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07/02/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 1

LIVRO V

CAPÍTULO XXIV

A verdadeira felicidade dos imperadores cristãos.

Nem nós chamamos felizes a alguns imperadores cristãos lá porque reinaram por muito tempo e legaram, após uma plácida morte, o império aos filhos, ou domaram os inimigos da República, ou conseguiram prevenir e reprimir os cidadãos que contra si se rebelaram. Estas e outras dádivas ou consolações desta vida atribulada, também certos adoradores dos demónios mereceram recebê-las sem pertencerem, como aqueles pertencem, ao reino de Deus; — e Deus assim o decidiu na sua misericórdia para que os que n’Ele crêem não as desejem como se elas fossem o Bem Supremo.

Mas chamamos-lhes felizes

— se governarem com justiça;

— se, no meio das palavras dos que os põem nas alturas e das homenagens dos que os saúdam com demasiada humildade, eles se não orgulharem, mas se lembrarem de que são homens;

— se submeterem o seu poder à majestade de Deus a fim de dilatarem ao máximo o seu culto;

— se temerem a Deus, O amarem e O adorarem;

— se mais amarem esse reino onde não temerão terem rivais; — se forem lentos a punir e prontos a perdoar;

— se exercerem a sua vindicta pela obrigação de governarem e de protegerem a República, e não para cevarem os seus ódios contra os inimigos;

— se concederem o perdão — não para deixarem o crime impune, mas na esperança de uma emenda;

— se, muitas vezes constrangidos a tomarem medidas severas, as compensarem com a brandura da misericórdia e a largueza dos benefícios;

— se neles a luxúria for tanto mais castigada quanto mais livre possa ela ser;

— se preferirem dominar as suas paixões depravadas, a dominar quaisquer povos;

— se tudo isto fizerem, não pelo ardente desejo de vanglória mas por amor à felicidade eterna;

— se não forem negligentes em oferecer pelos seus pecados, ao seu verdadeiro Deus, um sacrifício de humildade, de propiciação e de oração.

Tais imperadores cristãos dizemos nós que são felizes, por ora, na esperança, e depois, na realidade, quando chegar o reino que aguardamos.

CAPÍTULO XXV

Prosperidade que Deus concedeu ao imperador cristão Constantino.

O bom Deus, aos homens convencidos de que devem adorá-lO na mira da vida eterna, para os impedir de imaginarem que alguém pode obter as altas dignidades e os reinos da Terra sem os suplicarem aos demónios, como espíritos muito influentes nestas questões, — ao Imperador Constantino, (que não os suplicou aos demónios mas adorou o verdadeiro Deus), cumulou de tão grandes favores terrestres como ninguém se atreveria a desejar; e permitiu- -lhe ainda que fundasse uma cidade associada ao Império Romano, por assim dizer, filha da própria Roma mas sem nenhum templo ou imagem de demónios; reinou por muito tempo; como único Augusto governou e defendeu todo o orbe romano; das guerras que declarou e conduziu, saiu sempre vitorioso; teve pleno êxito na luta contra os tiranos; e morreu em idade avançada, de doença e velhice, deixando o império aos filhos.

Em contrapartida, para evitar que qualquer imperador se fizesse cristão para conseguir a felicidade de Constantino, quando cada um deve ser cristão por causa da vida eterna, — tirou a vida a Joviano muito mais depressa do que a Juliano, e permitiu que Graciano tombasse sob o ferro dum tirano, embora em condições bem menos penosas do que o grande Pompeio, adorador dos pretensos deuses romanos. Este, de facto, não pôde ser vingado por Catão, a quem deixara, por assim dizer, como herdeiro da guerra civil; mas Graciano, embora as almas piedosas não busquem consolações deste género, foi vingado por Teodósio, que ele tinha associado ao poder, embora tivesse um irmão ainda criança: mais interessado num fiel consórcio do que num excessivo poderio.

CAPÍTULO XXVI

A fé e a piedade de Teodósio Augusto.

Não se contentou (Teodósio) em guardar fidelidade (a Graciano). Depois da morte deste, quando Máximo, seu carrasco, lhe expulsou o jovem irmão Valentiniano, como cristão, recebeu-o ele a título de pupilo na parte do impé­rio que governava; olhou por ele com afeição paterna, quando, sem dificuldades, poderia suprimir quem estava privado de todos os recursos, se o desejo de dilatar o seu poder fosse maior do que o seu amor de fazer bem; depois de o ter acolhido, manteve-lhe a dignidade imperial, e tratou-o com humanidade e generosidade. Depois, como este desenrolar dos acontecimentos tornasse Máximo terrível, Teodósio, no meio de angustiosas preocupações, não se deixou arrastar para curiosidades sacrílegas e ilícitas, mas antes mandou alguém consultar a João, que vivia no deserto do Egipto, servo de Deus cuja fama se ia espalhando e chegou até ele como sendo homem dotado de espírito profético. Foi deste que recebeu o anúncio da vitória como coisa certíssima. Pouco depois de ter morto o tirano Máximo, repôs o jovem Valentiniano nas partes do seu Império donde tinha sido expulso, com veneração cheia de ternura — e, tendo este príncipe morrido dentro em breve por traição, por acidente ou por outra forma, acabou com outro tirano, Eugênio, que no lugar daquele imperador fora ilicitamente colocado, e, tendo novamente recebido uma resposta profética favorável, lutou contra um poderosíssimo exército mais com a oração do que com as armas. Militares que estiveram nesta batalha contaram-nos que, do lado de Teodósio, se levantou uma violenta ventania que lhes arrancava os dardos das mãos para os dirigir com a maior violência contra os inimigos e que virava contra os inimigos os dardos que estes atiravam. Foi por isso que o poeta Claudiano, apesar de adversário do nome de Cristo, disse em louvor d’Aquele:

Ó tão amado de Deus, por quem combate o éter e correm ao som da trombeta os ventos conjurados [i]!

Vencedor, como tinha acreditado e predito, Teodósio derrubou as estátuas de Júpiter que contra ele tinham sido erigidas e como que consagradas não sei com que ritos nos Alpes; e os seus raios, que eram de oiro, prazenteira e generosamente os deu aos correios que, na brincadeira (o que naquela alegria lhes era permitido), diziam que por eles queriam ser fulminados. Aos filhos de seus inimigos, que, vítimas não das suas ordens, mas da violência da guerra, se tinham refugiado, sem ainda serem cristãos, nas igrejas, ofereceu-lhes a ocasião de se tornarem cristãos, amou-os com caridade cristã, não os privou de seus bens, e cumulou-os de honrarias. Depois da vitória, não permitiu que se vingassem as inimizades particulares contra ninguém. Quanto às guerras civis, diferentemente de Cina, Mário e Sula e outros que tais, que, quando elas acabavam, não as queriam dar por acabadas, ele ao con­trário deplorou que elas surgissem e quis, uma vez terminadas, que elas não prejudicassem ninguém.

No meio destes acontecimentos e desde o princípio do seu reinado, não deixou de ajudar com as mais justas e benignas leis contra os ímpios nas suas provações a Igreja que o herético Valente, favorável aos arianos, tinha violentamente perseguido. Gostava mais de ser um membro da Igreja do que dominar toda a Terra. Ordenou que por toda a parte derrubassem os ídolos gentílicos, compreendendo bem que nem os próprios favores terrestres dependem dos demónios, mas do verdadeiro Deus.

Que é que há de mais admirável do que a sua piedosa humildade quando do gravíssimo crime dos Tessalonicenses? Por intercessão dos bispos, já tinha prometido indulgências para com esse crime. Mas, pressionado por um tumulto de uns tantos, viu-se obrigado a puni-lo. Castigado depois pela disciplina eclesiástica, fez tal penitência, que o povo, por ele orando, chorou mais ao ver prostrada a majestade imperial do que a tinha temido irada pelo seu pecado. Estas e outras que tais boas obras, que seria longo recordar, levou Teodósio consigo ao sair desta fumarada temporal que envolve as cumeeiras, por muito altas que sejam, da grandeza humana. A recompensa dessas obras é a felicidade eterna, que Deus apenas às almas verdadeiramente piedosas concede.

Porém os outros bens desta vida, honras ou riquezas, tanto aos bons como aos maus as concede Deus, como lhes concede o próprio mundo, a luz e o ar, a terra e as águas e os frutos, a alma e o corpo do homem, os sentidos, a inteligência e a vida; entre esses bens se encontra o poder, por maior que ele seja, que ele dispensa conforme o governo de cada tempo.

Vejo agora que convém responder também aos que, refutados e convencidos de erro por provas evidentes que demonstram a inutilidade da "multidão dos falsos deuses para obterem os bens temporais, únicos que os tolos ambicionam, se esforçam por estabelecer que é necessário adorar os deuses, não já por causa dos interesses da vida presente mas por causa dos que virão depois da morte.

Julgo que nestes cinco livros já respondi suficientemente aos que pretendem adorar vãos ídolos por amor a este mundo e se queixam de lhes serem vedados estes infantis caprichos. Quando os três primeiros foram publicados e começaram a estar em muitas mãos, ouvi dizer que alguns preparavam contra eles não sei que resposta por escrito. Depois, chegou até mim que já a tinham escrita e esperavam a ocasião em que a poderiam publicar sem perigo. Advirto-os de que não optem pelo que lhes não convém. E fácil crer que se deu uma resposta quando na realidade o que se quis foi não estar calado. Que é que há de mais palavroso do que a vacuidade? E lá por que ela pode, se quiser, gritar mais alto do que a verdade — nem por isso terá mais poder que a verdade. Mas considerem atentamente todas as questões e, se por acaso, num exame sem preconceitos, repararem que, mais do que replicar, o que podem é importunar com a sua impudentíssima garrulice e com a ligeireza satírica ou cómica, deixem-se de ninharias e decidam-se antes pela correcção dos prudentes do que pela adulação dos impudentes. Porque, se esperam a ocasião, não para dizerem livremente a verdade, mas para terem licença para maldizer, oxalá que sofram a sorte daquele de que fala Túlio e que devia à sua licença para fazer o mal o apelido de feliz: Ó desgraçado, a quem era permitido o mal [ii]. Portanto, qualquer que se sinta feliz pelo facto de ter licença para maldizer, será mais feliz se perder por completo essa licença. Pode, uma vez que ponha de parte a sua vã jactância, pôr já todas as objecções que quiser com a intenção de se informar e daqueles a quem ele consultar ouvirá, numa amigável discussão, uma resposta, tanto quanto possível, oportuna, honesta, séria e sincera.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Cfr. Orósio, Hist. VIII, 35-21.
[ii] Cícero, Tuscul., V, 19.

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