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15/03/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS 


Vol. 2

LIVRO X

CAPÍTULO V

Sacrifícios que Deus não pretende, mas que aceita apenas com o símbolo dos que pretende.

Quem será tão falho de senso que julgue que Deus tem necessidade das coisas que nos sacrifícios se lhe oferecem? A Sa­grada Escritura apresenta-nos vários testemunhos. Para não nos alon­garmos bastará recordar esta breve passagem de um salmo:

Eu disse ao Senhor: Tu és o meu Deus, porque não tens necessidade dos meus bens.

Tem-se, portanto, de acreditar que Deus não tem necessidade nem de gados, nem seja de que bem corruptível e terrestre for, nem mesmo da justiça dos homens: todo o culto legítimo que se lhe presta, aproveita ao homem, que não a Deus. Ninguém pretenderá prestar um serviço à fonte quando bebe, ou à luz quando vê! Nos sacrifícios em que os patriarcas imolavam animais e que hoje o povo de Deus relê nas Escrituras sem os praticar, convém que se veja apenas a figura das obras que se cumpriam entre nós tendo por fim unirmo-nos a Deus e levarmos para Ele o nosso próximo. O sacrifício visível é, pois, o sacramento, isto é, o sinal sagrado do sacrifício invisível. Por isso o penitente referido no profeta ou o próprio profeta, procurando para os seus pecados a benevolência de Deus, diz-lhe:

Se quisesses um sacrifício eu oferecer-to-ia; mas não te comprazes nos holocaustos. O sacrifício para Deus é um espírito contrito: um coração contrito e humilhado Deus não desprezará [i].

Vejamos como Deus, onde diz que não quer sacrifí­cios, aí mesmo mos­tra que os quer: recusa o sacrifício dos animais abatidos, mas quer o sacrifício de um coração contrito. Assim, segundo o profeta, o que Deus recusa é a figura do que quer. Deus, diz ele, não os quer da maneira que os estultos julgam que Ele quer: pelo prazer que neles acharia. Realmente, se não quisesse que os sacrifícios que pede (e que se reduzem a um só — o coração humilhado e contrito pela dor do arrependimento) fossem figurados pelos sacrifícios pretensamente desejados para o seu prazer, com cer­teza que não teria prescrito a sua celebração na antiga Lei. Eles deveriam, pois, ser substituídos em tempo oportuno e determinado, para que se não pensasse que eram desejados pelo próprio Deus ou aceitáveis por nós próprios, em vez de ser desejado o que neles se significa. Daí as palavras de um outro Salmo:

Se tenho fome, não to. direi, porque é meu o orbe da terra e tudo o que o enche. Porventura comerei a came dos touros ou beberei o sangue dos bodes [ii]?

Com o se dissesse: mesmo que estes bens me fossem necessários eu não tos pediria, porque os tenho em meu poder. Depois acrescenta para explicar estas palavras:

Oferece a Deus um sacrifício de louvor e cumpre os teus votos ao Altíssimo. Invoca-me no dia da tribulação e eu te libertarei e tu me glorificarás [iii].

Da mesma forma, em outro profeta diz:
Com que é que me apresentarei ao Senhor e me inclinarei pe­rante o Altíssimo Deus meu? Apresentar-me-ei diante dele com holocaustos, com reses de um ano? Agradará ao Senhor o sacrifício de milhares de carneiros, de dezenas de milhares de gordos bodes? Em compensação da minha impiedade dar-lhe-ei os meus primogénitos, o fruto das minhas entranhas em compensação do pecado da minha alma? Homem! não te foi já explicado o que é bom? Que te poderá o Senhor exigir senão que pratiques a justiça, que ames a misericórdia e que estejas preparado para caminhar com o Senhor teu Deus? [iv]

Estas palavras do profeta distinguem e mostram claramente duas coi­sas: que Deus não reclama os sacrifícios por si mesmos, e que eles são a figura dos que ele reclama. Diz-se na Epístola escrita para os hebreus:

Não vos esqueçais de fazer o bem e de ser generosos, porque é por tais sacrifícios que se agrada a Deus.[v]

Por isso é que este texto

prefiro a misericórdia ao sacrifício.[vi]

significa apenas que é preciso preferir um certo sacrifício a um outro sacrifício. Porque aquilo a que todos chamam sacrifício é o sinal do verdadeiro sacrifício. A misericórdia é que é o verdadeiro sacrifício; daí a palavra que acabo de citar:

porque é por tais sacrifícios que se agrada a Deus [vii].

Todas estas prescrições divinas da escritura, respeitantes aos sacrifícios do tabernáculo ou do templo, são, portanto, figuras que se referem ao amor de Deus e do próximo. Realmente, com o está escrito, é «nestes dois mandamentos que se resumem toda a lei e os profetas».

CAPÍTULO VI

O verdadeiro e perfeito sacrifício.

O verdadeiro sacrifício é, pois, toda a obra que contribui para nos unir a Deus numa santa sociedade, isto é, toda a obra destinada a esse bem supremo graças ao qual podemos ser verdadeiramente felizes. E por isso que a própria misericórdia que nos leva a socorrer o nosso semelhante, se não é praticada por amor de Deus, não é um sacrifício. Porque, em bora cumprido ou oferecido pelo homem, o sacrifício nem por isso deixa de ser um a coisa divina. E por isso que os antigos latinos lhe davam também esse nome. Consequentemente, o homem consagrado em nome de Deus e a Deus oferecido, é ele mesmo um sacrifício, na medida em que morre para o mundo a fim de viver para Deus. De facto, isto também respeita à misericórdia que cada um pra­tica para consigo mesmo. Por isso está escrito:

Tem piedade da tua alma, tomando-te agradável a Deus [viii].

Também o nosso corpo, quando o mortificamos pela temperança, é um sacrifício se, como deve ser, o fazemos por Deus, sem fazermos dos nossos membros armas de iniquidade para o pecado, mas sim armas de justiça para Deus. A isso nos exortando, diz o Apóstolo:

Suplico-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como hóstia viva, santa, agradável a Deus, como homenagem racional vossa [ix].

Se, pois, o corpo, ser inferior de que a alma se utiliza com o de um servidor ou de um instrumento, é um sacrifí­cio quando o seu uso bom e recto se refere a Deus, — quanto mais não será a própria alma um sacrifício quando se refere a Deus, para que, inflamada do fogo do seu amor, largue a forma de concupiscência do século e se reforme, submetendo-se a Deus, forma imutável — tornando-se-lhe assim agradável pelos reflexos que recebe da sua beleza. Como conclusão, o mesmo Apóstolo acrescenta:

E não queirais amoldar-vos a este século, mas reformai-vos, renovando a vossa mentalidade para reconhecerdes qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que é agradável, o que é perfeito[x].

Os verdadeiros sacrifícios são, portanto, as obras de misericórdia quer para connosco quer para com o próximo, e referidas a Deus. As obras de misericórdia não se praticam com outro fim que não seja: libertarmo-nos da infelicidade e seguidamente conseguirmos a felicidade — o que não se obtém senão graças ao bem supremo de que
está escrito:

Para mim o bem é unir-me a Deus [xi].

Daqui se conclui com segurança que toda esta cidade resgatada, isto é, a assembleia e a sociedade dos santos, é oferecida a Deus com o um sacrifício universal pelo Magno Sacerdote que, para de nós fazer o corpo de uma tal cabeça, a si mesmo se ofereceu por nós na sua paixão sob a forma de escravo. Foi, efectivamente, esta a forma que Ele ofe­receu, foi nela que Ele se ofereceu, porque é graças a ela que Ele é mediador, é nela que é sacerdote, é nela que é sacrifício. Por isso nos exortou o Apóstolo a que ofereçamos os nossos corpos como hóstia viva, santa, agradável a Deus, como homenagem racional; a não nos amoldarmos a este século, mas a irmo-nos transformando com a nova mentalidade; e — para mostrar-nos qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito, porque o sacrifício na sua totalidade somos nós próprios — o Apóstolo continua:

O que realmente, em virtude da graça divina que me foi concedida, eu digo a quem quer que se encontre no meio de vós, é isto: não sinta a seu próprio respeito mais do que convém sentir, mas sinta de maneira que seja moderado o seu sentir, cada um segundo o grau de fé que Deus lhe atribuiu. Pois, como em um só corpo nós temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma função assim nós, que muitos somos, constituímos em Cristo um só corpo, sendo individualmente membros uns dos outros, possuindo dons diferentes conforme a graça que nos foi concedida [xii].

Tal é o sacrifício dos cristãos

muitos somos um só corpo em Cristo [xiii].

E este sacrifício a Igreja não cessa de o reproduzir no Sacramento do altar bem conhecido dos fiéis: nele se mostra que ela própria é oferecida no que oferece.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Salmo, 18-19.
[ii] Salmo, XLIX, 12-13.
[iii] Salmo, XLIX, 14-15.
[iv] Miq.,VI,6 e sss.
[v] Heb., XIII, 16.
[vi] Oseias, VI, 6,
[vii] Ibid.
[viii] Ecles., XXX, 24.
[ix] Rom., XII, 1.
[x] Rom., XII, 2.
[xi] Salmo LXXII, 28.
[xii] Rom., XII, 3 e ss.
[xiii] Ibid.

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