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03/02/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 1

LIVRO V

CAPÍTULO XIII

O amor da glória, embora seja um vício, é considerado como unia virtude porque impede vícios maiores.

Os impérios do Oriente brilharam durante muito tempo. Por isso quis Deus que houvesse um no Ocidente que, embora posterior no tempo, fosse ainda mais brilhante pela extensão e poderio. Foi uma concessão que Deus fez a tais homens para reprimirem graves males de muitos povos, a eles que, por causa da honra, do louvor e da glória se votaram ao serviço da pátria, nela procuraram esta mesma glória e não hesita­ram em antepor a salvação, abafando a cupidez do dinheiro e muitos outros vícios a esse vício único, isto é, do amor da glória.

Vê com justeza quem reconhece que o amor do louvor é um vício, o que não escapa ao poeta Horácio, que diz:

Inchas com o amor do louvor? Há ritos expiatórios capazes de te aliviarem, infalíveis remédios num livrito: se o leres três vezes com atenção, sentir-te-ás aliviado [i].

E o mesmo, num dos seus poemas líricos, para reprimir a paixão de domínio, canta assim:

Mais vasto será o teu império se dominares o teu espí­rito ambicioso, do que se reunires a Líbia aos longínquos povos de Cádis e se os dois púnicos se te renderem [ii].

Certamente, porém, que aqueles que não refreiam as suas torpes paixões invocando o Espírito Santo com piedosa fé e enamorando-se da beleza inteligível, pelo menos tornam-se melhores pelo desejo de glória e de louvor humano. Não é que se tornem santos, mas menos torpes.

O próprio Túlio nos livros que escreveu acerca da República, onde fala da formação do chefe do Estado, não pôde deixar de dizer que é preciso alimentá-lo de glória e, consequentemente, recordar-lhe como é que os seus antepassados realizaram tantas proezas admiráveis e gloriosas pela paixão de glória.

Não resistiam a tal vício, mas até achavam que deviam excitá-lo e in­flamá-lo, julgando-o útil à Repú­blica. Nem mesmo nas suas obras de filosofia Túlio se afasta desta peste e presta-lhe um testemunho mais claro que a própria luz. Ao falar dos estudos que é preciso prosseguir sobretudo na mira do verdadeiro bem e não dum vão louvor humano, proferiu esta máxima geral e universal:

E a honra que alimenta as artes; é a glória que inflama os homens para o estudo; e jazem sempre por terra as coisas que no ânimo de cada um se encontram desprestigiadas [iii].

CAPÍTULO XIV

É preciso reprimir o amor do louvor humano porque toda a glória dos justos está em Deus.

Sem dúvida que é melhor resistir do que ceder a esta paixão. Realmente, cada um é tanto mais semelhante a Deus quanto mais puro está desta imundície. Embora durante esta vida ela não possa ser arrancada do fundo do coração, porque não cessa de tentar mesmo as almas em bom progresso — seja pelo menos a paixão da glória superada pelo amor da justiça, de maneira que, se em alguma parte «jazem por terra as coisas que no ân:’mo de cada um se encontram desprestigiadas», — se essas coisas são boas, se são justas, o próprio amor da glória se cubra de vergonha e ceda ao amor da verdade! Chega a ser tão contrário à fé religiosa este vício, quando a paixão da glória é no coração maior que o temor e o amor de Deus, que o Senhor diria:

Como podereis crer, vós que esperais a glória uns dos outros e não procurais a glória que só de Deus vem? [iv].

Da mesma forma, a propósito de certos que n’Ele tinham acreditado, mas tinham medo de o confessar publicamente, diz o Evangelista:

Amaram a glória dos homens mais que a de Deus [v].

Não foi isto que fizeram os santos apóstolos. Estes pregaram o nome de Cristo nos lugares onde não somente eram desprestigiados, con­forme aquele que disse:

E jazem sempre por terra as coisas que no ânimo de cada um se encontram desprestigiadas [vi],
mas onde até eram objecto de profunda aversão;

— retiveram estas palavras que ouviram ao bom Mestre que também é médico das almas:

Se alguém me negar perante os homens, também eu o negarei perante meu Pai que está nos Céus e perante os anjos de Deus [vii];

— entre as maldições e os opróbrios, entre as mais duras perseguições e os mais cruéis suplícios, todo este enorme bramido da perseguição humana não foi capaz de os desviar da pregação da salvação dos homens.

Realizaram obras divinas; proferiram palavras divinas; viveram uma vida divina; de certa maneira destruíram corações endurecidos; introduziram no mundo a paz da justiça; conseguiram para a Igreja uma ingente glória — e nem por isso descansaram nela como um fim alcançado da sua própria virtude, mas referiram-na sempre à glória de Deus por cuja graça eram o que eram. E com este mesmo fogo procuravam inflamar os que guiavam no amor d’Aquele que os havia de tornar a Ele semelhantes.

Para que não fossem bons por razões de glória humana, deu-lhes seu Mestre este ensinamento:

Tende cuidado em não praticar a vossa justiça perante os ho­mens para por eles serdes vistos: senão, não tereis recompensa junto do vosso Pai que está nos Céus [viii].

Mas para que, compreendendo mal estas palavras, eles não receassem agradar aos homens e se não tornassem menos úteis escondendo-se, mostrou-lhes até que ponto deviam mostrar que eram bons, dizendo:

Brilhem as vossas obras diante dos homens, para que vejam as vossas boas acções e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus [ix].

Não diz «para que sejais vistos por eles», isto é, com a intenção de os verdes voltarem-se para vós, porque vós por vós próprios nada sois, mas diz:

Para que glorifiquem vosso Pai que está nos Céus [x], e, voltados para Ele, se tornem como vós sois.

A estes (aos apóstolos) seguiram-se os mártires que ultrapassaram pela sua inúmera multidão, os Cévolas, os Cúrcios, os Décios, não por se infligirem a si mesmos torturas mas por suportarem com verdadeira fortaleza e com verdadeira piedade religiosa, as que lhes infligiam.

Mas porque eram cidadãos da Cidade Terrena, e tinham proposto, como fim de todas as suas obrigações, mantê-la a salvo e vê-la reinar não no céu, mas na terra, não na vida eterna, mas no lugar de partida dos que morrem e no lugar de chegada dos que hão-de morrer — que outra coisa poderiam amar senão a glória pela qual pretendiam viver, mesmo depois da morte, na boca dos que os louvam?

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Horácio, Epist., I, 1, 36-37.
[ii] Horácio, Odes, II, 2, 9-12.
[iii] Cícero. Tuscul., I. 2, 4.
[iv] João, V, 44.
[v] João, V, 44.
[vi] Cícero, Tuscul., I, 4.
[vii] Mat., X , 33; Luc., XII, 9.
[viii] Mat., V, 1.
[ix] Mt., V, 16.
[x] Mt., V, 16.

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