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17/03/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS 


Vol. 2

LIVRO X

CAPÍTULO X

A teurgia promete uma falsa purificação das almas pela invoca­ção dos demónios.

Eis agora outro platónico — dizem que mais douto —, Porfírio, que reconhece a não sei que disciplina teúrgica o poder de aprisionar os próprios deuses nos laços das paixões e das agitações interiores, pois as preces sagradas podem conjurá-los e impedi-los de concederem a uma alma a purificação. Qualquer pessoa pode, ordenando-lhes o mal, aterrá-los ao ponto de não poder qualquer outra que lhes peça o bem e recorra para tal à mesma arte teúrgica, dissipar o seu terror ou dar-lhes a liberdade de concederem um favor.

Quem não verá em tudo isto invenções de demónios mentirosos — a não ser que seja o mais miserável dos seus escravos, indigno da graça do verdadeiro libertador? Realmente, se estas práticas se dirigissem a deuses bons, o homem de bem, ao procurar a purificação da alma, teria com certeza mais crédito junto deles, do que o mau aoprocurar opor-se-lhes. Ou então, se os deuses justos julgassem o ho­mem de que se trata indigno de ser purificado, deveriam, com certeza, não se deixar amedrontar por um invejoso, nem paralizar-se, como diz o mesmo, com medo de uma divindade mais poderosa, mas recusar o favor por seu livre alvedrio. É de pasmar que aquele tão bom caldeu que desejava purificar a sua alma pelos ritos teúrgicos, não tenha encontrado algum deus superior, quer para inspirar um maior temor e assim constranger os deuses timoratos a fazerem o bem, quer para repelir quem os aterrorizou e permitir-lhes que fizessem livremente o bem. Talvez que ao bom teurgo tenham faltado os ritos sagrados capazes de purificar primeiro deste receio pestilento esses deuses que ele invocava como purificadores da alma. De facto, como explicar que se possa recorrer a um deus mais poderoso para os amedrontar e se não possa fazê-lo para os purificar? Será que se encontra um deus que exalta o invejoso e amedronta os deuses para que não façam o bem e não se encontra um que exalte o homem de boa vontade e liberte os deuses do seu temor para que façam o bem?

Ó teurgia luminosa! Ó purificação da alma digna de ser proclamada em que impera mais a imunda inveja do que a mais pura vontade de bem-fazer! Ou antes: ó falácia dos malignos espíritos, digna de ser evitada e detestada para ser atendida uma doutrina de salvação! Se, como ele diz, os que realizam estas purificações sórdidas por ritos sacrílegos vêem no seu espírito, devidamente purificado, certas imagens maravilhosamente belas, anjos e deuses (se é verdade que assim é), é porque, como diz o Apóstolo, Satanás se transfigura em anjo de luz. Este é que é o autor dessas imagens; este é que deseja prender as almas infelizes nas redes dos mistérios enganadores duma multidão de falsos deuses e desviá-las do verdadeiro culto do verdadeiro Deus, único capaz de as purificar e de as amar; ele é que, como diz Proteu,

se reveste de toda a casta de formas.
[i]

perseguindo com hostilidade, socorrendo com enganos, e de ambas as formas prejudicando.

CAPÍTULO XI

Carta de Porfirio ao egípcio Anebonte pedindo que o instrua sobre as diversas categorias de demónios.

Este Porfirio mostrou-se mais sensato no escrito dirigido ao egípcio Anebonte, onde, sob o pretexto de o consultar e interrogar, desmascara e destrói essas artes sacrí­legas e condena todos os demónios. Afirma que, por sua imprudência, são arrastados por um húmido vapor e por isso não se encontram no éter, mas no ar abaixo da Lua e mesmo no globo da Lua. Todavia, não se atreve a imputar
a todos todas as imposturas, maldades e inépcias que justificadamente o revoltam. Tal com o os outros, a alguns deles chama benéficos, embora confesse que, na generalidade, são desprovidos de senso. Admira-se, porém, de que os deuses se deixem cativar pelas vítimas e até se vejam empurrados e constrangidos a fazer a vontade dos ho­mens. E se os deuses se distinguem dos demónios pelo corpo e pela incorpore idade, admira-se também como se hão-de ter por deuses o Sol e a Lua e os demais astros visíveis no Céu que, não duvida, são corpos; e, se são deuses, porque e que se diz que uns são benéficos e outros são maléficos? E como é que se unem aos incorpóreos os que são corpó­reos?

Pergunta ainda, como quem duvida, se os adivinhos e os operadores de prodígios tiram o seu poder das disposições da alma ou de certos espíritos vindos de fora. Na sua opinião tiram-no mais de espíritos que vêm de fora — pois, utilizando pedras e ervas, prendem pessoas, abrem portas trancadas e realizam outros prodígios deste género. Diz ele que outros pensam que há certo género de seres cujo ofício consiste em atender às demandas, seres falazes por
natureza, que adoptam todas as formas, todos os aspectos, fingindo-se ora deuses, ora demónios, ora almas de falecidos. É deles que provêm todas estas obras que parecem boas ou más — e, pelo contrário, empurram para o mal, caluniam e servem de obstáculo aos diligentes servidores da virtude. Cheios de temeridade e altivez, apreciam os perfumes e prendem -se com lisonjas. Isto e tudo o que respeita a este género de espíritos falazes e malignos que vêm de fora para a alma, abusando dos sentidos do homem desperto ou adormecido, o confirma Porfírio sem se confessar convencido, mas com tanta reserva na sua dúvida e nas suas suspeitas que chega a apresentar esta opinião como se fosse sustentada por outros. Claro que era difícil a um tão grande filósofo conhecer ou contestar sem receio toda esta diabólica sociedade, que qualquer velhota cristã reconhece sem dificuldade e detesta sem relutância. Também pode acontecer que Porfírio receie ofender o seu correspondente Anebonte, glorioso pontífice de tais mistérios, e os outros admiradores de obras semelhantes, consideradas como divinas e pertencentes ao culto dos deuses.

Continuando na sua exposição e indagação dos factos, lembra-nos que estes, considerados com sensatez, não podem deixar de ser atribuídos senão as potências malignas e enga­nadoras. Realmente, pergunto eu:

Porque é que, depois de se invocarem os melhores, se lhes ordena, com o se fossem os piores, que cumpram as ordens injustas dos ho­mens?

Porque é que não atendem um suplicante atingido por artes de Vénus e não cessam de atirar toda a gente para uniões impudicas?

Porque é que impõem aos seus sacerdotes a abstinência da carne, sem dúvida para evitarem as contaminações dos odores corporais, e, todavia, eles próprios são atraídos por outras emanações, especialmente pelo fedor das vítimas? E, ao mesmo tempo que se proíbe ao assistente todo o contacto com o cadáver, as suas cerimónias celebram-se, maior parte das vezes, com cadáveres. O que acontece é que um homem, escravo de qualquer vício, ameaça e amedronta com as suas mentiras, não um demónio ou a alma de um morto, mas o próprio Sol, a Lua ou qualquer outro astro para lhes extorquir a verdade! Na realidade ameaça-os até de estilhaçar o Céu e de cometer outras façanhas semelhantes de que o homem é incapaz, para levar os deuses aterrados, como estúpidas crianças, por vãs e ridículas provocações, a executarem o que ele lhes ordena.

Conta ainda Porfírio que um certo Querémon, perito em tais artes sagradas, ou antes sacrílegas, escreveu que os mistérios de Isis e de seu esposo Osíris, muito celebrados no Egipto, têm um enorme poder para constrangerem os deuses a fazer o que lhes é ordenado, quando aquele que quer forçá-los por seus encantamentos (carmina) os ameaça de desvendar e arruinar esses mistérios, gritando-lhes com voz terrível que irá até ao ponto de dispersar os membros de Osíris se deixarem de executar as suas ordens. Com razão se admira Porfírio de que um homem dirija estas ou outras vãs e loucas ameaças, não a qualquer homem, mas aos próprios deuses celestes resplandecentes de luz sideral e de que, longe de falhar, consiga pela violência coagi-los e levá-los pelo terror a fazerem o que ele quer. Mas o certo é que ele finge admirar-se e pedir a explicação de tais coisas, para dar a entender que elas são obra desses espíritos de que acima faz a descrição segundo a opinião alheia: espíritos enganadores não por natureza, como ele supõe, mas por perversidade, fazendo-se passar por deuses e por almas de defuntos, mas não, com o ele próprio diz, por demónios que na realidade são. E se lhe parece que é com ervas, pedras, animais, certos ruídos ou palavras, gestos ou representações, ou ainda observando certos movimentos dos astros na rotação do Céu, que os homens podem forjar na Terra poderes capazes de obter tais efeitos, tudo isso pertence aos mesmos demónios mistificadores das almas a eles submetidas que encontram nos erros dos homens um divertimento voluptuoso. Portanto, ou Porfírio, na verdade, embora de­les tendo duvidado e acerca deles tendo procurado informar-se, recorda, todavia, tais factos para os confundir e refutar e para demonstrar que eles dizem respeito, não a potências capazes de ajudar-nos a conseguir a vida bem-aventurada, mas sim a falazes demónios; 
ou então, pensando melhor do filósofo, este não quis ferir, à maneira sobranceira e autoritária de um doutor, um egípcio votado a esses erros e convencido da importância da sua ciência, nem quis perturbá-lo com a oposição frontal de um adversário, mas, com a humilde compostura de um homem que interroga no desejo de se instruir, levá-lo a reflectir e a mostrar-lhe com o são desprezíveis ou mesmo dignas de rejeição estas coisas.

Depois, quase no fim da sua carta, pede-lhe que ensine o caminho para a bem-aventurança, segundo a sabedoria do Egipto. De resto, quanto àqueles cujas relações com os deuses se limitam a importunar o seu espírito divino para encontrarem um fugitivo, ou para comprarem um a propriedade, por causa de um casamento ou de um negócio ou de qualquer outra coisa deste género, parece, diz ele, terem cultivado em vão a sabedoria. E ainda que essas divindades, com que se relacionaram, fizessem revelações exac­tas acerca de outros assuntos — pois que acerca da bem-aventurança nenhum conselho prudente e útil foram capazes de dar — nem por isso seriam deuses os bons demónios, mas apenas aquilo a que se chama um embuste ou uma mera ficção humana.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Vergilio, Geórg., IV, 411,

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