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16/03/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS

Vol. 2

LIVRO X

CAPÍTULO VII

É tal o amor que os santos anjos nos têm que querem que pres­temos culto, não a eles, mas ao único e verdadeiro Deus.

É com razão que estes seres imortais e bem-aventurados, estabeleci­dos nas moradas celestes, se regozijam por participarem do seu Criador, de cuja eternidade recebem a sua estabilidade, de cuja verdade recebem a certeza, de cujo favor recebem a santidade. E porque nos amam com amor misericordioso, a nós mortais e infelizes, para que sejamos felizes e imortais, não querem que lhes votem os a eles os nossos sacrifícios, mas Aquele de quem eles pró­prios, como bem sabem, são connosco o sacrifício. Realmente, com eles formam os a única Cidade de Deus a que se refere o Salmo:

De ti se disseram as coisas mais gloriosas, ó Cidade de
Deus
[i].

E uma parte dela, que somos nós, peregrina; e a outra parte, que são eles, presta auxílio. E dessa Cidade Suprema, onde a vontade de Deus é a lei inteligível e imutável, é dessa como que Cúria do Alto (efectivamente é lá que se cuida de nós) que nos vem, pelo ministério dos anjos esta Escritura onde se lê:
Será exterminado aquele que sacrificar aos deuses em
vez de somente ao Senhor.
[ii]

Esta Escritura, esta lei, preceitos como este, foram confirmados por tão grandes milagres que não é possível pôr em dúvida a quem querem aqueles espíritos imortais e bem-aventurados (que querem para nós o que eles são) que nós ofereçam os sacrifícios.

CAPÍTULO VIII

Milagres que Deus se dignou acrescentar às suas promessas, ainda pelo ministério dos anjos, para tomar mais firme a fé das almas piedosas.

Parecerá que me estendo de mais ao recordar de tão longo passado os milagres que atestam a verdade das promessas de Deus, quando predisse, há milhares de anos, a Abraão, que, em sua descendência, todos os povos da Terra seriam benditos. Quem não admirará estes factos:
a Abraão, uma esposa estéril dá um filho numa idade em que nem uma mulher fecunda pode ter filhos;
num sacrifício de Abraão, um a chama desce dos Céus e passa por entre os pedaços da vítima;
ao mesmo Abraão, anjos revestidos da forma humana, que ele recebeu como hóspedes, predizem o incêndio de Sodoma pelo fogo do Céu e confirmam-lhe as promessas de Deus acerca da vinda de um filho;
Lot, filho de seu irmão, com a ajuda dos mesmos anjos, é preservado do incêndio que vai cair sobre Sodoma;
a mulher deste, já a caminho, olha para trás e, subitamente é trans­formada em sal, avisando-nos, com o um grande símbolo, de que ninguém deve desejar as coisas passadas quando já trilha o caminho da libertação?

E quantos e quão grandes prodígios foram ainda realizados por Moisés no Egipto para arrancar o povo de Deus ao jugo da servidão! Lá os magos do Faraó, isto é, rei do Egipto que oprimia este povo, receberam de Deus a permissão de operar alguns prodígios, mas para tornar a sua derrota ainda mais maravilhosa. Efectivamente operavam, com sortilégios, encantações mágicas, obras favoritas dos maus anjos, isto é, dos demónios; mas Moisés provido dum poder tanto mais temível, porque agia com toda a justiça em nome de Deus, que fez o Céu e a Terra, venceu-os facilmente ajudado pelos anjos. A terceira praga confessaram-se impotentes e Moisés, por uma disposição cheia de mistério, acabou o número das dez pragas. Foi então que o coração endurecido do Faraó e dos Egípcios cedeu, deixando partir o povo de Deus. Depressa se arrependeram e procuraram alcançar os Hebreus fugitivos. Enquanto estes passavam, o mar manteve-se dividido e seco para, logo depois, as suas águas se juntarem novamente, cobrindo e aniquilando os Egípcios.

Que direi dos prodígios que se multiplicaram sob o influxo surpreen­dente da divindade durante a travessia do deserto por aquele povo?
— águas impróprias para beber perdem o amargor, mercê do lenho que para elas atiraram por ordem de Deus, e dessedentaram os Hebreus sequiosos;
— o maná que caiu do Céu para os saciar — e como a quantidade a colher era medida, tudo o que mais se colhesse apodrecia com vermes nele nascidos; mas a medida dupla colhida na véspera de Sábado (porque era proibido colhê-lo nesse dia), não era atingida pela podridão;
— para os que desejavam comer carne — e parecia impossível encontrá-la em quantidade suficiente para tanta gente — encheram-se os campos de aves e o acicate da gula foi aniquilado pelo excesso de fartura;
— surgem os inimigos a cortarem a passagem e travam combate — mas Moisés ergue uma prece com os braços estendidos em forma de cruz e os inimigos são esmagados sem que tombe um só dos Hebreus;
— aparecem sediciosos entre o Povo de Deus, separam-se da sociedade divinamente instituída — e a terra abre-se e engole-os vivos, exemplo visível dum castigo invisível;
— a vara fere o rochedo — e a água jorra em abundância para matar a sede de tão grande multidão;
— mordeduras mortais de serpentes, justo castigo dos pecadores, são curadas à vista de uma serpente de bronze levantada sobre um madeiro, para que seja aliviado o povo abatido e que, pela imagem de um a morte de certo modo crucificada, seja simbolizada a destruição da morte pela morte — ? Esta serpente foi conservada em memória do milagre; mas quando o povo transviado começou a adorá-la como a um ídolo, o rei Ezequias, com uma piedade digna mais que todas de memórias pondo toda a sua religião e todo o seu poder ao serviço de Deus, fê-la em estilhaços.

CAPÍTULO IX

Artes ilícitas no culto dos demónios acerca das quais o platónico Porfirio hesita, ora aprovando-as ora repro­vando-as.

Estes casos e muitos outros semelhantes, que seria demasiado longo recordar, tinham por fim favorecer o culto do único Deus verdadeiro e de proibir o dos múltiplos falsos deuses. Resultavam de um a fé simples e de um a piedosa confiança, e não de encanta­mentos e de vaticínios compostos na arte da sacrílega curiosidade a que umas vezes se chama magia, outras se dá o nom e mais detestável de goecia, ou ainda o aparentemente mais honroso de teurgia; com estas distinções procuram fazer crer que entre as pessoas dadas a estas artes ilícitas, umas são condenáveis — aquelas a que vulgarmente se dá o nom e de maléficas são as que, diz-se, se relacionam com a goecia e outras são louváveis — as que se relacionam com a teurgia. Mas a realidade é que tanto umas com o as outras estão ligadas aos ritos falazes dos demónios que se apresentam com nome de anjos.

Porfirio chega mesmo a prometer uma espécie de purificação da alma pela teurgia, mas fá-lo num a exposição um tanto indecisa e tímida; nega, porém, que por esta arte se obtenha o regresso a Deus. Com o vês, entre o vicio de uma sacrílega curiosidade e a profissão de filosofia, flutua em posições contrárias. Realmente, ora nos põe de sobreaviso contra essa arte, declarando-a falaciosa, perigosa na sua prática e proibida pelas leis — ora, como cedesse aos seus panegiristas, a considera útil para purificar uma parte da alma, não, com certeza, a parte intelectual que percebe a verdade das realidades inteligíveis,
que não tem qualquer semelhança com os corpos, mas a parte espiritual que capta as imagens dos objectos corporais. Efectivamente, diz que, por meio de certos ritos teúrgicos chamados teletas  esta parte da alma está disposta e preparada para acolher os espíritos e os anjos e para ver os deuses. Mas confessa que essas teletas teúrgicas não conferem à alma intelectual qualquer purificação que a disponha a ver o seu Deus e a perceber as verdadeiras realidades. Disto se pode inferir que tipo de deuses se vêem, na sua opinião — e que tipo de visão (que não mostra as verdadeiras realidades) se obtém pelos ritos teúrgicos. Diz, por fim, que a alma racional ou, com o prefere dizer, intelectual, pode refugiar-se na sua própria vida sem que o que nela há de «espiritual» tenha sido purificado por qualquer artifício teúrgico. Aliás, a purificação do espírito pela teurgia não basta para a conduzir à imortalidade e à eter­nidade.

Distingue os anjos dos demónios, explicando que têm por residência — os demónios o ar, e os anjos o éter, o empíreo; e, embora avise que convém servirmo-nos da amizade dos demónios, com cuja ajuda cada um de nós se pode levantar da terra, em bora pouco, após a morte, reconhece, todavia, que é por outra via que se chega à sociedade su­perior dos anjos. Que se deve evitar a companhia dos demónios, encontra-se nele por assim dizer a confissão explícita, quando diz que a alma, no decurso das expiações que sofre após a morte, tem horror ao culto dos demónios que a rodeavam. E esta teurgia, que ele nos recomenda como conciliadora dos anjos e dos deuses, não pôde ele negar que actua nas potências que invejam a purificação da alma, ou favorecem as manobras destes. A este propósito expõe os queixumes não sei de que caldeu, dizendo:
Um bom homem na Caldeia queixa-se de que os seus grandes esforços em purificar a sua alma não tiveram sucesso porque um invejoso, prático nestes mistérios, tinha prendido as potências, conjurando-as com preces sagradas, impedindo-as assim de lhe concederem o favor solicitado. Portanto, este prendeu e aquele não desprendeu.

Este exemplo, na sua opinião, mostra que a teurgia é uma ciência ca­paz de fazer tanto o bem como o mal, quer entre os deuses quer entre os homens; e, no seu entender, os deuses também experimentam essas perturbações que Apuleio atribui indiferentemente aos demónios e aos homens, mas separa dos demónios os deuses ao atribuir a estes, moradas no éter, ponto este em que reafirma as ideias de Platão.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Salmo LXXXVI, 3.
[ii] Ex., XXII, 20.

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