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08/02/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 1

LIVRO VI

Até aqui, Agostinho escreveu contra os que julgam que aos deuses deve ser prestado culto no interesse desta vida temporal. Agora enfrenta os que pretendem que se lhes preste culto tendo em vista a vida eterna. A estes, refutará Agostinho nos cinco livros que se seguem; e, em primeiro lugar, põe em evidência o baixo conceito em que tinha os deuses um escritor tão apreciado na teologia gentílica como foi Varrão. Alega que, segundo Varrão, existem três categorias de teologia: a fabulosa, a natural e a civil; e, tratando da fabulosa, da natural e da civil, demonstra que em nada podem estas categorias contribuir para a felicidade da vida futura.

PREFÁCIO

Parece-me que nos precedentes cinco livros já discuti suficientemente contra os que, em relação ao interesse desta vida mortal e dos bens terrenos, julgam que é necessário honrar e adorar a multidão dos falsos deuses com os ritos e serviços chamados em grego λατρεία e devidos, de facto, ao único Deus verdadeiro. A verdade cristã demonstra que esses deuses são inúteis simulacros, espíritos imundos, perniciosos demónios ou, pelo menos, criaturas — e nunca, certamente, o Criador.

Todavia, quem ignora que nem esses cinco livros nem quaisquer outros, por numerosos que sejam, bastam para vencer os excessos da estupidez e da contumácia? E que a vaidade se vangloria de jamais ceder perante as forças da verdade, com prejuízo, certamente, do homem em quem domina tão monstruoso vício. É uma enfermidade que desafia todos os recursos da medicina, não porque falte médico mas porque o doente é incurável.

Quanto aos que compreendem, examinam e pesam cuidadosamente o que lêem sem obstinação alguma ou, pelo menos, sem apego culpável ou excessivo a seu velho erro, verão que, nos cinco livros já acabados, demos mais que satisfação às necessidades da questão e a discutimos talvez de mais que de menos.

Assim, os ignorantes, que tentem levantar toda esta animosidade contra a religião cristã a propósito das calamidades desta vida e dos flagelos que recaem sobre as coisas deste mundo, de acordo com as pessoas instruídas que não só se calam mas até os incitam contra a sua consciência, possuídas que estão pela sua raivosa impiedade — esses mesmos ignorantes já não poderão duvidar de que toda esta animosidade é totalmente falha de reflexão e de sensatez e é antes plena de frívola temeridade e de perniciosa teimosia.

CAPÍTULO I

Dos que dizem que adoram os deuses tendo em vista, não a vida presente, mas sim a vida eterna.

Agora, conforme a ordem anunciada, há, portanto, que refutar e instruir aqueles que pretendem que se devem adorar os deuses gentílicos derribados pela religião cristã, não por causa da vida presente, mas antes pela que há-de vir depois da morte.

Apraz-me tomar como exórdio à minha discussão o verídico oráculo do santo salmo:

Feliz aquele que depositou no Senhor a sua esperança e não se detém a olhar para vaidades ou loucas mentiras [i].

Todavia, acerca de todas essas «vaidades» e «loucas mentiras», devemos ouvir com mais tolerância os filósofos que reprovaram as opiniões erróneas dos povos, desses povos que ergueram ídolos aos deuses, imaginando, à conta desses deuses chamados imortais, um grande número de indignas e mentirosas ficções, ou, pelo menos, acreditando em tais ficções, para depois as misturarem no culto deles e nos seus ritos sagrados. Com estes homens que, embora sem francamente o divulgarem, mas antes, de certo modo, cochichando-o nas suas discussões, testemunharam a sua reprovação de tais erros não há qualquer inconveniente em tratar da seguinte questão: será necessário, tendo em vista a vida que há-de vir depois da morte, adorar, não o Deus único, criador de todo o ser corporal e espiritual, mas antes uma multidão de deuses que aquele Deus único teria criado e elevado à categoria suprema, como pensaram alguns desses filósofos, célebres e, entre todos, eminentes?

Além disso, quem poderá suportar a pretensão de que tais deuses — a alguns dos quais já me referi no livro quarto e a cada um dos quais é distribuída a mais insignificante tarefa — podem conceder a vida eterna a alguém? Há homens dos mais sapientes e perspicazes, que se gabam, como de um grande serviço, de terem precisado nos seus escritos o motivo por que é necessário suplicar a cada deus o favor que a cada um deles se deve pedir, se não se quiser incorrer no vergonhoso absurdo (como costuma jocosamente acontecer na comédia) de se pedir água a Libero e vinho às Ninfas: Que é que estes autores aconselhariam a um qualquer que invocasse os deuses imortais e que, depois de ter pedido vinho às Ninfas, tivesse recebido esta resposta: «nós o que temos é água; para o vinho, dirige-te a Libero»? Poderiam esses autores, na verdade, aconselhar esse qualquer a responder: «se não tendes vinho, ao menos concedei-me a vida eterna»? Será que essas deusas, ordinariamente de riso fácil, não rirão às gargalhadas? E — supondo que elas não procuram enganar esse suplicante, como verdadeiros demónios que são — não responderiam: «ó homem, julgas que está na nossa mão dar a vida quando, tu bem o sabes, nem sequer a própria vida está na nossa mão»?

É, portanto, o cúmulo da estupidez impudente pedir a tais deuses e deles esperar a vida eterna, pois que, para o que respeita a esta vida tão curta e miserável, em que, na hipótese de que deles pudesse vir algum auxílio e sustento, o domínio assinalado à sua tutela é tão dividido que, ao pedir a um os favores que pertencem à função e ao poder de um outro, comete-se tal inépcia, tal absurdo, que parece mesmo uma chacota de cómicos. Está certo que estas parvoíces façam rir as pessoas no teatro, quando são propositadamente recitadas pelos pantomimos; mais certo porém será que, quando inconscientemente proferidas pelos tolos, deles se riam no mundo.

A que deus ou deusa e por que motivo convém dirigir preces, no que respeita aos deuses que as cidades instituíram, — é assunto habilmente fixado e transmitido à posteridade pelos sábios: o que, por exemplo, se pode pedir a Libero, ou às Ninfas ou a Vulcano ou aos outros que, em parte, já referi no livro quarto e em parte deixei em silêncio. É evidente que, se pedir vinho a Ceres, pão a Libero, água a Vulcano, fogo às Ninfas, é um erro, muito maior loucura será suplicar a qualquer deles a vida eterna!

Por isso, quando, a propósito do domínio terrestre, procurámos quais desses deuses ou deusas podíamos julgar capazes de o conferir aos homens, demonstrámos, depois de tudo bem ponderado, que admitir o estabelecimento, mesmo só dos reinos da Terra, por qualquer destas numerosas e falsas divindades, era uma opinião totalmente errada. Sendo assim, não constituirá uma suprema loucura e impiedade (pois sem hesitação e sem comparação, se deve colocar a vida eterna acima dos reinos terrestres) pensar que tal vida pode ser concedida a qualquer homem por qualquer desses falsos deuses? O que nos leva a concluir que tais deuses nem sequer poderão dar o reino da Terra tão baixo e abjecto que não se dignam ocupar-se dele na sua tão elevada sublimidade; mas, bem ao contrário, por muito que se desprezem justificadamente os cumes perecíveis do reino terrestre, tão indignos se apresentam esses deuses que nem se lhes pode solicitar a dávida ou a conservação desses reinos.

Por tal razão, se (como se tratou e estabeleceu nos dois livros precedentes) nenhum de entre essa turbamulta de deuses, sejam eles, passe a palavra, plebeus ou nobres, é capaz de dar aos mortais os reinos mortais — muito menos será capaz de tomar imortais os mortais!

A isto acresce o seguinte: se atendermos à opinião daqueles que defendem que é necessário honrar os deuses, não por causa da vida presente, mas por causa da vida que há-de vir depois da morte — também não é por causa desses bens (atribuídos a tais deuses não por razões sérias mas por vã opinião, como um domínio que eles receberam em partilha) que se lhes deve prestar culto. É, aliás, a opinião dos que julgam este culto indispensável aos interesses desta vida mortal; quanto me foi possível, já os refutei nos cinco livros precedentes. Mesmo que assim fosse — se os adoradores da deusa Juventas gozassem de uma juventude mais florescente e se, pelo contrário, os seus desdenhadores morressem nos anos da sua juventude ou languescessem como se estivessem sujeitos ao frio da velhice; se a Fortuna barbada ornasse a cara dos seus devotos de uma forma mais graciosa e alegre e se víssemos os que a desprezam privados de barba ou mal barbados — mesmo em tal caso teríamos o direito de afirmar que o poder de cada uma destas deusas se limita de certo modo às suas funções e que, por isso, não se deve pedir a vida eterna a Juventas, incapaz mesmo de fazer despontar a barba nem, depois desta vida, esperar qualquer bem da Fortuna barbada, absolutamente incapaz de conceder, nesta vida, ao menos a idade em que a barba floresce.

Na verdade, o culto destas deusas não é necessário para se obterem estes favores que se atribuem à sua alçada. Muitos adoradores de Juventas tiveram uma juventude enfermiça, ao passo que outros que nunca se lhe devotaram gozam de vigorosa juventude. Semelhantemente, muitos que veneram a Fortuna barbada não lograram barba alguma ou têm-na disforme; e os que a veneram para a obter são objecto de galhofa por parte dos que a têm. Será então o coração humano tão insensato que chegue a acreditar que lhe poderá ser proveitoso para a vida eterna um culto que sabemos ser inútil e ilusório mesmo na ordem dos tão efémeros bens temporais, à distribuição dos quais se julga que presidem os deuses, cada um no seu domínio? Não ousaram afirmar que esses deuses podem conceder a vida eterna nem sequer os que, para recomendarem o seu culto aos povos ignorantes e, pensando que eram deuses de mais, distribuíram minuciosamente mesmo as tarefas temporais para que nenhum deles ficasse ocioso.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Salmo X X X IX , 5.

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