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13/03/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO X

Nele ensina Agostinho que os anjos bons não querem que se prestem senão a Deus as honras divinas a que se dá o nome de culto de latria e se realiza nos sacrifícios. Logo a seguir discute com Porfirio qual o princípio e o caminho da purificação e da libertação da alma.



CAPÍTULO I

Com o também os platónicos reconhecem, só Deus é que con­cede a verdadeira felicidade tanto aos anjos como homens. Há, porém, necessidade de se averiguar se os anjos, que eles acham que se devem venerar, pretendem sacrifícios só para Deus ou também para si próprios.

É opinião segura de quem quer que seja que use um pouco da razão que todos os homens procuram ser felizes. Mas quem é feliz? E com o é que se torna feliz? Desde que a fraqueza humana põe estas questões, têm elas provocado numerosas e vivas controvérsias nas quais os filósofos gastaram os seus conhecimentos e os seus ócios. Seria longo e desnecessário expô-las e discuti-las. Mas se o leitor se recordar do que dissemos no livro oitavo acerca da escolha dos filósofos com os quais estes assuntos se devem tratar (acerca da beatitude que há-de vir depois da morte), — se lá poderemos chegar prestando culto religioso ao único Deus verdadeiro, autor dos próprios deuses, ou antes a uma multidão de deuses —, não espere esse leitor que sejam aqui repetidas as mesmas coisas, principalmente porque, se acaso as esqueceu, um a segunda leitura poderá auxiliar a sua memória.

Escolhemos os platónicos, sem dúvida os mais ilustres filósofos, porque eles souberam reconhecer que a alma humana, embora imortal e racional ou intelectual, não pode ser bem-aventurada sem a participação da luz desse Deus por quem ela própria e o mundo foram feitos. A firmam eles que tudo o que os homens desejam, isto é, a vida bem-aventurada, ninguém a pode atingir se não se unir pela pureza de um casto amor a esse ser único e excelente que é o Deus imutável.

Mas também eles, cedendo aos vãos erros dos povos, ou, como diz o Apóstolo,

perdendo-se no vazio dos seus pensamentos,
[i]

creram, ou quiseram fazer crer, que era preciso prestar culto a uma multidão de deuses — chegando até alguns deles a pretender que era preciso oferecer mesmo aos demónios as honras divinas das cerimó­nias e dos sacrifícios. Já lhes respondemos largamente.

Por isso, por agora, trata-se de considerar e discutir, na medida em que Deus o permita, estes seres imortais e bem-aventurados estabelecidos nos Tronos Celestes, Dominações, Principados, Potestades, a que eles chamam deuses e a que alguns chamam bons demónios ou, como nós, anjos. Trata-se de saber que espécie de religião e de piedade julgam os que eles reclamam de nós; ou, falando mais claramente, se é para eles próprios ou apenas para o seu e nosso Deus que eles querem de nós a homenagem das cerimónias e dos sacrifícios ou a consagração, por ritos sagrados, de nós próprios ou de alguns dos nossos bens.

E este, de facto, o culto que devemos à divindade ou, mais precisam ente, à deidade. Não encontrando termo latino conveniente para de­signar este culto com um a só palavra, quando for necessário usarei do grego para exprimir o que quero dizer. Na tradução latina da Escritura, apalavra grega é sempre tomada por serviço. Mas o serviço devido aos homens, conforme o preceito do Apóstolo dado aos servos de que devem ser obedientes aos seus senhores, em grego leva geralmente outro nome; mas λατρεία, na linguagem usual dos escritores sagrados, designa sempre, ou tantas vezes que se pode dizer quase sempre, o serviço que respeita ao culto de Deus. Daí,quando se fala de culto não parece que se deve só a Deus pois que se diz que devemos culto também aos homens a quem prestamos honras, quer à sua presença quer à sua memória. E em pregamos esta palavra não apenas em relação aos seres a que nos submetemos com religiosa piedade, mas também em relação ao que está a nós sujeito. Porque desta palavra colere derivam agricolae, coloni, incolae, (agricultores, colonos, íncolas), se chamam coelicolae (ceticolas) os próprios deuses porque habitam no Céu, não porque o cultivam, mas porque, lá residindo, são a bem dizer os seus celestes colonos: são-no, não à maneira dos colonos que devem a sua condição ao solo onde nasceram, obrigados a cultivá-lo sob a autoridade dos proprietários, mas, com o diz um dos mestres da língua latina:

Houve uma cidade antiga habitada por colonos Tírios
[ii].

Chamou-lhes colonos (do verbo colere) porque aí residiam — e não porque exercessem lá a agricultura. E o mesmo sentido que se dá à palavra colónias para se designar as cidades fundadas como que por enxames de população emigrados de cidades maiores. Assim é exacto que, no sentido próprio da palavra, o culto só a Deus é devido; mas como o termo se aplica a outras coisas, não se pode designar em latim por uma só palavra o «culto devido a Deus».

A própria palavra religião (religio) parecia designar de maneira mais precisa, não um culto qualquer, mas o culto de Deus — e é por isso que os nossos traduzem por esta a palavra grega θρησκεία. Todavia, com o em latim corrente — não o das pessoas ignorantes, mas o das mais cultas — se diz que é preciso ter a religião da família, da amizade, de todas as relações sociais, esta palavra não evita o equívoco quando se põe o problema a do culto da deidade. Assim, não podem os dizer com segurança que a religião é apenas o culto de Deus, porque pareceria desviar o termo do seu sentido usual pelo qual se designa o respeito devido ao que aproxima os homens.

Também o termo pietas (piedade), em grego εύσέβεια; no sentido próprio costuma significar «culto de Deus». Todavia, designa também o cumprimento dos deveres para com os parentes. Na linguagem popular em prega-se frequentemente para designar as obras de misericórdia porque, parece-me, é principalmente Deus quem ordena que se cumpram estas obras e testem unha que elas lhe agradam tanto ou mais que os sacrifícios. Esta maneira de falar teve por efeito que ao próprio Deus se chamasse piedoso. Mas os gregos na sua língua nunca lhe chamam ευσεβή, embora o mesmo povo tome ευσέβεια: no sentido de misericórdia. Também em certas passagens das Escrituras, para marcar mais nitidamente a distinção, se preferiu a ευσέβεια — «culto bom», estoutra com posta θεοσέβεια— «culto de Deus»; mas em latim não se pode exprimir nem um nem outro com um a só palavra.

Assim, pois, o termo grego λατρεία traduz-se para latim por servitus (serviço), mas com o sentido de uma homenagem prestada a Deus; o grego θρησκεία por religio (religião), mas com o sentido de um laço que nos une a Deus; e a palavra grega θεοσέβεια por duas palavras latinas Dei cultus (culto de Deu) — o que designa para nós o culto exclusivamente reservado a Deus, ao verdadeiro Deus que tom a «deu­ses» aqueles que o honram.

Quaisquer que sejam, pois, estes seres imortais e bem-aventurados que habitam as moradas celestiais, se eles não nos amam nem querem a nossa felicidade, não temos de os venerar; mas se eles nos amam e nos querem felizes, desejam evidentemente que sejamos com o eles próprios são: acaso será diferente da nossa a fonte da sua felicidade?

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Rom, 1, 21.
[ii] Vergílio, Eneida, I, 13.

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