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24/02/2017

Leitura espiritual


A CIDADE DE DEUS



Vol. 1

LIVRO VIII

CAPÍTULO IV

Platão, que foi o principal discípulo de Sócrates, dividiu a filosofia em três partes.



Entre os discípulos de Sócrates, o que brilhou com mais deslumbrante e merecida glória, ao ponto de eclipsar totalmente todos os outros, foi Platão. Ateniense nascido de ilustre família, em muito ultrapassou os seus condiscípulos pelo seu maravilhoso engenho. Pensando que, para aperfeiçoar a filosofia, nem em si próprio nem nas lições de Sócrates encontrava o bastante, viajou durante muito tempo e por tão longe quanto lhe foi possível, por onde quer que o atraísse o renome de uma doutrina célebre digna de ser recolhida. Assim, no Egipto aprendeu todas as doutrinas reputadas que lá se professavam. De lá passou às regiões de Itália onde os pitagóricos gozaram de grande fama e, seguindo as lições dos mais eminentes mestres, assimilou com toda a facilidade tudo o que então florescia na filosofia itálica. Devido a particular estima que dedicava a seu mestre Sócrates, fez-lhe dizer em quase todos os seus diálogos quer o que tinha aprendido de outros mestres quer o que por si mesmo tinha podido compreender, tudo harmonizando com o encanto e as preocupações morais do seu mestre.

Como o estudo da sabedoria tem por objecto a acção e a contemplação, pode portanto chamar-se activa a uma parte e contemplativa à outra. A parte activa trata da forma de nos conduzirmos na vida, isto é, respeita aos costumes que devem ser seguidos, e a contemplativa ao exame das causas da natureza e da pura verdade. Consta que Sócrates sobressaiu na activa; Pitágoras ligou-se mais, com todas as forças da sua inteligência, à contemplativa. Atribui-se a Platão a glória de ter unido uma à outra, levando a filosofia à sua perfeição. Dividiu-a ele em três partes: a moral, que trata da acção; a natural que se confina à contemplação; a racional que distingue o verdadeiro do falso. Embora esta seja indispensável às outras duas, isto é, à acção e à contemplação, é, todavia, principalmente a contemplação que reivindica para si o aprofundado conhecimento da verdade. Esta divisão tripartida, aliás, não é incompatível com a que partilha todo o estudo da sabedoria em acção e contemplação.

Mas qual terá sido, nestas três partes ou em cada uma delas, o pensamento pessoal de Platão — e onde terá ele colocado, quer por sua ciência quer por sua fé, o fim de todas as acções, a causa de todas as naturezas, a luz de todas as razões — são questões que levariam muito tempo a expor com exactidão, julgo eu, e penso também que a tal respeito se não deve afirmar temerariamente seja o que for. Efectivamente, nas suas obras apresenta o seu mestre Sócrates como dirigindo a discussão, afecta seguir o costume muito conhecido de dissimular a sua ciência ou a sua opinião porque tal método também lhe agradava a ele: donde resulta tomar-se difícil distinguir as suas ideias pró­prias acerca das grandes questões.

Todavia, de entre os pensamentos que nele se lêem, dos que ele próprio exprimiu ou dos que outros formularam e ele expõe e transcreve, parecendo aprová-los, julgamos necessário mencionar e inserir alguns nesta obra, quer ele testemunhe neles a favor da verdadeira religião que a nossa fé adopta e defende, quer pareça contradizê-la na questão do Deus único e dos múltiplos deuses, a propósito precisamente da vida verdadeiramente feliz que virá depois da morte.

Talvez, de facto, aqueles que com mais agudeza e verdade compreenderam Platão, filósofo tão acima de todos os dos gentios, e adquiriram uma maior fama ao tomarem-se seus discípulos, tenham de Deus esta concep­ção: é n’Ele que se encontra a causa da existência, a razão da inteligência e a regra da vida — três aspectos que se relacionam: o primeiro com a parte natural da filosofia, o segundo com a parte racional e o terceiro com a parte moral. Realmente se o homem foi criado para atingir, por meio do que nele há de superior, o Ser Superior a todos os seres, isto é, o Deus único, verdadeiro e perfeito, sem o qual nenhuma natureza subsiste, nenhuma doutrina nos instrui, nenhuma conduta é útil — pois então que seja a Ele que se busque, pois que, para nós, é Ele a origem de todas as coisas; seja a Ele que se contemple, pois que para nós, é n’Ele que está toda a certeza; seja a Ele que se ame, pois que, para nós, é n’Ele que está toda a rectidão.


CAPÍTULO V

Em matéria de teologia é de preferência com os platónicos que se deve discutir, pois as suas opiniões são melhores do que as dos outros filósofos.

Se, pois, para Platão, sábio é o que imita, o que conhece, o que ama a este Deus e encontra a sua felicidade em participar da sua vida, que necessidade haverá de examinar os demais? Nenhum deles estará mais próximo de nós que os platónicos. Ceda-lhes, portanto, não só essa teologia fabulosa que diverte os espíritos dos ímpios com os crimes dos deuses, mas ceda-lhes também essa teologia civil — em que impuros demónios, seduzindo, com o nome de deuses, os povos entregues aos prazeres terrestres, acharam por bem considerar os erros humanos como honras divinas; em que esses demónios, despertando nos seus adoradores imundas paixões, os provocam, sob o pretexto de se fazerem honrar, a assistirem às representações dos seus crimes, entregando-se eles próprios aos olhares dos espectadores como à mais agradável das representa­ções; em que, finalmente, o que pode restar de honestidade no templo, sendo manchado pelo seu compromisso com as torpezas do teatro, tudo o que de infame se comete no teatro merece louvor em comparação das vilanias do templo.

Cedam-lhes também as interpretações de Varrão para quem estes ritos sagrados se referem ao Céu e à Terra, às sementes e às operações dos seres mortais (porque estes ritos não têm a significação que ele procura dar-lhes: também a verdade escapa ao seu esforço; e mesmo que esta significação fosse verdadeira, a alma racional não deveria honrar, em vez do seu Deus, os seres que a ordem da natureza estabeleceu abaixo dela, nem por cima dela, como deuses, seres aos quais o verdadeiro Deus a preferiu).

Cedam-lhes ainda as escrituras, de certo referentes aos mesmos ritos, que Numa Pompílio teve o cuidado de esconder fazendo-as sepultar consigo, mas que o arado desenterrou e o Senado fez queimar! (Do mesmo género são também — para que algo de favorável a Numa se diga — as revelações que Alexandre da Macedónia, ao escrever a sua mãe, diz ter recebido de um certo Leão, Grão-Sacerdote da religião egípcia. Segundo tais revela­ções, não foram divinizados apenas Pico, Fauno, Eneias e Rómulo e ainda Hércules e Esculápio, Líbio filho de Sémele e os irmãos Tindáridas e todos os outros mortais; foram divinizados também os próprios deuses das grandes nações que Cícero, sem os nomear, parece designar nas suas Tusculanas: Júpiter, Juno, Saturno, Vulcano, Vesta e tantos outros que Varrão procura relacionar com as partes do mundo ou com os elementos, são representados como tendo sido homens. Também este Grão-Sacerdote, por recear uma eventual revelação dos mistérios, suplicou insistentemente a Alexandre que, depois de ter escrito a sua mãe, lhe peça que lance a carta ao fogo).

Cedam pois estas duas teologias — a fabulosa e a civil — aos filósofos platónicos que reconhecem o verdadeiro Deus como autor das coisas, fonte luminosa da verdade, dispensador da felicidade eterna. Cedam ainda a tão grandes pensadores que chegaram a conhecer um Deus tão grande, esses outros filósofos cujo pensamento, escravo do corpo, não admite para a natureza senão origens corpó­reas: a água, segundo Tales; o ar, segundo Anaxímenes; o fogo, segundo os estóicos; segundo Epicuro, os átomos, isto é, corpúsculos, pequeníssimos, indivisíveis e imperceptíveis; e tantos outros que não vale a pena citar, para quem os corpos, simples ou compostos, inanimados ou vivos mas, todavia, corpos, são causas e princípios das coisas. Realmente, alguns deles, tais como os epicuristas, acreditaram que as coisas vivas podiam ser produzidas por coisas não vivas; outros pensaram que é do vivo que provêm os vivos e os não vivos, mas que todo o corpo provém de outro corpo. Quanto aos estóicos, consideraram o fogo, um dos quatro elementos que constituem o mundo visível, como dotado de vida e de sabedoria e consideraram-no como tendo fabricado o Mundo, de maneira que, segundo eles, era realmente um deus.

Estes e outros que tais não conseguiram elevar o seu pensamento acima dos fantasmas que os seus corações, submetidos aos sentidos carnais, imaginaram. Realmente, tinham dentro de si o que não viam e imaginavam que viam fora de si o que não viam, embora, na realidade, não o vissem, mas apenas o imaginassem. E isto, realmente, à vista do pensamento, já não é corpo: é antes a imagem do corpo. E a faculdade que vê na alma a imagem dum corpo não é nem esse corpo nem a imagem desse corpo: e ela que vê e julga se essa imagem é bela ou disforme, é, sem a menor dúvida, melhor do que a imagem julgada. Esta faculdade é a inteligência do homem, a natureza da alma racional que, sem dúvida, não é um corpo, pois que esta imagem do corpo quando é percebida e apreciada no acto do pensamento, já não é ela mesma um corpo. Ela não é, portanto, nem terra, nem água, nem ar, nem fogo; não é nenhum destes quatro corpos chamados os quatro elementos de que vemos ser composto o mundo corpóreo. Ora se a nossa alma não é um corpo, como é que será um corpo Deus criador da alma?

Que estes filósofos cedam, portanto, aos platónicos. Cedam-lhes também os que se envergonharam de dizer que Deus é um corpo, mas nem por isso deixam de pretender que as nossas almas são de natureza idêntica à d ’Ele. Não se sentem chocados com a mobilidade tão grande da alma, que não se poderá atribuir, sem incorrer em impiedade, à natureza de Deus. Dirão: é pelo corpo que a natureza da alma está sujeita a mudanças; por si mesma ela é imutável. Poderiam dizer também: é pelo corpo que a alma é ferida porque esta por si mesma é invulnerável. Na verdade, o que não está sujeito a mudança, nada o pode mudar; por isso é que o que pode mudar por intermédio do corpo, alguma coisa o pode mudar e, então, já não pode em rigor chamar-se imutável.

CAPÍTULO VI

Pensamento de Platão acerca da chamada filosofia física.

Estes filósofos que, pela sua fama e glória, vemos colocados merecidamente acima dos demais, compreenderam que Deus não é corpo e por isso é que, na busca de Deus, transcenderam todos os corpos. Compreenderam que em Deus Soberano nada é mutável, e por isso é que, na procura de Deus Soberano, transcenderam toda a alma e todo o espírito mutável. Compreenderam, além disso, que em todo o ser que muda, toda a forma que o faz ser o que é, qualquer que seja a sua natureza e os seus modos, não pode ela própria existir senão por Aquele que é verdadeiramente porque é imutavelmente. E daí que, quer seja o corpo do Mundo inteiro, a sua estrutura, as suas propriedades, o seu movimento regular, os seus elementos escalonados do Céu à Terra e todos os corpos que ele encerra;

quer seja toda a vida: a que sustenta e mantém o ser, como nas árvores; a que, além disso, possui sensibilidade, como nos animais; a que acrescenta a tudo isto a inteligência, como nos homens; ou a que, sem necessidade de mantimentos, se mantém, goza de sentimentos e de inteligência, como nos anjos,

não pode manter o seu ser senão d’Aquele que simplesmente é. Para Ele, efectivamente, ser não é uma coisa e viver outra, como se pudesse ser sem viver; para Ele viver não é uma coisa e compreender outra, como se pudesse viver sem inteligência; para Ele compreender não é uma coisa e ser feliz outra, como se pudesse ter inteligência sem a beatitude. Mas para Ele viver, compreender, ser feliz, tudo isso para Ele é ser.

Devido a esta imutabilidade e a esta simplicidade, os platónicos compreenderam que Deus fez todos os seres e por nenhum pôde ser feito. Realmente observaram que tudo o que existe é corpo ou vida, que a vida é coisa superior ao corpo, que a forma do corpo é sensível e a da vida é inteligível. Puseram, portanto, a forma inteligível acima da forma sensível. Ora nós chamamos sensível ao que pode ser percebido pela vista e pelo tacto do corpo; inteligível ao que pode ser captado pelo olhar do espírito. Não há efectivamente beleza corpórea quer na estrutura do corpo, nos seus traços por exemplo, quer num movimento, como é o canto, que não tenha o espírito por juiz. Mas este espírito não poderia ser juiz, se nele não houvesse essa beleza mais perfeita, sem o volume da massa, sem o ruído da voz, sem a extensão do lugar e do tempo. Quanto ao próprio espírito, se, também ele, não fosse mutável, um não seria melhor do que outro ao ajuizar acerca da beleza sensível: nem o mais vivaz, o mais esperto, o mais exercitado ajuizaria melhor do que o mais lento, o menos esperto, o menos exercitado — e até o próprio espírito, embora uno, ao evoluir ajuíza melhor depois do que antes de se desenvolver. Não há dúvida de que é mutável o que é capaz de mais e de menos. Daí facilmente concluírem homens engenhosos, doutos e experientes nestas matérias, que a primeira forma não se encontra nos seres em que ela se evidencia mutável. A seus olhos o corpo e a alma aparecem com mais ou menos forma, de maneira que se lhes chegasse a faltar toda a forma, deixariam totalmente de ser. Viram, pois, que existe um ser no qual reside a primeira forma, imutável e, consequentemente, incomparável; julgaram muito justamente que é aí que se encontra o princípio das coisas, o qual não poderá ter sido feito e pelo qual tudo terá sido feito.

Assim, é o próprio Deus que lhes desvenda o que de Deus pode ser conhecido, quando a inteligência deles perscruta, através das Escrituras, as suas perfeições invisí­veis, o seu eterno poder e a sua divindade (Rom. I, 19-20) — Ele por quem todos os seres, mesmo os visíveis e temporais, foram criados.

Fica exposto assim o que se refere à parte chamada física, isto é, a natural.




(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)


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