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25/02/2017

Leitura espiritual


A CIDADE DE DEUS 

Vol. 1

LIVRO VIII

CAPÍTULO VII

Os platónicos devem ser considerados muito superiores aos outros filósofos em lógica ou filosofia racional.



Quanto à doutrina tratada na segunda parte, a que chamam lógica, isto é, racional, longe de mim a ideia de lhes serem comparáveis aqueles que puseram nos sentidos corporais o discernimento da verdade e pretenderam medir pelas suas regras inseguras e falazes tudo o que ao pensamento respeita. É o caso de Epicuro e quejandos; e até os próprios estóicos que possuídos de um ardente amor por esta habilidade na discussão que se chama dialéctica, julgaram que ela devia ser deduzida das sensações do corpo. É a partir daí, afirmam eles, que o espírito concebe as noções [i] das coisas que se explicam por meio de definições; é a partir daí que se desenvolvem e se encadeiam todas as regras da arte de aprender e de ensinar. [ii]

Costumo admirar-me muito sempre que os ouço afirmar que só os sábios são belos. Com que sentidos do corpo terão visto essa beleza? Mas aqueles que merecidamente colocamos acima dos outros, distinguiram o que o espírito contempla daquilo que os sentidos atingem, sem nada tirarem aos sentidos das suas aptidões, sem nada lhes concederem além delas. A luz dos espíritos, para todo o conhecimento a adquirir, é, disseram eles, este mesmo Deus por quem todas as coisas foram feitas.

CAPÍTULO VIII

Também na filosofia moral os platónicos têm a primazia.

Resta a parte moral, a Ética que trata do Bem supremo: a ele referimos tudo o que fazemos; apetecemo-lo não por outro, mas por si mesmo, pela sua posse termina toda a busca posterior de felicidade. E por isso que também se chama fim porque é para ele que queremos os outros bens, mas àquele queremo-lo por si mesmo.

Este bem beatífico, uns dizem que vem ao homem do corpo, outros da alma e outros dos dois conjuntamente. Como viam que o homem é formado de corpo e alma, julgavam que quer o corpo, quer a alma, quer os dois conjuntamente é que podiam ser a origem do seu bem, dum bem definitivo, princípio da felicidade ao qual se reportava tudo o que faziam — e não tiveram que buscar outra coisa a que referi-lo.

Aqueles, pois, que, diz-se, acrescentaram uma terceira categoria de bens chamados extrínsecos, como a honra, a glória, o dinheiro e outros que tais, não se propunham de forma alguma fazer deles um bem final, isto é, desejável por si próprio, mas sim um bem desejado na mira de outro; e assim este género de bens seria bom para os bons e mau para os maus. Desta forma este bem do homem que uns exigem da alma, outros do corpo, outros do corpo e da alma, todos eles pensaram que haveria que procurá-lo unicamente no homem. Os que o esperavam do corpo, esperavam-no da parte menos nobre; os que o esperavam da alma, esperavam-no da parte melhor; os que o esperavam do corpo e alma conjuntamente, esperavam-no do homem todo. Mas quer seja duma parte ou do todo, é apenas do homem que o esperam. Estas diferenças, embora sejam três, não deram origem a três, mas a muitos sistemas ou seitas filosóficas — porque acerca do bem do corpo, acerca do bem da alma, acerca do bem dos dois conjuntamente, diversos filósofos emitiram diversas opiniões.

Cedam, portanto, todos estes filósofos que disseram que feliz não é o homem que goza do seu corpo, que feliz não é o que goza da sua alma, mas feliz é o que goza de Deus — não como o espírito goza do seu corpo ou de si próprio, nem como um amigo goza de um amigo, mas como o olhar goza da luz (se é que entre estas coisas alguma semelhança pode existir): qual seja a sua natureza, ver-se-á em outro lugar na medida em que, com a ajuda de Deus, nos for possível. Basta por agora recordar que, segundo Platão, o bem supremo consiste em viver conforme a virtude — o que só pode ser alcançado por quem tem o conhecimento de Deus e procura imitá-lo: não há outra causa que possa tomá-lo feliz. Também não hesita em dizer que filosofar é amar a Deus, cuja natureza é incorpórea. Donde se segue que o desejoso de sabedoria (que o mesmo é que dizer: o filósofo) só se toma feliz quando começa a gozar de Deus. Certamente que se não é feliz pelo simples facto de que se goza do que se ama, (muitos de facto são infelizes por amarem o que não deviam amar e mais infelizes ainda por dele gozarem). Todavia ninguém é feliz se não goza do que ama. Mesmo aqueles que amam o que não deve ser amado não se julgam felizes por amarem, mas por gozarem. Portanto, quem goza daquele que ama e ama o verdadeiro e supremo bem — quem senão o mais desgraçado negará que esse é feliz? A esse verdadeiro e supremo bem dá Platão o nome de Deus. Por isso é que diz que filósofo é o que ama a Deus; e porque a filosofia tende para a vida feliz, é gozando de Deus que quem o ama é feliz.

CAPÍTULO IX

Da filosofia que mais se aproxima da verdade da fé cristã.

Portanto, quaisquer que sejam eles, os filósofos que reconhecem no verdadeiro Deus Supremo o autor das coisas criadas, a luz dos nossos conhecimentos, o bem para que tendem as nossas acções, aquele que é para nós o princípio da natureza, a verdade da doutrina, a felicidade da vida:

quer se chamem mais exactamente platónicos ou se dê não importa que nome à sua escola,

quer se pense que os mais notáveis mestres da escola jónica, como Platão e os que bem o compreenderam, foram os únicos a pensar assim,

quer se encontre esta doutrina na escola itálica devido a Pitágoras, aos pitagóricos, talvez a outros mestres da mesma região que partilharam as suas ideias, quer sejam quaisquer outros havidos por sábios e filósofos, de outros povos (líbios do Atlântico, egípcios, indianos, persas, caldeus, citas, gauleses, hispanos e outros mais) que tenham aprendido e ensinado estas doutrinas,

— a todos colocamos acima dos outros e reconhecemos que estão mais próximo de nós.

CAPÍTULO X

Excelência da religião Cristã entre as disciplinas religiosas.

Um cristão instruído apenas nas letras eclesiásticas, talvez ignore o nome dos platónicos e não saiba que em língua grega houve duas correntes filosóficas — a jónica e a itálica. Não é, porém, tão surdo para as coisas humanas que desconheça que os filósofos se dedicam ao estudo e à prática da sabedoria. Todavia acautela-se dos que filosofam em conformidade com os elementos deste mundo, e não em conformidade com Deus por quem o mundo foi feito. É que ele está avisado pelo preceito apostólico a que presta atenção com fé:

Acautelai-vos, não vos deixeis enganar pelas vãs sedu­ções duma filosofia conforme aos elementos do mundo [iii].

Mas para que não se pense que todos são assim, ouve também o que de alguns diz o Apóstolo:

Porque o que de Deus se pode conhecer está patente. O próprio Deus o manifestou. Desde que o Mundo existe, as suas perfeições invisíveis tomaram-se visíveis ao espírito por meio das suas obras, bem como o seu eterno poder e a sua divindade [iv].

Dirigindo-se aos atenienses, depois de ter dito de Deus aquela extraordinária palavra que por bem poucos pode ser compreendida,

é nele que vivemos, nos movemos e somos [v],
acrescenta:
Como o disseram alguns dos vossos [vi].
Com certeza que o cristão também sabe que deles se deve acautelar em assuntos em que se enganam. Efectivamente, onde está referido que

Por meio das coisas criadas Deus revelou as suas perfeições invisíveis, acessíveis à inteligência [vii],
também está referido que não prestaram ao próprio Deus o seu legítimo culto, rendendo a outros seres que não o mereciam as honras divinas que só a Ele são devidas:

Realmente, embora tenham conhecido Deus, não o glorificaram como Deus e não lhe deram graças, mas perderam-se nos seus pensamentos e o seu coração insensato se obnubilou. Apelidando-se a si próprios de sábios tomaram-se loucos e substituíram a glória de Deus incorruptível por imagens de homens corruptíveis, aves, quadrúpedes e répteis.
Alude neste passo aos romanos, gregos e egípcios que se gloriam com o nome de sábios. Mais tarde com eles discutiremos acerca deste assunto. Mas se se trata do Deus único, autor desta universalidade, d’Aquele que, pela sua incorporeidade não só está acima de todos os corpos, mas também, pela sua incorruptibilidade, está acima de todas as almas — ele, nosso princípio, nossa luz, nosso bem, — na medida em que connosco estão de acordo sobre estes pontos preferimo-los aos demais.

Um cristão pode desconhecer as obras literárias desses filósofos; pode não saber usar, nas suas discussões, de termos que não aprendeu; pode não saber chamar: natural com os latinos, ou física, com os gregos, a esta parte da filosofia que trata do estudo da natureza; racional ou lógica à outra em que se procura a maneira de atingir a verdade; moral ou ética àquela em que se trata dos costumes, dos fins bons a atingir, dos fins maus a evitar. Mas o que este Cristão não ignora é que é do único, verdadeiro e perfeito Deus que recebemos a natureza, pela qual fomos feitos à sua imagem; doutrina, pela qual o conhecemos a Ele e nos conhecemos a nós; e a graça, pela qual nos tornamos felizes, unindo-nos a Ele.

É esta a razão pela qual os preferimos aos demais — porque, ao passo que os outros gastaram o seu talento e os seus esforços na busca das causas das coisas, dos métodos do conhecimento e das regras da vida, estes, uma vez conhecido Deus, ficaram a saber onde encontrar a causa realizadora do universo, a luz para descobrir a verdade, a fonte onde se bebe a verdade. Os que estão de acordo connosco são os que têm semelhante concepção de Deus, quer eles sejam platónicos, quer eles sejam quaisquer outros filósofos de qualquer nação. Mas pareceu-nos preferível tratar destas questões com os platónicos porque as suas obras são mais conhecidas. Realmente os gregos, cuja língua sobressai entre os povos, fizeram delas os maiores encómios, e os latinos, movidos pela sua excelência e glória, aprenderam-nas mais gostosamente e traduziram-nas para a nossa língua, assegurando-lhes assim maior brilho e fama.




(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Segundo os estóicos as chamadas noções comuns ou inatas, tais como Bem, Justo, Belo, têm a sua origem nos sentidos e não em origem diferente dos sentidos. Resultam tais noções de raciocínios espontâneos a partir da percepção das coisas concretas. Assim a noção de Bem resulta da comparação, feita pela razão, das coisas percebidas imediatamente como boas.
[ii] Cícero, De Finitibus, III, X , 33.
[iii] Col., II, 8.
[iv] Rom., I, 19 e segs..
[v] Act. Apost., XVII, 28.
[vi] Rom., I, 21 e segs.
[vii] Rom., I, 21 e segs..

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