que têm sujo o seu? Se assim não fosse não se deixariam prender por encantamentos de um homem invejoso nem reteriam, por medo, ou negariam, por uma inveja seme­lhante, aquele mesmo benefício ilusó­rio que, parecia, iam prestar. Basta que de ares a teurgia incapaz de justificar a nossa alma intelectual, isto é, a inteligência; quanto à parte espiritual, inferior à inteligência, se essa arte, como tu afirmas, a pode purificar, ela não pode — és tu quem o confessa — torná-la imortal e eterna. Cristo, porém, promete a vida eterna — e por isso o Mundo corre para Ele causando-vos indignação, sem dúvida, e também admiração e espanto.

E de que é que serve tudo isso, se não pudeste negar que os homens erraram com o ensino teúrgico e que muitos se extraviaram por causa desta doutrina cega e estulta, e que é um erro bem evidente recorrer aos principados e aos anjos com as nossas súplicas e ritos? Foi para não parecer que perdeste o teu trabalho a ensinares estas coisas que remetes os homens para os teurgos, para que, por sua intervenção, se purifique a alma espiritual dos que não vivem segundo a alma intelec­tual?


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Vergílio, Égl., IV, 13-14.
[ii] Vergílio, Égl., IV, 4.

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